O Brasil que não se vê na atual política de distribuição audiovisual

03/10/2017
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Os números recentes do mercado audiovisual e de cinema no Brasil são impressionantes. Nos últimos anos, houve aumento consistente das produções, do número de salas de cinema e do público – resultado de uma política pública nacional consequente e estruturada de fomento ao audiovisual. No entanto, a ocupação das salas comerciais se mantém muito baixa, com taxa média da ordem de 20% – 12% considerando apenas filmes brasileiros. Também são pouquíssimas as cidades que contam com cinemas no País: menos de 11%, de acordo com o IBGE. Ou seja, ainda temos um gargalo enorme em termos de distribuição.

 

As ações da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura para a ampliação do parque exibidor brasileiro (cuja definição se restringe a salas comerciais), para incentivar a distribuição e exibição das produções nacionais, não foram capazes, até o momento, de diminuir o abismo de desigualdade de acesso ao cinema entre as populações de alta e baixa renda.

 

Hoje, o investimento da Ancine em exibição e distribuição é muito pequeno se comparado ao destinado à produção. Enquanto as salas de cinema comercial são escassas e disputadas pelos filmes estrangeiros (com maior tradição e maior volume de recursos para promoção e distribuição), grande parte dos filmes brasileiros lançados nos cinemas tem público pequeno, limitado aos cidadãos de grandes centros urbanos e de classe média e alta. Em 2016, foram lançados 143 filmes brasileiros, mas 66% deles (95) não ultrapassaram a marca de 10 mil espectadores.

 

O atual modelo, alicerçado numa lógica em que apenas exibições em salas comerciais geram pontos a produtoras e distribuidoras para fins de incentivo público, também reforça a concentração do financiamento em quem tem poder econômico e em determinados perfis de obras. Assim, produtores independentes – e mesmo comerciais – têm poucos incentivos para distribuir seus filmes.

 

Mesmo sendo essas as produções nacionais que mais crescem, tal configuração dificulta a entrada em cartaz de filmes brasileiros independentes, assim como como de documentários e produções voltadas à temática social e política. Gera-se um círculo vicioso em que chegam aos cinemas majoritariamente produções consideradas mais atrativas à bilheteria e ao público, que terminam ocupando o espectro da programação de forma ampla (muitas cidades, muitas salas) e, consequentemente, concentrando a programação.

 

O resultado é que o Brasil produz uma quantidade razoável de títulos, muitos com incentivo público, mas que não circulam a contento e não garantem, nas salas de cinema, a exibição da diversidade e pluralidade cultural e regional de que o Brasil necessita.

 

Por outro lado, cresce o movimento cineclubista, um indicador de que aumenta o interesse da população por produções independentes. Esta ampliação se deu em partes por editais e políticas públicas secundárias – mesmo em tempos de um Ministério da Cultura pujante. No entanto, desde lá, já faltavam incentivos específicos para a distribuição de filmes em circuitos alternativos: bibliotecas, universidades, escolas e, claro, cineclubes. Isso sem falar das emissoras públicas de televisão, que são um parque exibidor riquíssimo em potencialidades quase nada aproveitadas.

 

Já passou da hora, portanto, de olhar com seriedade para este problema, que impacta negativamente não apenas o mercado audiovisual, mas também o direito à comunicação e o acesso à informação e à cultura dos brasileiros e brasileiras. É hora da sociedade, em conjunto, pensar em um conjunto soluções para buscar superar essas barreiras e exigir respostas concretas do ponto de vista das políticas públicas culturais.

 

A própria Ancine tem estes temas em sua agenda regulatória para o próximo período. É fundamental, portanto, que o debate sobre novas formas de distribuição de obras audiovisuais no Brasil comece a crescer, ao mesmo tempo em que se buscam soluções criativas e diferenciadas para a questão.

 

É possível fazer diferente

 

Um exemplo de iniciativas neste sentido é a distribuição do documentário Terra Deu, Terra Come, dirigido por Rodrigo Siqueira, vencedor do 15º Festival É Tudo Verdade. O filme estreou em salas comerciais em 2010 e, ao mesmo tempo, em um circuito cineclubista. Essa estratégia de lançamento – que levou o filme a 821 pontos de exibição digital em todos os estados brasileiros, chegando a periferias, interior e cidades sem cinema – foi articulada em parceria com a distribuidora VideoFilmes e com o extinto Programa Cine Mais Cultura, do governo federal.

