Supremo Tribunal Federal e o papel ideológico do direito constitucional

17/05/2018
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A

O recente julgamento do STF em torno ao “habeas corpus” do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva e sua prisão notoriamente política (ainda que atípica) evidenciou nacionalmente uma importante (e não tão nova) questão que, ao mesmo exemplo da fratura de leituras jurídicas representada quando do chamado “impeachment” da Presidenta Dilma Rousseff, leva ao reacender de um pontuamento crítico urgente.

 

Afinal, os discursos (pretensamente) científicos (precipuamente do Direito Constitucional) que se constroem em torno de fatos como estes: qual sua qualidade, particularmente, ideológica? Algumas maquinações são facilmente identificáveis.

 

Há uma frente de leituras que não vai discernir as dimensões jurídicas dos fenômenos, procurando jogar à abertura da política o que estava contido no devido, e imperativo, fechamento do jurídico.

 

A hermenêutica, assim, acaba sendo um dos subterfúgios, alegada como meio de abertura na construção enunciativa, que se ocultará, por sua vez, sob aparência de argumentação jurídica, geralmente marcada pelo uso excessivo de clichês e jargões judiciais.

 

Nesse grupo, portanto, estarão aquelas classificações que pretendem dissimular caráteres punitivistas e juridicamente irresponsáveis em nome de um obscuro “clamor popular” (insuficiente, ademais, se isoladamente considerado, nesta instância decisória, na forma jurídica posta), sustentando entendimentos de senso comum da grande mídia e da dita opinião pública, novamente, tramados no texto de parte dos votos dos julgadores de modo muito questionável, seja pela técnica jurídica atual, seja pela filosofia política e jurídica contemporâneas.

 

Tais posturas servem para encobertamentos do texto constitucional, dos direitos fundamentais, do princípio da legalidade e dos preceitos legais. Nem se fale, então, do Direito Constitucional, Penal e Processual Penal em seus princípios, inclusive, dogmáticos.

 

Afinal, a muitos cientistas, muito mais fácil do que enfrentar a ilegalidade e a inconstitucionalidade no agir dos intérpretes será sustentar cenários de normalidade funcional e institucional; este tem sido o caminho da grande mídia e o será de parte dos pesquisadores, considerando que o espaço público de crítica não tem se mostrado franco e aberto, mas permeado de interesses políticos e mesmo de riscos de estigma e perseguição.

 

Há, por outro lado, outra frente de ditos cientistas que busca, em clara função normalizadora e estabilizadora, classificar em uma mesma linhagem ou espectro posições toleráveis conjuntamente às intoleráveis (frise-se: o discernimento sobre o tolerável e intolerável não é ínsito a estes processos de classificação, é algo que apenas o olhar crítico vê, de fora) em torno de diferentes rótulos, planificando, assim, um conjunto de elementos inclassificáveis entre si e que, ademais, não se encontram na mesma linearidade de compatibilidade democrática.

 

Com este posicionamento, todos os julgadores são postos em pé de igualdade em suas posições, o que é encarado, então, como uma abertura em favor das liberdades de pensamento, opinião e expressão, não obstante, no curso destas construções, se violem preceitos profissionais, legais, constitucionais, convencionais, éticos e filosóficos.

 

Assim, tudo se torna tolerável porque todo posicionamento é admissível, mesmo que carente de juridicidade mínima, como se não houvesse limitação prévia do agir do intérprete e do conteúdo de suas enunciações, incluindo as com efeito normativo. Trata-se, portanto, de uma postura de condescendência e indiscernimento.

 

Ambas as posturas, pretensamente científicas, do esgarçamento político ou da normalização plena, representam uma mesma função ideológica da ciência, de mascaramento do conflito do real, de tapamento das fraturas das relações concretas e das distorções institucionais, seja em termo de atribuições de seus agentes, seja no sentido da finalidade institucional e, ademais, na natureza e finalidade das ciências envolvidas nestas instituições, ao momento, sobretudo, o Direito e Processo Penal (incluindo as Criminologias), que devem ser constitucionalizados.

 

Ainda que tais atitudes possam ter objetos delimitados, indiquem fontes, obedeçam a alguns critérios de construção formal do discurso e sigam até mesmo rigor metódico em suas produções, parece que esta ausência de adequada valoração construtiva gera um colapso ético-científico insuperável, decorrente de uma visão anacrônica da ciência jurídica, quando não irresponsável ou mesmo cínica.

 

A Filosofia e a Ciência do Direito na contemporaneidade se apresentam como o campo do complexo e da problematização do positivismo jurídico, mas também de todos os aportes que se nominam de “pós-positivismos”. A abertura da reflexão aos fatos, aos valores, ao raciocínio e à lógica jurídica demonstram a intensidade das dimensões envolvidas em qualquer construção decisória. Infelizmente, assiste-se a um laxismo na hermenêutica das Cortes, acompanhada de uma mesma postura de parte do meio científico.

 

Os propósitos envolvidos nesse laxismo são basicamente aterradores quando consideradas as relações familiares e profissionais dos agentes públicos e privados envolvidos, além de posicionamentos ideológico-econômicos, levando a um profundo e inevitável questionamento da integridade moral e jurídica. Quem perde é a cultura democrática, cuja arquitetura institucional fica profundamente abalada: abrem-se as brechas do autoritarismo, das tendências totalizantes, da inefetividade dos direitos conquistados, do retrocesso jurídico e social.

 

Como prenunciara o constitucionalista brasileiro Paulo Bonavides, nos anos 2000, a Constituição de 1988 “[...] fez, por exemplo, do Supremo Tribunal Federal taxativamente um tribunal de guarda da Constituição. Mas ele nesse ponto se autodemitiu da importantíssima e crucial tarefa de concretizar nas controvérsias do sistema, onde as bases da democracia constitucional estavam em jogo, a sua missão protetora de salvaguarda das instituições. Os que ora desfecham um golpe de Estado institucional não são portanto molestados pela Justiça constitucional: e permanecem intangíveis, fora do alcance do braço da Lei Suprema, pervertendo, afrontando e despedaçando, cada vez mais, as instituições do país”.¹

 

É mais do que urgente e necessária a máxima postura responsável dos cientistas do Direito, tendo em vistas as profundas marcas do cenário nacional em torno das desigualdades sociais, da quase incapacidade de se obedecerem regras de impessoalidade e imparcialidade. Se cada dia mais, diante das arbitrariedades do Poder Judiciário, o Direito Internacional dos Direitos Humanos parece o último refúgio da juridicidade, não se pode negar o papel decisivo de resistência a ser exercido pela pesquisa científica e filosófica do Direito no desvelamento ideológico.

 

- Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

 

¹ BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estud. av., São Paulo, v. 14, n. 40, p. 155-176, dez. 2000. p. 175.

 

16/05/2018

https://jornalggn.com.br/noticia/supremo-tribunal-federal-e-o-papel-ideologico-do-direito-constitucional-por-eliseu-venturi

 

https://www.alainet.org/es/node/192931
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS