A era da (des)informação

27/11/2018
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Inspirada na obra Guerra dos Mundos, de H. G. Wells
Foto: Charge do Jornal New Yorker sobre Fake News
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Nas décadas de 1980 e 1990 a emergência do poderoso mercado da informática e da telemática, acompanhado da liberação da rede mundial internet para uso civil, criou uma onda otimista em relação ao futuro e às possibilidades criadas. Intelectuais de todos os espectros ideológicos passaram a falar na aproximação cada vez maior entre cidadãos e cidadãs do mundo (mundialização), no fim das fronteiras políticas, na possibilidade de expansão da democracia com participação direta da população, no fim da precarização das relações profissionais, na sociedade do ócio (Domenico De Masi), na sociedade em rede (Manuel Castells) e tantos outros conceitos que indicavam um futuro melhor.

 

O austríaco Peter Drucker e o norte-americano Daniel Bell, dois egressos do mundo da administração e do marketing, ainda um pouco antes deste período criaram um termo que se tornaria moda na administração, na sociologia e na ciência política para designar o fenômeno da explosão da disseminação de dados e da comunicação: a “era da informação”. O canadense Marshall McLuhan foi ainda mais longe e utilizou duas outras expressões que passaram a ter ainda mais sucesso: “aldeia global” e “globalização”. Todos, na verdade, esperavam um novo mundo comandado pela velocidade do acesso à informação, da grande necessidade de conhecimento e que isto transformaria as relações sociais e do trabalho, aproximando pessoas e diminuindo fronteiras. Para Drucker “o conhecimento e a informação são recursos estratégicos para o desenvolvimento de qualquer país” e, especificamente sobre o Brasil, foi direto: “não creiam que mão-de-obra barata ainda seja uma vantagem”.

 

Passados os anos, o mundo de fato sofreu mutações, mas nem todas foram positivas. As máquinas e a informática promoveram uma nova divisão internacional do trabalho com a exportação das indústrias mais poluentes para a periferia e a concentração do conhecimento nos grandes centros capitalistas. Muitos postos de trabalho foram extintos, outros modificados, mas nem todos os países (com a honrosa exceção de parte da União Europeia e do Japão) avançaram na redução da jornada de trabalho. Na verdade, esta foi expandida e levada para dentro de casa, diminuindo ainda mais o mercado formal de mão de obra. Quem passou a lucrar com a tecnologia e a informação? O mercado financeiro, a indústria militar e a de comunicação de massas, na maior parte das vezes unificados. O espalhamento desenfreado de um boato, mesmo que sem base real, tornou-se capaz de destruir a economia de um país sem reservas monetárias ou com moeda instável. Daí as crises sistêmicas em vários cantos do Globo, o que permitiu concluir que a lógica de Drucker também poderia ser aplicada de forma invertida: “conhecimento e informação na mão de poucos podem destruir com qualquer país”.

 

A Escola de Frankfurt e alguns teóricos estruturalistas já denunciavam no final da década de 1950 o poder das autoridades anônimas na conformação do modo de pensar da sociedade. Roland Barthes, por exemplo, narrou a forma como a indústria, o cinema e o marketing conseguiu transformar as “scooters”, de subproduto do pós-guerra em sonho de consumo da juventude. Eric Fromm destacou a influência da indústria de comunicação de massas na conversão até de pessoas pacíficas em ferozes defensores do nazismo. Já Habermas, relatou o papel da publicidade na reestruturação da esfera pública, substituindo o da imprensa tradicional.

 

Esta unidade entre publicidade e comunicação, nem sempre percebida, é o ponto central para a desconstrução da narrativa inicial de Drucker. Se é verdade que a informação é um bem estratégico, a desinformação também é uma arma e os próprios meios que servem para informar também são instrumentos de desinformação, tudo depende de quem controla os dados, os recursos de produção da informação e da ética (ou falta de) do sistema.

 

A publicidade tradicional objetiva ressaltar os aspectos positivos do seu produto e a sua utilidade, exaltando uma realidade ou criando aquilo que os pós-modernos chamam de hiper-realidade. Esta pode ser uma mera representação simbólica, como a relação entre “scooters” e a juventude, mas as grandes mentiras também nascem assim e o exemplo histórico mais claro é o nazismo, uma grande farsa política derivada de uma gigantesca máquina de propaganda e desinformação, o que resultou em tragédia.

 

Com o crescimento da informática e da telemática o mundo virou um laboratório para a disseminação dos mais diversos tipos de informações. Desde dados sérios e consistentes derivados de pesquisas científicas que foram, realmente, democratizados, informações sobre gestão pública nas políticas de transparência, além de sistemas que abriram brechas à na participação social nas deliberações públicas, até a divulgação de teorias conspiratórias e místicas sem nenhum fundamento razoável.

