A Hegemonia do Capital Financeiro

13/12/2019
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Foto: Colectivo +2/Carlos Vera M.
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As recentes manifestações populares que atingiram diversos países nos últimos meses têm chamado a atenção por sua capacidade de mobilização de massas e abrangência geográfica. Certamente este processo exigirá dos analistas ainda muitos anos de estudo e esforço interpretativo para compreender-se seus principais determinantes. No entanto, observa-se que alguns autores têm enfatizado que o conjunto dessas rebeliões expressa o rechaço global às políticas neoliberais e, com isso, estabelecem indiretamente equivalências perigosas entre, por exemplo, as manifestações no Chile e na Bolívia, ou no Líbano e em Hong Kong, para citar alguns exemplos. Mário Sérgio Conte afirma que “o que fermenta é a insatisfação com a política apodrecida. Com o status quo criado pela economia neoliberal. Com a ordem mundial sino-americana. Com a espoliação de milhões por um punhado de bilionários”.[1] É verdade que o autor exclui a Bolívia, mas cita Hong Kong como um dos casos que se enquadram nessa explicação.

 

Ben Ehrenreich propõe mais ou menos a mesma leitura generalizante:

 

Todos os países que vêm enfrentando revoltas populares – e grande parte do resto do planeta – são governados há décadas por um único modelo econômico, no qual o “crescimento” comemorado por poucos significa miséria para muitos e o capital flui para contas norte-americanas e europeias com a mesma certeza com a qual o esgoto flui ladeira abaixo.[2]

 

Tais generalizações indicam a pressa em dar uma resposta simples a um problema complexo e, por isso mesmo, sofre de graves imprecisões. Ignora especialmente a existência de distintas forças sociais e projetos políticos no poder nestes países bem como os diferentes interesses geopolíticos que estão envolvidos em cada caso.

 

Feita a crítica, é preciso reconhecer que especialmente na América Latina alguns casos têm significativas aproximações. As recentes rebeliões populares que atingiram Equador, Chile e Colômbia nos últimos meses são um sinal claro da crise do modelo econômico, político e social da região. No Equador o motivo da revolta foi a tentativa do governo de Lenín Moreno de passar um pacote de reforma trabalhista e cortar o subsídio da gasolina, medidas estas exigidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como condição para a liberação de um empréstimo ao país. No Chile, o movimento iniciou como um rechaço ao aumento da tarifa no transporte público da capital e ganhou contornos insurrecionais de escala nacional contra a política privatista herdada da ditadura Pinochet e aprofundada pelos governos democráticos desde os anos 1990. Já na Colômbia, os protestos se iniciaram em virtude do pacote de medidas de reforma trabalhista, previdenciária, financeira e tributária proposto pelo presidente Iván Duque, além de colocar em pauta a efetivação do acordo de paz com as FARC, cujo principal empecilho parece ser o próprio Estado colombiano.

 

As respostas dos Estados também são equivalentes: autoritarismo presidencial, denúncia de um inimigo interno, declaração de Estado de sítio, escalada repressiva e, em último caso, negociação para ganhar tempo. Estes acontecimentos provocam-nos a refletir teoricamente sobre a dificuldade de manutenção das políticas de corte neoliberal na América Latina. Com diferentes temporalidades, estes três países sofrem com a abertura econômica e financeira, as privatizações de empresas públicas e com a redução da capacidade do Estado em fornecer os serviços públicos básicos, como saúde, educação, transporte e saneamento. No fundo, explicita-se o desinteresse do Estado em garantir o acesso da maioria da população a bens de primeira necessidade. A intensidade da revolta social parece condizente com o agravamento das condições de vida das classes subalternas.