 

Outra estratégia similar foi realizada pela distribuidora Vitrine Filmes, em parceria com a Taturana Mobilização Social, para a ficção Quase Samba (Brasil, Bananeira Filmes, 2013), dirigida por Ricardo Targino. Em junho de 2015, o filme foi lançado ao mesmo tempo nos cinemas comerciais e em um circuito popular – cineclubes, centros culturais, coletivos, escolas, universidades, espaços de movimentos sociais e outros equipamentos afins –, com o objetivo de discutir, na prática, novas formas de difusão e democratização do acesso ao cinema brasileiro.

 

“Precisamos devolver ao país o cinema que o povo financia. É assim que inventaremos o cinema do século XXI. Acredito que é justamente uma indústria da criatividade popular que vai agregar valor ao nosso desenvolvimento e promover uma reinserção soberana do Brasil no cenário global. Nossa diversidade é nossa maior riqueza”, disse Ricardo Targino sobre o processo de lançamento de seu filme, em entrevista para a revista online Cinem(ação).

 

Em 2016, a Taturana Mobilização Social levou o filme Paratodos (Brasil, 2016, Sala 12 Filmes), documentário sobre atletas paralímpicos brasileiros, a mais de 3 mil escolas públicas de quatro estados diferentes. O filme foi concebido desde a fase de projeto com esse objetivo: chegar aos cinemas e, ao mesmo tempo, em escolas públicas – estratégia de distribuição com janelas simultâneas, formação de público e impacto social no mesmo esforço.

 

Como calcular e formar público

 

Ações como estas ainda enfrentam, entretanto, um grande entrave, já mencionado aqui: o modelo de contagem de público. Para fins de incentivo e política pública, não são contabilizados os públicos decorrentes da circulação das obras em escolas, por exemplo. Mesmo no caso do Paratodos, em que foram registrados formalmente, por relatórios de impacto enviados por professores e outros atores escolares (diretores, coordenadores pedagógicos), mais de 60 mil espectadores em suas comunidades escolares, esses dados não foram contabilizados oficialmente perante a Ancine. O modelo acaba por desincentivar que produtores façam um esforço para circular suas obras em espaços educacionais, com grande potencial de formação de público – uma das pontas do problema.

 

Também é fundamental problematizar os atuais modelos de financiamento público à distribuição – principalmente se levarmos em conta que grande parte das produções brasileiras ainda se beneficia de fundos e subsídios públicos.

 

Se por um lado o circuito alternativo não necessariamente gera retorno financeiro, por outro o circuito comercial pode requerer um investimento inicial alto que não necessariamente se recupera com bilheteria ou outras formas de licenciamento.

 

Na distribuição do filme Ilegal (Brasil, documentário, 2014), por exemplo, foram investidos 120 mil reais para a obra entrar em cartaz comercialmente. Nos cinemas, o filme foi visto por 5.659 espectadores. Enquanto isso, 16 mil reais investidos na distribuição em circuito não comercial e independente geraram 5.683 espectadores com impacto social (em sessões seguidas de debate e rodas de conversa sobre o filme). O saldo desses dois investimentos em termos de retorno financeiro e público atingido leva a refletir sobre a necessidade de um debate maior e integrado sobre formas atuais e novos caminhos de investimento em distribuição, contabilização e formação de público – além do retorno financeiro.

 

Pensar em público de cinema no Brasil, portanto, é pensar nos fatores de contagem a partir das condições relativas do mercado e de novas possibilidades que possam abarcar a realidade de público das obras audiovisuais lançadas no país.

 

Para contribuir com este debate, Intervozes e Taturana Mobilização Social vão realizar nesta quarta (04), às 19h, em São Paulo, a roda de conversa “Exibição Audiovisual em Perspectiva”. O evento conta com o apoio do Cineclube Jiló na Guela e da TV Drone, que transmitirá o debate ao vivo em sua página, e com a participação da SPCine, que relatará sua experiência de democratização de acesso ao cinema em São Paulo. Participe!

 

- Livia Almendary é sócia-fundadora da Taturana Mobilização Social e Marina Pita é jornalista, produtora de conteúdo do documentário Freenet e integrante da Coordenação do Intervozes.

 

02/10/2017

https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/o-brasil-que-nao-se-ve-na-atual-politica-de-distribuicao-audiovisual

 

https://www.alainet.org/es/node/188390
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