Koupe Tèt, Boule Kay

04/04/2011
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Soube que em Nova Iorque
Na esquina da Rua 26 com a Broadway
Todas as noites do inverno há um homem
Que arranja abrigo noturno para os que ali não têm teto
Fazendo pedidos aos passantes.
 
O mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos
Mas alguns homens têm um abrigo noturno
Por uma noite o vento é mantido longe deles
A neve que cairia sobre eles cai na calçada.
Não ponha de lado o livro, você que me lê.
 
Alguns homens têm um abrigo noturno
Por uma noite o vento é mantido longe deles
A neve que cairia sobre eles cai na calçada
Mas o mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos
 
(Bertolt Brecht – O abrigo noturno)
 
Enquanto uma nova tragédia não traz mais uma vez o Haiti aos holofotes dos noticiários internacionais, o final do mês de março parece ser bastante apropriado para retomar alguns temas obscurecidos pela doença imposta a todos nós, explorados: o mal da memória curta. E seletiva.
 
Não que se comemore a passagem de algum furacão ou terremoto. Ou o início de uma nova epidemia. Ou o retorno do ex-presidente Jean Bertrand Aristide às vésperas do segundo turno das conturbadas eleições presidenciais no país. De fato, o motivo de se escolher o mês de março deve-se a um evento que, paradoxalmente, não ocorreu em solo haitiano. Transcorreu a milhares de quilômetros dali, em Nova Iorque, na sede das Nações Unidas, no dia 31 de Março de 2010.
 
Paradoxal, pero no mucho, diríamos em nosso portunhol latino-americano. Já que desde o primário fomos informados que durante boa parte de nossa história o futuro de nossos países foi decidido em gabinetes e palácios do outro lado do Oceano Atlântico. Mas, de acordo com os livros de história, tudo isso acabou no século XIX com o fim das colônias e o processo de independência das nações americanas.
 
Bem, ou o século XIX ainda não acabou ou os tais livros estavam errados, porque no dia 31 de Março de 2010 o futuro do Haiti foi mais uma vez selado desde afuera, durante a Conferência Internacional de Doadores Rumo a um Novo Futuro para o Haiti.
 
Aliás, parafraseando o presidente responsável por enviar o exército brasileiro para liderar a ocupação militar da MINUSTAH em 2004, nunca na história uma conferência recebeu nome tão condizente com seu verdadeiro propósito.
 
Nela, a comunidade internacional – leia-se EUA, Canadá, União Européia, seus bancos e instituições humanitário-financeiras – definiu não só como seria a reconstrução do país depois do terremoto de 12 de Janeiro que vitimou mais de 300 mil pessoas e destruiu o equivalente a 120% do PIB haitiano, mas também estipulou a quantia e o tempo necessários para efetivá-la: U$ 9,9 bilhões, despendidos durante cinco anos.
 
Obviamente que para comandar uma tarefa de tamanho porte seria preciso escolher uma pessoa que cumprisse dois requisitos básicos. O primeiro deles: possuir a confiança da comunidade internacional. E por confiança entenda-se aplicar sem pestanejar o que for determinado pelas instituições financeiras credoras em sua eterna missão de manter subdesenvolvidas as economias subdesenvolvidas. 
 
Nesse momento da Conferência, é provável que um dos poucos haitianos presentes tenha coçado as mãos em ansiedade: “esse sou eu”, pensou com seus botões Renè Preval, o então presidente haitiano. Entretanto, para sua frustração, Preval não se encaixava no segundo pré-requisito, fundamental para a tranqüilidade dos doadores estrangeiros: não ser haitiano.
 
Foi então que o nome do ex-presidente estadunidense Bill Clinton foi ventilado e se tornou rapidamente incontestável. Afinal, o marido da Hillary já era Embaixador da ONU no Haiti e por mais de uma vez tinha demonstrado sua preocupação e empenho com o bom caminhar do neoliberalismo na pequena ilha. Bill Clinton se tornou então o presidente do Conselho Provisório para a Reconstrução do Haiti (CIRH). Com isso, herdou o poder de aprovação e veto sobre toda e qualquer obra de reconstrução no país.
 