 

Ocorre que, quando Drucker e Bell conceituavam a “Era da Informação”, o mundo já havia passado por um processo de centralização das grandes agências de notícias, como a Reuters, a France-Presse, a DPA, a AP e a UPI. Hoje, praticamente todas as notícias que circulam em âmbito internacional passam por estas agências, reduzindo a possibilidade de acesso a informações diferentes. A resposta que alguns países ofereceram a este processo foi a criação de grandes redes de comunicação públicas, com participação social, que garantem uma certa autonomia nas notícias e uma contraposição ao modelo dominante, como nos exemplos da britânica BBC e da alemã Deutsch Welle.

 

Entretanto, não são apenas as agências de notícia que trabalham na disseminação de informação e desinformação. Existem grupos que atuam especificamente na produção de notícias para mercados como o financeiro e o político. Isto deve ser somado ao surgimento das redes sociais, o que acelerou ainda mais a divulgação de notícias e de informações. É nas redes sociais que a transformação da imprensa em meio publicitário produz o seu resultado mais drástico, com a restrição de dados e de informações e a conversão de notícias em meras manchetes. Se muitos jornais já pecavam pela superficialidade das notícias, a conversão destas em manchetes, com linguagem mais direta, simbólica e vendável, ocorre uma queda ainda maior no nível da informação, cada vez mais convertida em mercadoria dirigida.

 

Como o mundo telemático reduziu o tempo de vida efetivamente vivenciado, é cada vez mais necessário ler o noticiário rapidamente, acessando o maior número de fontes e neste sentido, a conversão de notícias em manchetes ou símbolos facilita o contato com o público consumidor. Por isto um outro processo deve ser considerado. Se o controle da notícia foi concentrado em poucas agências ou grupos, a sua disseminação ganhou nova roupagem com a expansão artificial do número de fontes. A cada dia são criados novos jornais, principalmente no mundo digital, os quais repetem as notícias já divulgadas pelas agências. É exatamente por este motivo que às vezes existe a impressão que todos os canais de imprensa estão dizendo a mesma coisa, dada a repetição contínua de informações com uma certa organização. A esta organização das notícias é dado o nome de “Agenda”, ou seja, o processo pelo qual as notícias são divulgadas mantendo uma coerência no seu conteúdo visando um resultado de ordem comercial ou política. Muda a aparência, muda o nome, muda a “marca”, mas o conteúdo é o mesmo. É como uma fábrica de cerveja ou de sabão com vários rótulos. A pessoa pode simpatizar mais com esta ou aquela marca, mas está sempre comprando do mesmo fornecedor.

 

Isto também abriu um mercado gigantesco para a divulgação de notícias falsas ou distorcidas para atender a interesses específicos. Exemplo: todo mundo sabe que Saddam Husseim era um ditador genocida, mas nem todos sabem que ele foi apoiado pelo Ocidente na guerra contra o Irã, islâmico. Ou que o Governo Islâmico do Irã chegou ao poder apoiado pelo Ocidente para derrubar o Governo Socialista daquele país que havia derrubado a monarquia. Ou que Husseim só deixou de ser tolerado pela máquina militar dos Estados Unidos porque vendia o petróleo iraquiano em euros e não em dólares, criando um embaraço para as empresas norte-americanas e britânicas e, principalmente, para o mercado financeiro, pois a compra e venda da commoditie nas bolsas de mercadorias estão assentadas no seu preço em dólares. Com a manobra do ex-ditador iraquiano o petróleo ganharia uma certa autonomia na definição dos seus preços, diminuindo o poder político e econômico das grandes economias ocidentais.

 

Da centralização pelas agências de notícias para a criação de todo um mercado especializado na venda de notícias, especialmente falsas, foi um salto rápido. Já podemos falar hoje, com todas as reservas para evitar extremismos, em “ciber-terrorismo de notícias falsas”, as “fake-news”. O roteiro é o mesmo do adotado pelas grandes agências de notícias: cria-se um grupo, normalmente uma ou duas empresas, que produzem as notícias, formam-se fontes de jornais eletrônicos, com nomes diversos, hospedados especialmente em países onde não existam regras rígidas de responsabilidade técnica sobre a informação (como um jornalista responsável, por exemplo), e divulgam-se notícias aos milhares pelas redes sociais, sempre com conteúdo apelativo, uso de símbolos de fácil identificação e baseadas em manchetes, o que dificulta a capacidade crítica do consumidor.

 

Se antes as fake-news estavam concentradas no mercado financeiro, no mundo dos artistas e dos esportes, agora existem empresas especializadas na disputa de poder político. Alguns ensaios foram realizados na chamada primavera árabe e no movimento “Brexit” (que conduziu a saída da Grã-bretanha da União Europeia), mas as duas experiências melhor sucedidas da indústria das fake news políticas foram as eleições dos Estados Unidos e a do Brasil. Foi praticamente impossível mapear todas as notícias falsas que circularam pelas redes sociais, especialmente Twitter, Facebook e WhatsApp. Se antes o domínio da informação era algo estratégico, como afirmava Drucker, aos poucos isto vai mudando para pior, pois é cada vez mais fácil criar informações sem nenhuma base real e espalhá-las, destruindo sonhos, reputações, economias, democracias, governos e países.

 

- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais

 

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2018/11/25/a-era-da-desinformacao/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/196779
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