A destruição do ser

09/06/2017
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Foto: pintura de Caravaggio
“Narciso na fonte“
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Segundo o mestre alemão Erich Fromm, “o amor é a única resposta sensata e satisfatória à existência humana”. Desta forma, sociedades onde predomina uma racionalidade desumanizadora são sociedades sem amor. Um universo vazio, preso à dogmática do silêncio, sem alma, mecânico.

Mas se o amor é uma resposta aos nossos problemas, a que tipo de amor nos referimos? Em suas obras Fromm sempre aponta uma dimensão ampliada do amar, que vai além da visão reificada do pensamento romântico, no qual nos aprisionamos a um sentimento idílico, de um mundo inventado, distante, formado por seres perfeitos e sem problemas. A nossa riqueza enquanto indivíduos está exatamente na complexidade do ser. Somos multifacetados em tipos, formas de pensar, agir e, inclusive, nas formas de amar.

O amor somente é prejudicial quando patológico. Daí não falamos em amor, mas em doenças emocionais, muitas das quais derivadas da pressão social ou da cultura socialmente imposta. O excesso de amar, por exemplo, quando deixamos de viver para nos submeter a um sentimento reificado e aprisionador, é uma destas formas. A reficiação ocorre exatamente porque, embora sentido de forma intensa e real pelo indivíduo, há uma construção idealizada de relações firmadas entre seres projetados, fruto dos nossos desejos e frustações. Quando os padrões são rompidos, vem o sofrimento, a dor, quando não a violência.

O amar patológico é um comportamente prejudicial ao ser, pois descontruímos a nossa individualidade e construímos regras rígidas de vivência para nós e para outros. Aliás, quando falamos em amar, nunca podemos esquecer que a primeira pessoa a quem devemos compromisso é com nós mesmos. Em muitas das relações abanadonamos o nosso eu e passamos a viver como satélites dos outros, buscando complemento nestes. Contudo, o ser humano não precisa de complemento, mas de troca, de experiências. Somos completos embora imperfeitos. Quando nos relacionamos com outras pessoas é para construir novos elementos de vida, conhecer novos mundos, novas formas de pensar, novas formas de prazer, mas para isto não precisamos destruir a nossa individualidade, pois mesmos pessoas com traços submissos também posuem características que lhes são próprias. Ninguém é pedaço de outrém, salvo em metáfora poética.

Nenhum relacionamento sólido se edifica com a projeção da vida sobre outra pessoa. Se não amarmos a nós mesmos, não somos efetivamente capazes de amar alguém, pelo menos de forma sadia. A buscade complementos em terceiros é um caminho para a autodestruição, o que torna os relacionamentos insuportáveis e acaba produzindo uma sociedade com tantos problemas de depressão, ansiedade crônica, dentre outros sintomas de que as coisas não andam bem no âmbito das relações sociais.

Vivemos, de fato, eternamente na busca de aceitação, e este é um subproduto do nosso modelo de organização social que prega o “individualismo sancionado”. Chamo de individualismo sacionado o egoísmo racionalizado, no qual passamos a agir de forma egoista ou egocêntrica em busca de aprovação social. Parece irônico ou contraditório, mas os egos hedonistas que tando desconstroem os arranjos coletivos e socialmente solidários são de pessoas em busca de reconhecimento social ou por seus pares. Não é uma contradição simples, mas uma construção do meio de pensar dominante que é fortemente projetada pelos meios de comunicação de massa e por agendas educativo-profissionais como regras e estratégias de controle.

Assim, somos livres por “ter”, e não por “ser”. De acordo com este modelo de pensamento, ao adquirirmos coisas, consumirmos bens ou pessoas no mercado de relações sociais, nos tornamos efetivamente livres. A sociedade de consumo de massas é uma sociedade hedonista, individualista e, ao mesmo tempo, aprisionada. As formas de organização social que apregoam o coletivo e transformam o prazer como parte da vida, uma parte importante, é verdade, são vistas como atrasadas, superadas pelo tempo, embora mais livres do que os nossos “egos hedonistas” contemporâneos.

Não é por acaso que a tanto almejamos a liberdade e quando a alcançamos temos medo de exercê-la. O tempo que tanto buscamos conquistar é perdido com uma espécie de autofragelamento hedonista, um comportamento tipicamente masoquista. Precisamos buscar prazer incenssamente consumindo o que o mercado nos oferece, inclusive o “mercado dos sentimentos”, nos tornando seres voláteis e esvaziados. Nada é sólido. Tudo se esfacela. Por isto o sofrimento e o sentimento de solidão.

Isto não quer dizer que não devamos viver a nossa vida intensamente, ao contrário. Pelo menos com a intensidade adequada ao nosso próprio tempo. Ninguém é cópia de ninguém, e todos possuem características pessoas que são identitárias. Devemos viver com qualidade, amar com qualidade, ultrapassar a barreira do imediato e do vazio para valorizar o nosso próprio eu. A nossa submissão às regras do jogo unicamente para ser aceito pela pensar dominante pode acabar desconstruindo o nosso próprio ser individual, criando, assim, indivíduos cada vez mais depressivos e isolados. Incompletos!

Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2017/06/08/a-destruicao-do-ser/


 

https://www.alainet.org/es/node/186054
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