Passado um ano desde a Conferência, chega a hora de Clinton prestar contas de seu primeiro ano de atuação. Mesmo recebendo menos da metade dos US$ 2,1 bilhões previstos para 2010, os resultados são animadores. Afinal, irrisórios 5% dos escombros foram retirados até agora. O palácio presidencial, bem como os 30 ministérios, 50 postos de saúde, 1.300 escolas – o equivalente a 60% das infraestruturas do governo – que sucumbiram no terremoto, continuam em ruínas. Dos 1,5 milhão de pessoas desabrigadas, apenas 30 mil conseguiram ser transferidas para uma nova casa, o que equivale a impressionantes 2%! Isso sem falar na epidemia de cólera, que já matou mais de 4.500 haitianos[1].
 
“Já estamos acostumados com as promessas da comunidade internacional. Não é a primeira vez que estamos enfrentando problemas e já temos muitas promessas da comunidade internacional acumuladas. Ela nos oferece seu apoio e o que nos dá é uma ocupação”, afirma Gerald Mathurin, uma das principais lideranças camponesas haitianas, sobre a conjuntura atual do Haiti.
 
Mas a fala de Mathurin, bem como as ações de Clinton e companhia, são reflexos de uma realidade que teve origem muito tempo atrás. 95 anos, para ser mais exato.
 
Se alargarmos nossa memória, retornando a essa época para compreendermos seu surgimento e desenrolar, poderemos quem sabe lançar novas luzes sobre os problemas atuais. É o objetivo do presente texto.
 
II
 
“O problema maior de tudo isso é que algumas dessas pessoas, com um pouco de recurso e educação, pensam que são tão boas quanto nós”.
 
Essa foi a opinião expressa por um dos oficiais do exército estadunidense sobre o povo haitiano. Quem a ouviu e divulgou foi outro norte-americano: James Weldon Johnson, membro da National Association for the Advancement of Colored People.
 
Corria o ano de 1920 e Johnson visitava o Haiti para entender quais as conseqüências da ocupação militar norte-americana na pequena ilha caribenha, que já perdurava cinco anos. Suas impressões foram publicadas numa série de reportagens do jornal The Nation, depois compiladas num folheto intitulado Self-Determining Haiti[2] e constituem um importante documento histórico para compreender os motivos e conseqüências da primeira ocupação norte-americana no Haiti, que durou de 1915 a 1934.
 
Johnson nos recorda que em 28 de Julho de 1915, 20.000 Mariners estadunidenses desembarcaram e ocuparam Porto Príncipe. Sua justificativa oficial era de que tal intervenção se baseava em objetivos puramente humanitários, já que um trágico golpe de estado havia causado a deposição e morte do Presidente Vilbrun Guillaume Sam, além da execução de prisioneiros políticos. O governo estadunidense se viu então obrigado ocupar o país e manter suas tropas em território haitiano desde então para pacificar o país e preservar a ordem[3].
 
A história oficial não divulgou, infelizmente, que o National City Bank of New York era o principal investidor dos Estados Unidos no Haiti àquela época, exercendo total controle sobre o Banco Nacional do Haiti ao conceder empréstimos a juros exorbitantes para que o governo haitiano pudesse pagar seus débitos junto aos próprios bancos norte-americanos e franceses[4], numa espiral sem fim de endividamento.
 
Os livros de história tampouco divulgam que, temendo a influência de outras potências européias – a Alemanha, por exemplo, cujo capital se expandia cada vez mais na ilha – o governo dos Estados Unidos, sempre em parceria com o National City Bank, tentava submeter o Haiti a uma intervenção ‘pacífica’ já um ano antes do desembarque dos Mariners.
 
No final de 1914, os Estados Unidos informaram ao governo do Haiti que estavam dispostos a reconhecer o recém-eleito presidente Theodore Davilmar tão logo uma comissão haitiana se dirigisse a Washington para assinar “protocolos satisfatórios”[5]. O governo de Theodore se negou a assinar tais protocolos alegando que “os interesses da nação não seriam regidos por nenhum poder estrangeiro”.
 