 

Uma das categorias que ajudam a compreender este fenômeno é a da hegemonia. Afinal, o que se vive atualmente no Equador, Chile e Colômbia, e talvez em outras nações da América Latina, parece ser tipicamente uma crise de hegemonia. Ao falarmos de hegemonia estamos nos referindo a formas concretas de exercício do poder de uma classe sobre toda a sociedade. O marxista italiano Antonio Gramsci definiu hegemonia de pelo menos três formas distintas ao longo de sua obra (GRAMSCI, 1968, 1986, 1999a, 1999b, 1999c, 1999d). Uma primeira, que podemos definir como conteúdo ético ou direção moral, diz respeito aos valores e princípios que une os diferentes grupos dominados ao grupo dominante e ao Estado que ele gerencia. Neste caso, o Estado é capaz de manter a ordem social na medida em que sua atuação está em consonância com esses valores e princípios. Um segundo sentido que o conceito de hegemonia carrega é o de constituir-se como um equilíbrio entre coerção e consenso. Esta segunda definição reconhece que a dominação de um grupo jamais pode depender única e exclusivamente do uso da força, ainda que ela seja indispensável. Ao lado da coerção, precisa atuar em certa medida o consentimento dos dominados, seja ele ativo, como apoio efetivo às políticas do Estado, ou passivo, como não rebelião. Por fim, Gramsci ainda expõe uma terceira definição, que é a da hegemonia como política de compensação que o grupo dominante implementa frente aos grupos dominados. Neste último caso, a manutenção do poder por parte de um grupo dependeria da sua capacidade de negociar com os demais e da possibilidade de distribuir-lhes recompensas econômicas, sociais ou políticas.

 

Estas três definições de hegemonia podem ser entendidas também como três dimensões complementares do exercício do poder. A primeira tem por base um conteúdo ético reconhecido socialmente que habilita um grupo a ser politicamente dirigente. A segunda sustenta-se numa combinação mais ou menos equilibrada entre coerção e consenso. Já a terceira tem por base a compensação dos dominados. Assim, a hegemonia pode ser mais inclusiva ou exclusiva de acordo com as condições que a conjuntura oferece. Quanto maior é a capacidade compensatória da hegemonia, mais universalista e abrangente tende a ser o seu conteúdo ético e menor é o papel da coerção em relação ao consenso. Inversamente, quando a capacidade compensatória do grupo dominante se restringe, o conteúdo ético da hegemonia tende a se tornar mais elitista e excludente e o peso da coerção se acentua. Este estreitamento das bases da hegemonia é perigoso e, em períodos de forte contestação social, pode converter-se em crise. Parece ser exatamente esta a mudança que está em curso em nosso continente.

 

 

DIMENSÕES DA HEGEMONIA

 

ÉTICA

COERÇÃO/ CONSENSO

COMPENSATÓRIA

HEGEMONIA INCLUSIVA

Valores universalistas; ampliação da cidadania;

Consenso amplo; coerção seletiva

Amplo espectro compensatório

HEGEMONIA EXCLUSIVA

Valores elitistas; baseada no medo e na força

Consenso restrito; coerção ampla

Restrito espectro compensatório

FONTE: Elaborado pelo autor.

 

 

Embora as forças políticas no Equador, Chile e Colômbia sejam distintas, a inserção deles na divisão internacional do trabalho e a política econômica vigente apontam que estes três países estão crescentemente subordinados aos interesses do grande capital financeiro internacional, sendo esta a fração hegemônica. Couraçada pelo poder estatal norte-americano, esta fração tem atuado na América Latina desde pelo menos os anos 1980 através de um conjunto de instituições internacionais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é à toa, portanto, que a pressão do FMI nos diversos países da região voltou a ser notada como uma efetiva força política.

 

De fato, para compreender a dimensão do problema em que o nosso continente está envolvido, é preciso reconhecer que os governos progressistas que estiveram à frente de alguns desses Estados na década de 2000 não romperam com a hegemonia do capital financeiro herdada da década anterior. Faz-se referência especificamente aos governos de Ricardo Lagos (2000 – 2006) e Michelle Bachelet (2006 – 2010; 2014 – 2018) no Chile, e de Rafael Correa (2007 – 2017) no Equador. Já o caso colombiano é um pouco diferente pois neste não houve governos deste tipo. No Equador e no Chile, assim como no Brasil, Uruguai e Argentina, vale mencionar, o que parece ter ocorrido é que as condições econômicas internacionais favoráveis permitiram a implementação de uma hegemonia inclusiva, com um conteúdo ético mais abrangente e com fortalecimento do consenso. As políticas de inclusão social, de redistribuição de renda e de incentivo às burguesias interiores destes países fizeram parte de um eficiente arranjo compensatório, cujo modelo paradigmático parece ter sido o Brasil de Lula, para o qual a contrapartida foi manter intactas as bases do poder do grande capital financeiro internacional como definidor da inserção subordinada destes países no sistema econômico internacional e no seu circuito financeiro. O conteúdo ético desta hegemonia foi dado por valores e princípios ditados pelos estratos médios ou mesmo por parcelas da classe trabalhadora, com o reforço do sentido de democratização, ampliação da cidadania e universalidade de direitos. A coerção, por sua vez, foi exercida de forma menos generalizada e mais seletiva.

