Além da Alca

28/06/2003
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O recente compromisso conjunto Brasil/EUA de manter o início de 2005 como data para a conclusão das negociações da Alca não significa, de modo algum, que o governo brasileiro tenha abandonado as suas justificadas reservas em relação à proposta do bloco econômico em seu atual formato, as quais foram fortalecidas após a oferta norte- americana divulgada em fevereiro. Com efeito, a oferta do United States Trade Representative (USTR), além de manter a proteção aos "setores sensíveis", introduziu injustificável assimetria nas modalidades de desoneração tarifária com a nítida intenção de discriminar o Mercosul, particularmente o Brasil, no processo negociador. Assim, a proposta norte-americana relativa aos produtos industriais prevê desoneração tarifária imediata para 91% da pauta importadora provinda dos países do Caricom, 66% para as nações da América Central, 61% para os países andinos e apenas 58% para o Mercosul. No que tange aos produtos agrícolas, a assimetria é ainda mais acentuada, pois a oferta prevê desoneração tarifária imediata para 85% da pauta de importações norte-americanas oriunda dos países do Caricom, 65% para a América Central, 68% para os países andinos e somente 50% para o Mercosul. Não bastasse tal assimetria das ofertas, que tende a "bilateralizar" ou "regionalizar" as negociações na Alca, o texto do USTR tornou patente que o governo norte-americano não pretende abrir mão da proteção aos "setores sensíveis". De fato, a proposta apresentada prevê que, para o Mercosul, 35% dos produtos industrializados e 44% dos produtos agrícolas só terão importação desonerada em cinco, dez ou mais anos. Ou seja, em relação a muitos bens, a proteção tarifária e não-tarifária poderá ser mantida indefinidamente. Tal idéia é condizente com os termos da Trade Promotion Authority (TPA), a qual determina que, em relação a mais de 300 "produtos sensíveis", o Congresso norte-americano deverá discutir e aprovar a posteriori quaisquer propostas de abertura do mercado. Na prática, isso significará a manutenção de barreiras em setores "estratégicos". Ressalte-se que muitos produtos de grande interesse do Brasil, como suco de laranja, calçados, aço, carnes etc., estão na lista da TPA. Ademais, a proposta norte-americana não avançou na discussão de temas que são prioritários para o Mercosul e para o Brasil, como os subsídios agrícolas e os direitos antidumping, que representam as principais barreiras às nossas exportações. O governo dos EUA quer que tais assuntos sejam discutidos no âmbito da OMC, onde, normalmente, os interesses dos países desenvolvidos tendem a confluir e confrontar as reivindicações das nações em desenvolvimento. Por outro lado, temas de grande interesse norte- americano, como compras governamentais, serviços e investimentos estão sobejamente contemplados na proposta. A resposta do Mercosul à proposta assimétrica e protecionista norte- americana foi racional e estratégica. O novo governo brasileiro, secundado pelos dos demais países do bloco, acertadamente não apresentou oferta relativa a serviços, compras governamentais e investimentos, optando por remeter a discussão ao seu foro apropriado: a OMC. No que se refere à desoneração tarifária, a maior parte (77,74%) da lista de bens da Nomenclatura Comum do Mercosul teve proteção assegurada por até dez ou mais anos. Criou-se, dessa forma, impasse incontornável nas negociações da Alca, que não será resolvido simplesmente mediante o compromisso com o prazo de 2005. Tal impasse não interessa ao Brasil porque a necessidade de superar a vulnerabilidade externa da nossa economia passa necessariamente pela geração de superávits comerciais alentados. Assim, a maior aproximação aos EUA, o principal parceiro comercial do Brasil, seria útil para expandir nossas exportações. Deve-se ter em mente que o gigantesco mercado norte-americano compra duas vezes mais do que o da União Européia e quatro vezes mais do que o do Japão. Nosso potencial de intercâmbio comercial ainda é pouco explorado, embora já tenhamos superávit de cerca de US$ 5 bilhões. Com o Canadá, por exemplo, economia de escala semelhante à brasileira, os EUA têm um comércio de US$ 500 bilhões, ao passo que, com o Brasil, esse intercâmbio não passou, em 2002, de US$ 25,5 bilhões. O impasse também não parece interessar aos EUA, pois a integração comercial com o Mercosul, particularmente com o Brasil, principal economia da América do Sul, ser-lhes-ia de grande utilidade, principalmente na atual conjuntura recessiva. Afinal, todo mundo sabe que a Alca não existirá, de fato, sem o Brasil. Como solução para o impasse, o governo brasileiro, em conjunto com os governos da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, vem apresentando a proposta de negociar um acordo de livre comércio Mercosul-EUA, no formato 4+1, a exemplo do que o governo norte-americano fez recentemente com o Chile. Em encontro recente que mantivemos com Robert Zoellick, representante do USTR, defendemos essa fórmula negociadora com especial ênfase. Aliás, vimos defendendo essa proposta há muito tempo, pois temos consciência de que, em várias áreas, as economias brasileira e norte-americana são concorrenciais, o que resulta em inevitáveis atritos, que só podem ser bem equacionados em negociações mais estreitas e focadas. Embora tal proposta não possa ser encarada como uma solução milagrosa que teria o condão de desatar instantaneamente o nó górdio do protecionismo norte-americano, ela tem, a nosso ver, vantagens significativas em relação ao formato tradicional da Alca. Em primeiro lugar, a fórmula 4+1 confere maior flexibilidade e agilidade às negociações, já que o número de países envolvidos é bem menor e os interesses, nessas circunstâncias, tendem a confluir com maior celeridade. Em segundo, o formato sugerido pelo governo brasileiro poderia retirar da pauta imediata de negociação temas espinhosos relativamente aos quais Brasil e EUA dificilmente obterão consenso a curto e médio prazo, focando as negociações no acesso aos mercados. Em terceiro, o esquema 4+1, ao simplificar as negociações comerciais, tende a colocar as relações bilaterais Brasil-EUA num patamar mais maduro e pragmático, com evidentes benefícios para ambos os países. Por último, a fórmula proposta pelo Brasil fortalece política e diplomaticamente o Mercosul, que é estratégico para a região. Nesse sentido, o novo governo brasileiro já vem tomando medidas efetivas para reerguer o Mercosul e assumir, com responsabilidade, a sua liderança na América do Sul. Essa nova política externa para o hemisfério está criando as condições geopolíticas necessárias para imprimir mudanças qualitativas nas relações bilaterais Brasil/EUA, colocando-as num patamar de maior simetria e reciprocidade. A proposta do 4+1 coaduna-se perfeitamente com essa nova realidade e, apesar da negativa inicial do governo norte-americano, é a que reúne as melhores condições para produzir resultados positivos para todos. * Aloizio Mercadante, 49, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores e líder do governo no Senado Federal.
https://www.alainet.org/es/node/107793
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