Dois meses depois, o presidente Theodore foi deposto e Vilbrun Guillaume eleito seu sucessor. Um Enviado Extraordinário de Washington chegou ao Haiti o mais rápido possível para comunicar a Guillaume que sua administração não seria reconhecida pelos americanos a menos que o Haiti aceitasse e assinasse os tais “protocolos”. Acuado, o governo haitiano apresentou uma contra-proposta, que não teve tempo de ser discutida já que nesse ínterim o presidente Guilaume foi deposto e assassinado.
 
É por isso que, de acordo com Johson, a queda de Guillaume e o massacre de prisioneiros políticos não constituíram a causa da ocupação norte-americana. Foram apenas a oportunidade esperada para uma intervenção que já se planejava.
 
Desde o primeiro momento em que tomaram o controle do Haiti, a atitude dos militares americanos foi a de lidar com um território conquistado. As forças armadas haitianas foram desarmadas e o Palácio Nacional transformado em quartel general da Ocupação. Depois de selecionarem um novo presidente para o país, foram tomadas todas as providências necessárias para que o governo haitiano assinasse o protocolo através do qual abria mão de sua independência. Através dessa convenção – a mesma que foi peremptoriamente recusada em 1914 – todas as finanças do Haiti ficariam sob o controle dos americanos e todos os fundos e impostos coletados durante a Ocupação seriam depositados e geridos pelo National City Bank of New York.
 
Um governo do, para e pelo National City Bank.
 
Mas mesmo com um acordo que praticamente despiu o Haiti de sua soberania, a Constituição da República ainda apresentava alguns embaraços para o devido cumprimento de suas proposições. Fechado o Congresso, as forças de Ocupação convocaram um plebiscito popular para a aprovação da Nova Constituição. Sob os rifles dos Mariners, o resultado do plebiscito foi unânime pela aprovação das modificações. A principal delas foi a retirada do dispositivo constitucional que proibia estrangeiros de adquirirem terras em território haitiano. Além disso, um “Artigo Especial” foi incluído ao final da Constituição, declarando que:
 
“Todos os atos do Governo dos Estados Unidos durante sua Ocupação Militar no Haiti são ratificados e confirmados.
 
Nenhum haitiano poderá ajuizar ação civil ou criminal contra ato ordenado pela Ocupação ou por suas autoridades.
 
Os atos das cortes marciais da Ocupação não serão sujeitos a revisão, o que não exclui o direito ao pedido de perdão.
 
Os atos do Poder Executivo (o Presidente) a partir da promulgação da presente constituição serão considerados ratificados e confirmados.”[6]  
 
Comentando essas “mudanças constitucionais”, Johnson afirma que “essa é a ordem cronológica dos principais passos através dos quais a independência de uma república é tomada, seu povo é submetido a uma dominação militar estrangeira contra a qual não possui defesa e assim se vê exposto à dominação econômica estrangeira contra a qual também são completamente indefesos.” [7]
 
De fato, com a ocupação americana em 1915 cria-se um Estado totalmente dependente e um exército que obedece às ordens que vem diretamente do Departamento de Estado em Washington, realizando assim a substituição da dependência do Haiti ante as potências européias pela dependência direta aos Estados Unidos. E essa será a tônica que comandará o Haiti até os dias de hoje.
 
III
 
Mas nem só de imposição é feita uma Ocupação. Ao governo dos Estados Unidos era preciso mostrar que além da pacificação do país a presença estadunidense trouxe algum progresso e desenvolvimento à pequena ilha. E o carro-chefe da publicidade americana nesse período foi a construção da rodovia que ligaria a capital Porto Príncipe a cidade de Cabo Haitiano no extremo norte do País. 
 
De fato, a construção desta rodovia foi uma obra monumental, mesmo que seu objetivo fosse menos o de facilitar o transporte dos haitianos do que criar um corredor militar que garantisse o transporte dos suprimentos e das tropas americanas de um extremo a outro da ilha.
 
Sendo a principal obra de infra-estrutura realizada pela ocupação norte-americana, o importante não é discutir sua função, mas sim seu método de construção. Ele sim não deixa dúvidas sobre o real papel que exerceram – e exercem – as forças estrangeiras no Haiti.
 
