Retomada da ALCA e o fim do Mercosul. De novo?

23/10/2014
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No programa de governo de Aécio Neves, a alternativa ao Mercosul, que ele chama de “coisa anacrônica”, é clara: retomar a ALCA e realizar um acordo com a União Europeia sem o Mercosul, ou seja, fazer exatamente o que Lula interrompeu
O fim do Mercosul: Aécio Neves explicitou sua proposta para o bloco, que classificou como “coisa anacrônica” que “não está servindo a nenhum interesse dos brasileiros”, no Fórum da Liberdade de Porto Alegre em 13 de outubro de 2014.
No programa de governo de Aécio, a alternativa é clara: retomar a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e realizar um acordo com a União Europeia (EU) sem o Mercosul, ou seja, fazer exatamente o que Lula interrompeu.[1]
O acordo com a UE é defendido explicitamente mas, dada sua impopularidade, o programa aborda a retomada da ALCA através de duas propostas: 1) um acordo preferencial com os EUA e 2) “o projeto de criação de uma abrangente área de livre comércio incluindo o México e os países da América do Sul que desejarem juntar-se à iniciativa”.
O passo lógico é integrar os acordos sub-regionais e bilaterais no hemisfério, como sempre propôs os EUA. Essa também foi a proposta neoliberal inaugurada pelo governo Collor, que via o Mercosul como estágio de um programa de liberalização mais amplo.
Como o Mercosul (com Argentina e Venezuela) é hoje óbice para a integração hemisférica, seu destino é a irrelevância – como alegam Armínio Fraga e Rubens Barbosa, prováveis ministros da Fazenda e das Relações Exteriores em um governo Aécio.
Muitos dos defensores atuais do fim do Mercosul apoiaram a ALCA e a aceitação das exigências dos países desenvolvidos na OMC por tratados que limitam compras governamentais, políticas industriais, controle de capitais e proteção comercial, blindando o neoliberalismo contra governos “intervencionistas”.
De teor neoliberal, o programa do PSDB critica a proteção comercial, a política industrial, o crédito subsidiado, a escassa proteção de direitos de propriedade intelectual e as exigências de conteúdo local das compras governamentais e do Plano Brasil Maior.
Além contribuir para eliminar o “entulho interventor”, os acordos preferenciais com os EUA e a UE são justificados de duas maneiras pelo PSDB: 1) assegurar o aumento das exportações “nos países desenvolvidos, nossos principais mercados de exportação e maior fonte de investimentos e financiamentos externos”; 2) reduzir os custos dos insumos importados “em elos críticos das cadeias produtivas internacionais”.
Embora revestida com caráter de modernidade, a proposta é tão velha quanto a década de 1990. Pelo lado das exportações, o argumento típico foi expresso por Armínio Fraga em abril de 2014 e é repetido com frequência por Aécio: o de que o Brasil precisaria “se reengatar nas locomotivas da economia mundial”.
Se isso podia ser moderno em 1990, é anacrônico depois da crise mundial, quando a contribuição dos países desenvolvidos para o crescimento global caiu a ponto de dar mais razão à prioridade conferida por Lula ao comércio Sul-Sul. 
 
Quanto às cadeias produtivas, o argumento requenta esperança da década de 1990: a ampliação da concorrência forçaria os sobreviventes a incorporar tecnologias e eliminar “gorduras”, ganhando eficiência em “nichos” das cadeias globais.
 
O argumento nada aprendeu com a experiência de países asiáticos que se integraram sem abdicar de políticas industriais, tecnológicas e cambiais ativas. Na década de 1990, o resultado da abertura abrupta no Brasil foi a incorporação rápida de tecnologias importadas e o corte de gastos em geração de tecnologias e capacitação de inovar. Desde então, a indústria tornou-se fortemente integrada às cadeias globais de insumos e bens de capital.
 
Uma nova rodada de integração ocorreu depois de 2008, quando o acirramento da concorrência e a apreciação cambial aumentaram o coeficiente importado nas cadeias de produção, sem levar à elevação das exportações. Por que “mais do mesmo” produziria agora resultados opostos?
 
O critério comercial não é o melhor para avaliar o Mercosul, mas o anacronismo da crítica está em que o Mercosul foi a região onde o saldo comercial menos caiu desde 2008.
 
É verdade que as exportações de maior valor agregado estão sofrendo com os problemas dos parceiros regionais e com a ampliação da concorrência provocada pela crise global, à medida que os países desenvolvidos buscam recuperar-se tomando mercados com recurso à guerra cambial e subsídios.
 
 
A piora do resultado comercial brasileiro no continente, porém, é muito menor do que no comércio com as regiões desenvolvidas. Enquanto o saldo comercial com os EUA e com a União Europeia reduziu-se na média em 17 bilhões de dólares entre 2007 e 2013, tornando-se fortemente deficitário, o superávit comercial com o Mercosul praticamente se manteve.
 
 
 
Isso ocorre, em parte, porque EUA e Europa rejeitam abrir mercado agrícolas, mas insistem na liberalização industrial para sair da crise. As regiões desenvolvidas são sede das matrizes controladoras de filiais no Mercosul e o comércio entre elas se aproxima de uma via de mão única: as filiais importam insumos e bens de capital desde a rede de fornecedores da matriz e produzem para o mercado regional. Por que facilitar a entrada de produtos importados seria suficiente, sem políticas industriais, para inverter o fluxo?
 
Não surpreende que EUA e UE manifestem insatisfação sempre que o Brasil (ou a Argentina) procura preservar e adensar cadeias industriais: em 2014, a UE fez consulta sobre a adequação do programa Inovar-Auto às regras da Organização Mundial do Comércio. Este programa oferece incentivos fiscais para montadoras que melhorem a eficiência energética dos automóveis e aumentem o valor agregado substituindo importações. Em meio à crise global, qualquer iniciativa do governo brasileiro que influencie o comércio intra-firma tende a gerar insatisfações nas sedes das matrizes.
 
Que se abstraia a existência de conflitos de interesses entre os proponentes da abertura – Fraga dirige uma empresa do grupo JP Morgan enquanto Barbosa é diretor do Albright Stonebridge Group. Mesmo assim, como rejeitar a ideia de que o fim do Mercosul e a abertura para EUA e UE não respondem a objetivos nacionais mas sim à ideologia neoliberal dos economistas do PSDB?
 
Prescindir do Mercosul implicaria enfraquecer as exportações brasileiras, diminuir a atratividade do investimento na região e ampliar seu perfil importador de produtos de maior valor agregado. Como diretor do conselho de comércio externo da Fiesp, Rubens Barbosa proporia rebatizar a Fiesp de Federação das Importadoras do Estado de São Paulo?
 
Nota
 
[1] Segundo o programa do PSDB, p. 11: “A partir do final da década de 1990, enquanto o Mercosul entrava em um longo período de paralisia, o Brasil aprofundava negociações com seus mais importantes parceiros entre os países desenvolvidos: a União Europeia e os EUA (este, no âmbito da Alca). São precisamente essas iniciativas de negociação que sofrem o impacto da revisão de política externa do Governo Lula. O Brasil dá a sua contribuição para o fracasso da Alca e as negociações com a UE param, em 2004.”
 
Pedro Paulo Zahluth Bastos
 
É professor associado (Livre Docente) do Instituto de Economia da Unicamp e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE
 
 

 

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