 

Vale ressaltar que a hegemonia inclusiva não foi tanto uma vontade da fração hegemônica e sim uma imposição estabelecida pelas lutas dos grupos subordinados por maior participação. Assim, se é correto afirmar que estas lutas não foram capazes de romper com a hegemonia existente, por outro também é verdade que ela obrigou a fração hegemônica a ceder em diferentes aspectos, tornando a hegemonia mais inclusiva.

 

Contudo, observa-se que se iniciou uma inflexão na conjuntura a partir da grande crise de 2007-2008 que solapou progressivamente as bases econômicas desta hegemonia inclusiva. Tal mudança produziu o endurecimento dos condicionantes da hegemonia do capital financeiro que foi restringindo sua capacidade compensatória, mudando o seu conteúdo ético e incrementando seu caráter coercitivo. O emprego aberto da força torna-se o recurso imediato para conter a escalada da contestação social, o que comprova o aumento da violência militar, paramilitar e policial nos três países mencionados.

 

Esta mudança, no entanto, esteve longe de ser tranquila. Esgotando-se a capacidade compensatória e redistributiva da hegemonia anterior, reforçam-se evidentemente os elementos coercitivos garantidores da ordem. Por outro lado, a mudança é particularmente visível no que tange ao conteúdo ético que o novo arranjo carrega. Se a hegemonia inclusiva sustentava-se na ampliação da cidadania e de princípios universalistas, agora a insegurança da vida material torna viável a fundamentação ética da hegemonia exclusiva com base no medo e na força, que revela-se no crescente poder que as instituições militares e religiosas vêm adquirindo nos países latino-americanos.

 

Esta apresentação panorâmica teve por objetivo meramente demonstrar que o conceito de hegemonia é especialmente importante para a compreensão da situação atual da América Latina. A vantagem de olharmos a dominação de classes sob o prisma da hegemonia é a possibilidade de articular, numa visão totalizante, fatores de natureza econômica, política e cultural que contribuem, cada um à sua maneira, para a reprodução das relações de poder. Em particular, a análise da hegemonia rechaça diversas formas de reducionismo teórico, especialmente o economicismo que tanto afetou a tradição marxista ao longo de sua história.

 

Qualquer forma de hegemonia tem seus limites e é historicamente determinada. A crise atual é, portanto, a escalada da contestação social em relação à hegemonia exclusiva do capital financeiro internacional. Se esta nova forma de hegemonia exclusiva será duradoura em nosso continente, somente o desfecho dos processos ora em curso poderá dizer.

 

- Lauro Allan Almeida Duvoisin (ODELA/ Front)

Publicado originalmente em : https://www.ufrgs.br/odela/2019/12/10/a-hegemonia-do-capital-financeiro/

 

Referências:

 

GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. Tomo 3. Ciudad de Mexico: Era, 1968.

GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. Tomo 4. Ciudad de México: Era, 1986.

GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. Tomo 1. 2a ed. Ciudad: Era, 1999a.

GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. Tomo 2. 2a ed. Ciudad de Mexico: Era, 1999b.

GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. Tomo 5. Ciudad de Mexico: Era, 1999c.

GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. Tomo 6. 2a ed. Ciudad de México: Era, 1999d.

[1] Encontrado em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2019/11/a-terra-treme.shtml. Acesso em 02 de dezembro de 2019.

[2] Encontrado em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/ha-uma-nova-rebeliao-global-por-que/. Acesso em 02 de dezembro de 2019.

 

dez 10, 2019

https://www.front.org.br/2019/12/10/a-hegemonia-do-capital-financeiro/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/203816

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