Para recrutar a mão-de-obra necessária à construção da rodovia, os Mariners e sua engenharia de ponta decidiram ressuscitar uma antiga lei haitiana, em completo desuso: o corvée.
 
De acordo com o corvée, cada cidadão haitiano deveria trabalhar um determinado número de dias para ajudar na manutenção das rodovias públicas. Na época em que esta lei esteve em vigor, nos primeiros anos pós-independência, o governo haitiano nunca requereu que os cidadãos trabalhassem em rodovias fora de suas próprias comunidades e num número de dias que não ultrapassava três a cada ano.
 
Não foi o que a Ocupação fez. Ao contrário, instaurou um verdadeiro reino de terror entre os camponeses haitianos, recrutando homens onde quer que os encontrasse. Nas palavras de Jonhson: “Pelo dia ou pela noite, enquanto trabalhavam em suas pequenas lavouras com suas famílias ou mesmo quando caminhavam inocentemente pelas estradas, os haitianos foram convocados e levados à força por meses a fio para trabalhar nos rincões mais distantes do país, sem que nenhum parente ou familiar recebesse qualquer informação de seu paradeiro. Os que protestavam eram torturados. Os que tentavam escapar eram abatidos a tiro”.[8]
 
Devido a essa prática digna dos tempos mais crus da escravidão, muitos camponeses fugiram de suas terras e foram se esconder nas montanhas. Outros decidiram se rebelar, preferindo a morte à escravidão. Os camponeses que se rebelaram e se armaram para enfrentar os abusos da ocupação americana foram chamados de ‘bandidos’ pelo exército ocupante, mas entre a população haitiana eles eram reconhecidos por outro nome: os Cacos, liderados por Charlemagne Péralte.
 
Natural de Hinche, região central do Haiti, Péralte ocupava o cargo de chefe militar da cidade de Léogane quando os Mariners estadunidenses invadiram o país em julho de 1915. Contrário à rendição e impedido de lutar, Péralte foi obrigado a se refugiar em sua cidade natal para cuidar das terras de sua família. Em 1917, acusado de ajudar camponeses que se rebelaram contra a prática do corvée, foi sentenciado a cinco anos de trabalhos forçados. Logo consegue escapar e no mesmo ano, junto com um grupo de camponeses rebeldes, dá inicio a uma resistência armada contra as tropas de ocupação estrangeira. Era o início da Guerrilha dos Cacos.  
 
Em pouco menos de um ano, os Cacos já ultrapassavam a casa dos milhares e haviam declarado um governo provisório no norte do Haiti. Em cartas publicadas[9] durante o ano de 1919, Péralte conclama:
 
 “Povo do Haiti, em breve um dia como o 1º de Janeiro de 1804 surgirá. Por quatro anos a Ocupação tem nos insultado constantemente. Cada manhã ela nos traz uma nova ofensa. (...) Hoje nós perdemos a paciência e reclamamos nossos direitos, direitos ignorados pelos inescrupulosos Americanos, que destroem nossas instituições e privam a população haitiana de todos seus recursos, devorando nosso nome e nosso sangue. Por quatro anos, cruéis e injustos Ianques trouxeram ruína e desesperança para nosso território (...). Nós estamos preparados para sacrificar tudo para libertar o Haiti e estabelecer aqui os princípios afirmados pelo próprio Presidente [dos Estados Unidos] Wilson: os direitos e a soberania das pequenas nações. Notem que, se as tropas americanas seguirem suas próprias leis, elas não têm nenhum direito de lutar contra nós.”
 
Mas o Mariners estadunidenses não concordavam com Péralte e em resposta a Guerrilha dos Cacos organizaram uma feroz contra-insurgência, utilizando inclusive aviões de guerra, que arrasou vilarejos, destruiu comunidades inteiras e matou milhares de haitianos.
 
De acordo com dados dos próprios Mariners, somente no período de março a novembro de 1919, mais de 3.250 “bandidos” foram assassinados. Dentre eles, o próprio Charlemagne Péralte que, traído por um de seus oficiais, foi assassinado a sangue frio por soldados americanos no dia 31 de Outubro de 1919.
 
