Século XXI: Tempo de reinventar a libertação

11/11/2004
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A Bíblia, na sabedoria do Livro do Eclesiastes, diz que "debaixo do céu há momento para tudo, e tempo certo para cada coisa. Tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para plantar e tempo para colher. (Š) Tempo para amar e tempo para odiar. Tempo para a guerra e tempo para a paz" (3, 1-8). No advento do Terceiro Milênio e do século XXI, podemos considerar que o século XX foi, sem dúvida, uma era libertária. Muitos eventos nos permitem caracterizar o século passado como um período de avanço rumo à emancipação do ser humano: as revoluções russa, chinesa, cubana e sandinista; a descolonização da África e da Ásia; a vitória contra o nazifascismo; o movimento estudantil e a revolução cultural dos anos 60; a derrota imposta aos EUA pelo heróico povo vietnamita; a libertação da mulher; o combate à discriminação racial; a defesa dos direitos dos povos indígenas; o fim do apartheid na Africa do Sul e a libertação e ascensão de Nelson Mandela; a Declaração Universal dos Direitos Humanos; Gandhi e a independência da India; a Teologia da Libertação e a participação dos cristãos nas lutas por justiça etc. Tantos sucessos não nos impedem de reconhecer equívocos e derrotas. É tempo da crítica da razão dialética. Se a modernidade exaltou as possibilidades da razão e deslocou a cosmovisão teocêntrica para a antropocêntrica, agora a crise do racionalismo ­ que nos permite vislumbrar a "pós-modernidade" ­ exige que avaliemos os desacertos do processo emancipatório. A queda do Muro de Berlim marca o momento de maior fracasso. Muitos foram os fatores que contribuíram para isso. Vale ressaltar um deles, sobretudo por sabê-lo ainda presente em movimentos latino-americanos: a autocracia. Assim como todo filho carrega, em sua estrutura genética, as características dos pais, a revolução russa herdou marcas da velha ordem czarista que derrubara. Aspectos subjetivos prejudicaram a construção do socialismo como etapa mais avançada de democracia: as disputas de poder, a suposta onisciência do Birô Político, a intolerância frente às críticas e divergências etc. Razões objetivas, como as ações contra-revolucionárias e as difíceis condições criadas pela Primeira Guerra, reforçaram a verticalização das estruturas políticas e sociais, e a simbiose entre nação-Estado-Partido. O Partido viu-se forçado a adotar medidas que não facilitaram a formação de uma sociedade civil e o exercício da consciência crítica. Nesse tempo de recolher as pedras do Muro de Berlim, sabemos que a história nem sempre coincide com os conceitos com os quais a revestimos. O pensamento dialético naufragou em seu cartesianismo positivista ao desconsiderar a importância da subjetividade humana, da experiência religiosa, da arte como transcendência da razão e subversão da linguagem, das formas diferenciadas de propriedade, dos desejos de consumo, dos princípios morais e da dimensão política da sexualidade, enfim, do homem e da mulher novos. Não como "heróis do trabalho", efígie grega de olimpíadas produtivas, mas como sujeitos históricos capazes de atuar, como enfatizava o Che, motivados pelos mais nobres sentimentos de amor. O século XXI promete ser um tempo de síntese dialética. O princípio da indeterminação, que rege a física quântica, nos permite descobrir que, na intimidade atômica, matéria é energia e energia é matéria ­ onda e partícula como duas expressões da mesma realidade. Portanto, já não há razão para retornarmos aos dualismos neoplatônicos que marcaram considerável parcela da atividade política no século XX. Trata-se, agora, de libertar, não apenas a sociedade, mas também o coração humano, a economia e a consciência, aproximando Jesus e Che, Marx e Paulo Freire, de modo a traçar um novo perfil de socialismo que supere os determinismos categóricos e não veja na autonomia dos movimentos sociais, na sociedade civil, na crítica e na pluralidade de estruturas produtivas e distributivas uma ameaça ao seu avanço; pelo contrário, assumir tudo isso como alavancas, sem as quais se perpetuará a defasagem entre Estado e nação, partido e povo, teoria e prática, criando simulacros de sociedade igualitária. Os desafios são profundos e fascinantes. É tempo de debatê-los e enfrentá-los. A prevalência da vida sobre a morte ­ princípio revolucionário número 1 ­ exige de todos nós maior empenho de unidade na diversidade, de modo a ultrapassarmos, o quanto antes, a globocolonização neoliberal que nos ameaça com o espectro de um mundo unipolar sob um governo único, uma polícia única, um pensamento único, impedindo-nos de relegar ao passado a pré-história humana. É tempo de novos paradigmas, novas estratégias, novos valores e atitudes. São exigências para todos nós que admitimos, entre sucessos e vitórias, os desacertos dos processos libertários do século XX e sonhamos com um futuro próximo em que todos os povos tenham saciada a fome de pão e aplacada a fome de beleza - que, ao contrário da primeira, é insaciável, pois são infinitos os desejos do coração humano. * Frei Betto é escritor, autor de "A obra do Artista ­ uma visão holística do Universo" (Atica), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/articulo/110866
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