Quem tem medo da verdade?

21/02/2018
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Caroline Silveira Bauer
Foto: Guilherme Santos/Sul21
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São muitas as definições possíveis para a atual conjuntura brasileira: da pós-democracia ao estado de exceção, profissionais das ciências humanas e sociais buscam qualificar a situação criada desde o golpe de 2016, ainda que possamos encontrar indícios da gestão desse status quo recuando-se um pouco mais no tempo, principalmente em se tratando de segurança pública, tema que estimula os debates sobre as permanências ditatoriais na democracia e a difícil articulação entre autoritarismo e democracia na execução do poder de polícia.

 

Esses indícios revelam um problema estrutural gestado desde o processo de transição política brasileiro, qual seja, a própria organização da segurança pública. Para citar um apenas um exemplo, durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, a presidência da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, responsável pelo delineamento da segurança pública, foi de Jarbas Passarinho, militar que começou sua carreira política com o golpe de 1964, passando, durante a ditadura, pelos ministérios do trabalho, da educação e da previdência e assistência social. O resultado da condução dos trabalhos explicita-se no texto constitucional: a segurança pública está organizada de maneira similar ao definido pela constituição ditatorial de 1967 e pela Emenda Constitucional de 1969. Após o término dos trabalhos da Constituinte, Passarinho declarou, em entrevista à revista Playboy, em 1989, que a tortura durante a ditadura “foi a outra face da moeda da chamada insurreição armada sem regra.”

 

Ainda assim, acredito que nem todas as mazelas da segurança pública devem ser buscadas no legado do autoritarismo e da impunidade do período ditatorial. O Estado democrático pós 1988, por exemplo, seguiu enfrentando a questão do tráfico unicamente como uma questão policial, e enfrentou muito timidamente os problemas da subordinação das Forças Armadas ao poder civil.

 

Gostaria de chamar a atenção para um fenômeno mais recente, que ganhou visibilidade a partir da decretação da intervenção militar no estado do Rio de Janeiro: um paulatino processo de militarização do Estado, que tem ocorrido não somente pela ocupação de militares em setores estratégicos da administração pública, mas também pelo esvaziamento da competência de civis na gestão de temas vinculados à segurança, como a transferência da Polícia Federal do Ministério da Justiça para o Ministério da Segurança Pública, que será criado em breve; e pelo discurso propagado pelas Forças Armadas. Detenho-me um pouco mais nesse último ponto frente à repercussão das declarações do comandante do Exército sobre a intervenção no Rio de Janeiro.

 

As ambivalências entre as conquistas democráticas, como a lei de acesso à informação e o princípio da publicidade das ações estatais, e entre o discurso das Forças Armadas, nesse processo de militarização do Estado, fazem que se tenha acesso ao Informex, veículo autointitulado “A palavra oficial do Exército”, divulgado pelo Centro de Comunicação Social do Exército. Datado de 16 de fevereiro de 2018, o Informex n. 5, que versava sobre a intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, com a instrução de ser distribuído em todas as organizações militares, para todos os militares, afirmava, textualmente, que o Comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, “em face da gravidade da crise, entende que a solução exigirá comprometimento, sinergia e sacrifício dos poderes constitucionais, das instituições e, eventualmente, da população.”

 

A manifestação extrapola todas as prerrogativas conferidas ao interventor militar, abrindo precedentes ilimitados para a ação das Forças Armadas, com um objetivo extremamente difuso e de desrespeito aos preceitos constitucionais de inviolabilidade das instituições e da pessoa humana.

 

Para conferir legitimidade ao comunicado, pois ele não possui nenhuma legalidade, Villas Boas afirmou, em reunião do Conselho da República, que os militares precisam ter “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. A declaração explicita o histórico medo antecipatório das Forças Armadas em serem responsabilizadas civil e penalmente por suas ações. Em outro momento, na conjuntura da posse de Tancredo Neves/José Sarney na presidência da república, os militares temiam que ocorresse no Brasil os mesmos processos que ocorriam na Argentina pelos crimes cometidos na ditadura, e explicitavam esse temor exigindo garantias que não houvesse no Brasil uma “argentinização” da transição política.

 

Outra questão chama a atenção na declaração do militar: as ações propriamente ditas da intervenção ainda não ocorreram, mas já houve o pedido informal de uma “anistia”, travestida na solicitação de impunidade e de ausência de investigação dos futuros crimes (?) cometidos no “sacrifício dos poderes constitucionais, das instituições e, eventualmente, da população.”

 

Quem tem medo da verdade? No mesmo dia da divulgação do Informex n.5, o Ministério dos Direitos Humanos do Brasil publicava a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que condenou o Brasil a reabrir as investigações sobre duas chacinas ocorridas em 1994 e 1995 na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A Corte fora acionada pelo esgotamento dos recursos jurídicos internos do Estado brasileiro – morosidade e falta de vontade para investigação da violência policial cometida naquelas ações. Simples coincidência, prenúncio do futuro ou uma possível resposta à pergunta que intitula esse texto?

 

- Caroline Silveira Bauer é professora de História do Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro “Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória”.

 

fevereiro 20, 2018

https://rsurgente.wordpress.com/

 

https://www.alainet.org/es/node/191167

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