Tentar negociar sem submissão

07/10/2014
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Já se afirmou que o sufrágio universal é uma espécie de termômetro da maturidade dos trabalhadores. Estes, a se julgar pelas eleições de domingo, 05 de abril, estão longe do ponto de ebulição. Mas diversos setores das classes médias foram tomados de uma perplexidade que induz à vontade de mudar de pais, especialmente de São Paulo (este Tucanistão) ou, na falta de alternativas, topar qualquer negócio para evitar que se repita, em dose maior, a ampla votação obtida pela direita capitaneada pelo PSDB. Mas a simples perplexidade não é boa conselheira e pode obscurecer a análise e estimular o capitulacionismo. O objetivo deste texto é estimular o debate com vistas a conclusões rápidas sobre como atuar na segunda fase das eleições a partir de uma perspectiva proletária, popular e democrática. Não existe aqui qualquer pretensão de abordar todas as questões em jogo nem de esgotar o assunto sobre as que forem tratadas.
 
É bastante provável que, em muitos casos, esta sensação de tragédia expresse um forte eleitoralismo, especialmente quando ela também incorpora outro dado inegável: a pífia votação obtida pelas forças que se pretendem transformadoras.
 
A direita crescia dentro e fora do jogo eleitoral
 
De fato, ocorreu um forte avanço numérico da direita, que consolida sua forte presença no parlamento. E se trata de um novo tipo de direita, pois esta não se instala somente no interior de grandes partidos onde o peso fica mais diluído. Ela também se organiza em diversos partidos nanicos vitoriosos, o que lhe confere maior homogeneidade e potencializa sua capacidade de barganha. Eis um alerta para quem propõe reforma política por meio de constituinte exclusiva, achando que os pontos aprovados serão os mais favoráveis às forças voltadas para o destravamento institucional das lutas populares. Pode ocorrer o contrário: em nome das “mudanças”, o quadro institucional mudar para pior, inclusive com maiores empecilhos à existência de partidos e movimentos contrários à ordem estabelecida.
 
O avanço eleitoral da direita já era esperado, até porque, nesta conjuntura de crise capitalista, ocorre, dentro e fora do jogo partidário, em diversos países.
 
No caso do Brasil, este avanço se expressou, por exemplo, mais recentemente na bárbara agressão ao povo do Pinheirinho; na política de pacificação implementada no Rio de Janeiro; na matança sistemática de jovens das periferias das grandes cidades; no extermínio de populações indígenas; na ofensiva das frações burguesas mais vinculadas ao rentismo, ofensiva que impõe sérias capitulações ao governo Dilma e desnorteia importantes segmentos da burguesia interna; no abandono do barco por grandes centrais sindicais com apurada sensibilidade para a direção dos ventos; em rachaduras na base aliada. E, convenhamos, a atual composição do Congresso Nacional e dos legislativos estaduais não é exatamente favorável à esquerda. Em que se fundava a expectativa de que esta realizasse uma grande arrancada nestas eleições?
 
Eleições à moda burguesa
 
Apesar das limitações estruturais impostas pelo caráter burguês do Estado à democracia liberal, em diversos países o movimento operário e popular conseguiu importantes avanços eleitorais. Basta mencionar, no caso da Europa, as conquistas realizadas por partidos comunistas na França e na Itália, além de socialdemocratas de “segunda geração”, ou seja, sem pretensões revolucionárias, na parte norte-ocidental daquele continente. E, na América Latina, a coalizão que levou Salvador Allende ao governo do Chile.
 
Todavia, além da brutal mudança de contexto nos planos nacionais e internacional, é preciso levar em conta que o próprio caráter das eleições mudou. Não nos defrontamos “apenas” com eleições burguesas no mencionado sentido estrutural. Participamos de pleitos realizados sob uma avassaladora presença da burguesia, ou seja, com a burguesia impondo o seu modo de participação eleitoral. As eleições são caríssimas (até 06 de setembro, o grupo JBS, dono da Friboi, era o campeão oficial das “doações” de campanha, cujo principal destinatário era o Partido dos Trabalhadores). E o debate transcorre, no fundamental, em torno de propostas que correspondem mais diretamente aos interesses de frações burguesas, cabendo aos trabalhadores a ingrata posição de calcular, a partir de informações e critérios transmitidos pelos grandes meios de comunicações burgueses, os maiores ou menores prejuízos que terão caso vença esta ou aquele candidatura burguesa.
 
Isto implica isolamento muito maior do núcleo do processo eleitoral em relação às classes populares, exceto no que se refere estritamente ao ato de depositar o voto na urna. Não há mais passeatas, comícios, panfletagem, trabalho voluntário, discussão de ideias (a não ser de modo “artesanal” realizado pelos partidos antissistêmicos). Creio que estas foram as primeiras eleições às quais assisti (o verbo é proposital) sem me deparar com a simples presença de adesivos de candidatos afixados em carros particulares. Os rios Tietê e Pinheiros fedem, mas a cidade está higienizada de propaganda eleitoral. É provável que parte deste quadro mude bastante no segundo turno.
 
Este novo alijamento das classes populares não produz, até agora, percepção direta de irrelevância do processo eleitoral. De modo enviesado, o que cresce é a percepção oposta. A compressão do processo eleitoral em limites tão estreitos aumenta a sensação de desespero de muitos e a apatia de outros, sem que se percebam outras possibilidades de ação política, inclusive durante as eleições.
 