Para desmoralizar a população haitiana, as tropas estadunidenses tiraram uma foto do corpo de Péralte pendurado numa porta e a distribuíram por todo o país. Mas o efeito foi o oposto. Traído e assassinado ao 33 anos de idade, Charlemagne Péralte ganhou dimensão de mártir e herói para toda a nação haitiana.
 
Benoit Batraville, que tomou o lugar de Charlemagne Péralte como líder dos Cacos, resistiu por mais um ano, até que foi assassinado em maio de 1920, levando com ele o último foco de resistência da Guerrilha dos Cacos.
 
IV
 
A Guerrilha dos Cacos, mesmo derrotada, disseminou em toda sociedade haitiana um forte sentimento nacionalista em defesa da libertação do país. Se a ferocidade da Ocupação estadunidense não permitia um novo confronto armado, a saída encontrada por uma parcela desta população inconformada foi estender sua atuação para o terreno da cultura.
 
Na década de 20 nasceria então aquele que pode ser considerado um dos movimentos culturais mais importantes do Caribe, o Indigenismo.
 
“É ridículo tocar flauta em um país onde o instrumento nacional é o potente tambor”[10] afirmava o programa do Movimento Indigenista Haitiano, lançado no primeiro número de La Revue Indigène, em 1927. A meta principal dos indigenistas era a reconstrução de uma imagem positiva do Haiti e a recusa de uma consciência importada. Para eles, a herança africana presente no sangue de todos os haitianos era motivo de orgulho e não, como queriam fazer crer as forças de ocupação e a intelectualidade colonizada, “sobrevivência desprezível de um estado primitivo e atrasado”. 
 
Essa valorização da origem africana e a preocupação com a constituição de uma literatura nacional já se antevia na geração anterior de escritores surgida no final do século XIX, que se organizou em torno da revista La Ronde e teve em 1901, com a publicação do poema Dez Homens Negros de Etzer Vilaire, seu expoente máximo.
 
No entanto, seria a partir da Ocupação estadunidense em 1915 e da resistência dos Cacos que esta consciência nacional haitiana ganharia força no campo das artes. Em 1916 foi fundada a Revista da Liga da Juventude Haitiana, sucedida por La Nouvelle Ronde, La Trouée, até o lançamento da La Revue Indigène, no final de 1927.
 
Analisando o Indigenismo Haitiano, Zilá Bernd informa que “como no Haiti indigène era equivalente a negro, uma vez que o genocídio dos índios fora praticado desde os primeiros séculos após o descobrimento, a reivindicação do indigenismo consistia num retorno ao próprio país, numa volta ao que havia de mais autêntico e, conseqüentemente, menos europeu: a origem africana da população”[11].
 
Buscando “o ponto de vista haitiano das questões”, os indigenistas enfatizavam “o que é nosso” sem cair, contudo, no pitoresco, no destaque excessivo à cor local. Em contrapartida, propunham que a literatura deveria refletir “as reações de nossa sensibilidade dolorosa ou comovida”.
 
O escritor Jacques Roumain, um dos fundadores do Indigenismo, escreve em um poema publicado na La Revue Indigène:  
 
“Eu saio de mim
Para ouvir uma voz
Tênue e triste como um perfume
Tenho medo do sono
Creio que minha dor
Me embalará como uma canção” [12]
 
Ao falar da obra de Roumain nesse período, Bernd afirma que ele “dedica seus poemas ao ‘solo haitiano’ e ao sofrimento de seus compatriotas, a cujas vozes o eu-lírico se une para exprimir o desejo de lucidez, de vigilante participação”.[13]
 
Eis, em síntese, o limite do Movimento Indigenista – e por tabela de todo movimento cultural com pretensões meramente nacionalistas ou de fortalecimento dos “valores negros”.
 
É claro que não se pode menosprezar a importância da valorização da herança africana e da cultura popular afro-haitiana numa conjuntura de ocupação militar estrangeira com uma política de estado fortemente racista.
 
Mas isso não é o bastante. E o motivo é simples: a compaixão do eu-lírico pelo sofrimento de seus compatriotas não tem o poder de acabar com o sofrimento de seus compatriotas. Belos poemas podem ser escritos, revistas modernistas publicadas, coletâneas e reconhecimento internacional, mas a opressão permanecerá.
 
É óbvio que não é possível prescindir da cultura quando se quer atuar na transformação da sociedade. Mas a atuação cultural por si só não salva, não transforma. Isso só acontece quando ao eu-lírico se soma o eu-político. Ou, alegoricamente, quando o poeta Indigenista se soma ao guerrilheiro Caco[14].
 
Se nem os Cacos nem os Indigenistas conseguiram derrotar a opressão estrangeira, não é preciso sair do Haiti para encontrarmos um exemplo de fenômeno social que, ao somar o cultural ao político, a mística à prática, foi capaz de derrotar os principais exércitos de sua época e ajudar na liberação de seu povo: o vodou haitiano. 
 
V
 
Na noite de 14 de Agosto de 1791, cerca de duzentos escravos e escravas se reuniram nas matas de Bwa Kayiman, extremo norte do Haiti. Cada uma dessas pessoas havia sido convocada pessoalmente em diferentes rincões da ilha. O homem que deu origem a essa convocatória se chama Boukmann. Ele é um Hougan, sacerdote principal do Vodou. Dentre os presentes estão todos os futuros comandantes da Revolução Haitiana, como Jean Jacques Dessalines, Toussaint Louverture e Capois La Mort. Boukmann explica que foram os Lwas, espíritos do vodou, que decidiram reunir todos eles. Não para pedir-lhes algo, mas sim para comunicar-lhes da decisão dos Lwas: iniciar a batalha pela libertação do Haiti. Com o sangue proveniente do sacrifício de um porco, um pacto secreto e sagrado é selado entre os presentes na cerimônia. Um pacto que transcende a vida e a morte, entre eles e os espíritos, que garantiria o triunfo sobre o inimigo estrangeiro.
 
13 anos depois da Cerimônia de Bwa Kayiman, derrotando os três maiores exércitos da época – Espanha, Inglaterra e França –, os negros e negras haitianos levam a cabo em 1804 a primeira revolução de escravos vitoriosa da história e declaram o Haiti território livre e independente.
 
Mas, afinal, que religião é essa na qual os vivos e os espíritos caminham juntos em busca da liberdade de seu povo?
 
Com sua origem entre os escravos do antigo Egito, cultivada por distintas etnias africanas, o vodou, nas palavras da pesquisadora venezuelana Jenny Gonzalez Muñoz[15], “é um viajante que acompanhou os escravos africanos na longa travessia a bordo dos navios negreiros”. Muñoz acrescenta que “ao chegar às terras que constituem atualmente o Haiti, esta crença ou prática religiosa se enriquece com os aportes nativos e europeus. Seu culto se focaliza em gênios e deuses como uma homenagem aos Lwas, que transcendem a forma material humana ou animal, em um ato de fé onde os Hougan e os Bòkò, quer dizer, os sacerdotes e os médiuns, se convertem em verdadeiros canais de comunicação entre os seres transcendentais e os terrenos”.
 
Ao trazer o sobrenatural para a realidade cotidiana, colocando os espíritos dos ancestrais lado a lado com os viventes, o vodou se configura numa ferramenta de união e identidade entre os escravos haitianos, criando assim uma solidariedade possível somente quando se compartilha algo que os une desde o além. É por essa razão que o vodou ganha força crescente na ilha como uma forma de organização que aglutina as tendências emancipatórias e revolucionárias. Esclarece González Muñoz que “sob a figura do vodou e do kreyòl, o primeiro como fé que tem como denominador comum a procedência e as condições de seus fiéis, e o segundo como idioma único não compreensível para os europeus, se cria uma espécie de cumplicidade entre os escravos”. Essa cumplicidade incompreensível se converterá num poder que se lançará contra o inimigo para imprimir-lhe o temor e a derrota.
 
Não seria errado afirmar, dessa forma, que ao conjugar o transcendental e o terreno, a fé e a prática, a mística e a política, as palavras e sons sagrados do vodou foram o ponto crucial da libertação do povo haitiano.
 