Até o momento, as organizações de esquerda que se pretendem antissistêmicas não conseguiram uma alternativa séria a este processo que não é de caráter fundamentalmente tecnológico, devido, por exemplo, aos novos meios de comunicação ou à chamada reestruturação produtiva. Afinal, no ano passado, as ruas brasileiras foram palcos de amplas manifestações de massas que eclodiram apesar da (e contra a) intensa criminalização por fortes aparatos de violência direta e pelas grandes empresas de comunicação; e recorrendo às chamadas redes sociais. Isto nos leva a um rápido reexame, até por conta dos atuais balanços catastrofistas, de alguns aspectos das manifestações de junho.
 
Esgotamento de um ciclo, com a esquerda e a direita nas ruas
 
Na medida em que estas manifestações materializaram o fim de cerca de dez anos de política meramente institucional no Brasil, elas sinalizam, independentemente de quem vencerá as eleições neste segundo turno, o final de um ciclo. Jovens foram às ruas, enfrentaram pesados aparelhos repressivos, conquistaram ampla legitimidade para suas lutas e reinventaram meios de participação popular que sinalizavam grande margem de autonomia. Isto não surgiu como um raio do céu azul. Lembremo-nos (mais uma vez) da repressão ao povo do Pinheirinho; do sufoco petista à luta do Assentamento Milton Santos; das UPPs no Rio de Janeiro; da greve dos professores das universidades federais; dos embates dos trabalhadores das hidrelétricas na Amazônia; da frustração com os primeiros meses da gestão Haddad, a qual seria, enfim, uma cunha no interior do principal território tucano.
 
Apesar da forte legitimação da “voz das ruas”, não houve qualquer política séria em relação aos transportes coletivos; as seletivas denúncias de escândalos de corrupção aumentaram; a grande imprensa se prestou a uma extraordinária ofensiva do capital rentista e de segmentos da alta classe média contra o governo Dilma, que recuou; e amplos segmentos da burguesia interna foram desconstruídos. O divórcio entre o PT e as massas de classe média e proletária (subproletários inclusos) mais combativas aumentou sem que estas conquistassem qualquer vitória política significativa.
 
É sempre bom lembrar que segmentos de direita da classe média também foram às ruas, chegando, inclusive, a impor séria derrota às esquerdas presentes no que seria a comemoração da vitória do MPL em São Paulo. Tais segmentos reforçaram o sentimento antipetista por pura inclinação ideológica e deram sua contribuição para inflar o voto na direita. Mas seria um equívoco profundo não somente responsabilizar os movimentos contra a elevação da tarifa como isentar o governo petista pelos apuros deste na atual conjuntura eleitoral. E, acima de tudo, a “lição” que milhões de subproletários receberam é que de nada valeram as ações de massa, cabendo ficar à mercê dos “políticos”. Abraços em Sarney, Collor e Maluf. Troca-troca que levou Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos; governador da base aliada chamando popular de otário. Seja Brizola ou Göran Therborn, políticos experientes e teóricos argutos já observaram que o universo de interpelações ideológicas não se limita ao que existe ou não existe, ao bom ou ruim, mas também ao que é possível ou impossível. Os governos petistas são responsáveis por uma tremenda desmoralização ideológica das lutas populares no Brasil. Alckmin e Russomano (os derrotados de 2012) só têm motivos para agradecer.
 
Em situação grave, manter o senso tático e estratégico
 
Por sorte ou azar, as esquerdas que se pretendem antissistêmicas, com frágil capacidade de intervir na conjuntura política, não têm qualquer responsabilidade pelas atribulações do governo petista. Não se trata de negar a gravidade de uma situação em que o candidato preferido das frações rentistas em plena ofensiva contra a burguesia interna tem reais chances de ganhar as eleições. Mas é preciso levar em conta que a burguesia interna é pouquíssimo combativa, exceto no ataque aos direitos dos trabalhadores; que o PT, um partido burguês com forte penetração junto às classes populares, não é de direita mas desliza para a direita; que, mesmo com a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, o panorama institucional será ainda mais conservador do que o vigente. As forças que se pretendem antissistêmicas não possuem qualquer razão para ir a reboque de qualquer frente neodesenvolvimentista, cuja “sensibilidade social” fica no subzero.
 
Eis um bom momento para exercer a autonomia e, nesta condição, se propor a negociar politicamente o apoio crítico à chapa governista. Assunto não falta. Por exemplo: 1) detenção imediata do massacre aos povos indígenas; 2) tolerância zero para o trabalho escravo; 3) combate ao oligopólio dos meios de comunicação; 4) desativação da máfia dos transportes coletivos com vistas à implementação da tarifa zero; 5) reforma agrária e política de habitação popular com ativa participação dos maiores interessados; os sem-terra e os sem-teto; 5) defesa do meio ambiente; 6) aumento progressivo do salário-mínimo e sistema tributário progressivo; 7) auditoria da dívida externa e fim do superávit primário; 8) combate ao racismo e à homofobia; 9) desmilitarização das polícias militares; 10) apoio às lutas emancipatórias femininas, a começar pelo combate ao patriarcalismo; 11) uma política externa soberana que contribua para deslegitimar pretensões imperiais e fortalecer as relações pacíficas entre os povos. .
 
Eis alguns pontos que as esquerdas, caso entrem em acordo, podem propor para uma negociação digna que, sem se colocarem a reboque de uma burguesia interna antipopular, possibilite um apoio crítico à chapa governista e mantenha a autonomia organizativa, política e ideológica de cada organização.
 
Seja qual for o resultado desta tentativa, ela será bastante útil para clarificar as posições das esquerdas no segundo turno e, principalmente, depois das eleições.
 
- Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Política da PUC-SP. Autor de Ideologia nacional e nacionalismo. São Paulo: EDUC, 2014.
 
https://www.alainet.org/es/node/104031

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