Nos dias de hoje, as estatísticas oficiais indicam que 80% dos haitianos se declaram católicos, 16% protestantes e apenas 3% vodouizantes. Esses dados, entretanto, não indicam a verdadeira força do vodou entre o povo haitiano. Lidando com o forte preconceito que ainda persiste contra os vodouizantes declarados, não é raro encontrar um haitiano ou haitiana que se proclama cristão, freqüenta missas e cultos pela manhã, e no calar da noite busca os tambores vodou no meio das matas para dançar e cultuar os Lwas.
 
Mas não é só por essa razão que se pode medir a força do vodou. Presente principalmente no meio camponês, que representa 66% da população haitiana, o vodou se expressa por outras formas além do culto aos Lwas. Uma dessas expressões é o Rara, que engloba danças, ritmos e instrumentos musicais nascidos da junção entre as celebrações vodouizantes e os mutirões de trabalho nas roças camponesas. Com presença garantida em todas as festividades no meio rural, o Rara tem no mês de abril o seu momento de ápice, quando concursos e festas de rua se espalham por todo o campo haitiano, com bandas e grupos Raras que arrastam milhares de seguidores, naquele que é conhecido como o carnaval camponês do Haiti.
 
Outra função importante desempenhada pelo vodou é na área da saúde. Num país que possui apenas um hospital para cada 200.000 habitantes, os Hougan e Mambò – sacerdotes e sacerdotisas – jogam um papel fundamental no tratamento das famílias camponesas. Detentores do ‘segredo das folhas’, com seu conhecimento ancestral em medicina natural e alternativa, são eles que costumam curar boa parte das enfermidades que assolam os camponeses e camponesas haitianos.
 
De fato, sendo o Estado no Haiti praticamente inexistente e incapaz de estender seus serviços básicos à grande maioria do campo haitiano, o vodou se configura como uma poderosa organização social capaz de articular dentro de si atividades religiosas, culturais, sociais e políticas.
 
Entretanto, seria ingênuo acreditar que o vodou por si só poderia cumprir novamente o papel de principal ferramenta de articulação e organização da atual – e bem mais complexa – sociedade haitiana. Tão ingênuo e anacrônico quanto buscar fórmulas nas experiências dos Cacos ou dos Indigenistas. Afinal, cada momento histórico demanda uma ação original, que pode – e deve – incorporar as vitórias e derrotas das experiências anteriores, mas nunca copiá-las.
A crise por que passa a sociedade haitiana hoje em dia é grave, não restam dúvidas. Mas não é insolúvel. Cabe aos próprios haitianos descobrir que caminho percorrer para reconquistar a soberania nacional. Como está inscrito no túmulo de Jean Jacques Dessalines: “Ao primeiro tiro de canhão, soem o alarme. Cidades desaparecem, mas a nação permanece”.
 
VI
 
Para não concluir:
 
Em 14 de Agosto de 1791
Os negros se reuniram nas matas de Bwa Kayiman
Extremo norte do Haiti
 
Durante uma celebração Vodou
Pela libertação de todos os cativos da ilha
Selaram um pacto de sangue
Invencível
 
13 anos depois
A primeira revolução de escravos vitoriosa da história
 
Desde então, cada 14 de agosto é festejado pelo povo
Como o marco inicial de sua luta por liberdade
 
Passados dois séculos
O Haiti é o país mais pobre das Américas
E sofre com seguidas ocupações militares estrangeiras
 
Mas em 14 de Agosto de 1791
Os negros se reuniram nas matas de Bwa Kayiman
Extremo norte do Haiti
 
Durante uma celebração Vodou
Pela libertação de todos os cativos da ilha
Selaram um pacto de sangue
 
Invencível
 
- Kupe tèt, boule kay é o lema em kreyòl lançado contra a presença estrangeira por Jean Jacques Dessalines no período final da revolução haitiana. Significa ‘cortar cabeças, queimar casas’. 
 
- Thalles Gomes é jornalista e integra o Grupo de Pesquisa Modos de Produção e Antagonismos Sociais (MPAS) da Universidade de Brasília (UnB). Durante os meses de abril a outubro de 2010 percorreu o território haitiano participando das atividades da Brigada Internacionalista da Via Campesina Brasil no Haiti. http://www.youtube.com/watch?v=z7Ywp1QVi1I


[1] Dados fornecidos pela Radio ONU em 18 de Fevereiro de 2011. A epidemia de Cólera se alastrou pelo Haiti a partir do mês de outubro de 2010, quando tropas nepalesas da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) infectaram o Rio Latibonit na região central do país.
[2] JOHNSON, James Weldon. Self-determining Haiti: four articles reprinted from The Nation embodying a reporto f na investigation made for The National Association for the Advancement of Colored People. The Bancroft Library. University of Carlifonia, Berkeley, 1920.
[3] Qualquer semelhança com os “objetivos” da atual MINUSTAH é mera coincidência.
[4] Vale lembrar que desde 1825, devido à pressão e embargos econômicos das potências ocidentais, o Haiti se viu obrigado a pagar uma suposta ‘dívida da independência’ a sua ex-metrópole, França, pela perda de seus escravos. Essa dívida foi orçada em 125 millhões francos, o equivalente a 10 anos de PIB haitiano. O resultado foi que a nova nação se viu inserida num espiral de empréstimos e dívidas, sepultando qualquer possibilidade de soberania econômica. Qualquer semelhança com as eternas dívidas externas que assolam as nações latino-americanas hoje em dia também é mera coincidência.
[5] De certo, um dos ancestrais do “Consenso de Washington”
[6] JOHNSON, James Weldon. Self-determining Haiti, pág. 8. (Tradução do autor)
[7] Idem, pág. 8
[8] Idem, pág 13-14. Algo semelhante ao corvée já começa a ser praticado nas atuais obras de reconstrução pós-terremoto. A WFP (World Food Programme) criou o programa Food for Work, ou Trabalho por Comida. Este programa humanitário utiliza a comida como forma de pagamento pelo trabalho dos habitantes locais e, dessa forma, ataca dois problemas de uma só vez: a fome e o desemprego.
[9] In Bandits or Patriots?: Documents of Charlemagne Péralte, National Archives. Acessado em http://historymatters.gmu.edu/d/4946/ (Tradução do autor)
[10] In BERND, Zilá. Negritude e Literatura na América Latina. Mercado Aberto. Porto Alegre: 1987. Pág. 51
[11] Idem, pág. 53
[12] Tradução do autor para o original: “Je me penche hors de moi/pour écouter une voix/ténue, et triste comme um parfum/J’ai peur du sommeil/Je veux penser à ma douleur/et m’em bercer comme d’une chanson”
[13] BERND, Zilá, pág. 53-54
[14] Divergindo deste argumento em debato no Grupo de Pesquisa MPAS, Rafael Litvin Villas Bôasteceu o seguinte comentário: “os termos de comparação entre a perspectiva emancipatória da arte e da cultura e a dimensão efetiva da luta política não são tão diretos, pois dependem de mediações que garantam, a cada qual, suas devidas forças críticas. No caso brasileiro, por exemplo, temos a paradoxal situação de possuirmos um sistema literário formado (isso quer dizer, maduro, em termos de força negativa, de síntese a partir da acumulação do legado universal e particular), a despeito da não formação da nação. O paradoxo não implica que o sistema seja um descolamento artístico, à deriva do processo em curso. Pelo contrário, se bem trabalhado nos processo de formação, essa autonomia relativa do trabalho artístico pode ser um elemento fundamental na tomada de consciência de nossos dilemas, de nossos impasses, contradições, e na elaboração de um pensamento radical sobre a experiência brasileira, implicado em sua transformação”. A título de observação, no caso do Movimento Indigenista Haitiano, é emblemática trajetória do próprio Jacques Roumain, que abandonará gradativamente os ideais nacional-burgueses que permeavam o Indigenismo, somando-se cada vez mais às lutas populares pelo fim da Ocupação estadunidense, até assumir posições claramente comunistas e ajudar a fundar o Partido Comunista Haitiano em 1934.
[15] MUÑOZ, Jenny Gonzalez. Vaudou: herencia africana en la sangre americana in Memorias de la Insurgencia Afrovenezolana, nº 2. Fundación Imprenta de la Cultura. Venezuela, Maio 2010.
https://www.alainet.org/es/node/148794
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