Placar da política externa de Bolsonaro já está em Ideologia 4 x 0 Brasil

07/11/2018
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Será importante que o governo Jair Bolsonaro recue em seus arroubos ideológicos e cumpra o que prometeu a respeito de uma política baseada nos interesses do país.

 

Ao longo de seu pronunciamento ao grande público logo após eleito, ao vivo na televisão, Bolsonaro, lendo um discurso já escrito, citou um órgão de governo: o Itamaraty . “Libertaremos o Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos.”

 

Uma frase como essa passa algumas mensagens. A primeira, que ele considera a atual política externa como “ideológica”. A segunda, que ele considera seus próprios projetos para o Itamaraty como sendo “interesse do Brasil”. Os projetos dos outros, “ideologia”.

 

Já tratei, recentemente, neste espaço o debate sobre interesses versus ideologia. E fica para outro dia o debate, ainda mais surrado, sobre políticas externas “de Estado” ou “de governo”. Digamos apenas, por agora, que todo novo governo que assume no Brasil já chega dizendo que o anterior fazia política de governo, e que o atual, sim, fará política de Estado. E que todos os governos têm alguma orientação ideológica, seja de esquerda, seja de direita. E que essa orientação acaba determinando, em boa medida, o que esses governos percebem como sendo os interesses do país.

 

Tentemos imaginar que o que o Bolsonaro quis dizer é que buscará implementar uma política externa mais pragmática, buscando reforçar relações na base de interesses econômicos e comerciais, não importando a orientação política ou ideológica dos governos em questão. Como dizia uma velha tradição da realpolitik: países não têm aliados, têm interesses.

 

Poderia até ser uma boa, viu? Governos vão e vêm, mas vantagens comparativas entre países, estruturas comerciais, configurações geopolíticas e oportunidades concretas de cooperação para o desenvolvimento demoram mais a mudar. Tomemos então essa proposta de “política externa liberta das amarras ideológicas” como uma régua, que nos ajudará a avaliar as eventuais mudanças e medidas concretas de um governo Bolsonaro no âmbito externo.

 

Pois bem: o governo nem começou e, claro, seria um exagero a gente se basear em declarações esparsas para um julgamento definitivo. As ações efetivas poderão bem ser outras, lá na frente. Mas, para uma análise preliminar, não faltam declarações de intenções as mais variadas de Bolsonaro e sua equipe que infelizmente parecem apontar para uma inversão completa daquela declaração, com muita ideologia e pouca atenção aos interesses do Brasil.

 

Vamos às evidências:

 

Evidência número 1: Em várias ocasiões, Bolsonaro propôs mudar a embaixada do Brasil, em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, clamada por israelenses e palestinos como sua capital. Como isso afeta nossos interesses? De negativo, temos: boa probabilidade de retaliação dos países árabes às exportações de proteína animal. Do total que exportamos, 40% da carne e 45% do frango levam o selo halal, produzido conforme preceitos islâmicos. Possibilidade de retaliação via atentados fundamentalistas no Brasil, importando para praias tupiniquins um mal do qual até agora o nosso país esteve livre. Escanteamento do Brasil por parte da enorme maioria da comunidade internacional, incluindo países europeus, africanos, asiáticos e da América Latina. Piora das condições de segurança e funcionamento das nossas embaixadas no Oriente Médio, inclusive a que seria em Jerusalém. E ainda pode haver muitos outros.

 

Uma “amostra grátis” dos impactos negativos é o cancelamento pelo governo do Egito de uma visita oficial que o chanceler brasileiro faria ao país, nesta semana, com a presença de empresários brasileiros. Extraoficialmente, o cancelamento foi uma retaliação à ideia de transferência da embaixada. A relação comercial Brasil-Egito é largamente favorável a nós.

 

E de positivo, em termos de interesses? Nada. Absolutamente nada. Talvez uma promessa vazia de uma usina de dessalinização no Nordeste com ajuda de Israel – que não teríamos nenhuma dificuldade de fazer por nossa conta se achássemos que valessem a pena o custo e a energia gastas numa usina como essa. Mas estaremos perfeitamente alinhados à ideologia salvacionista de algumas linhas religiosas cristãs dos Estados Unidos, que foi importada para cá, e crê que o sucesso do projeto sionista de Grande Israel é uma condição prévia à Segunda Chegada de Cristo. Estaremos também alinhados à ideologia ultradireitista de Trump.

 

Evidência número 2: A esnobada no Mercosul. Em declarações em tom equino (desculpem-me os cavalos mais educados), o ''Posto Ipiranga'' de Bolsonaro, o futuro ministro da Economia Paulo Guedes, declarou a uma jornalista Argentina que “o Mercosul não é prioridade, simples assim”. A prioridade, supostamente, seriam os países ricos. Já o Mercosul, seria um projeto “ideológico”. Talvez o neoliberal Paulo Guedes ainda não saiba que o Mercosul antes de mais nada é um projeto de livre comércio, priorizado por todos os governos brasileiros dos mais variados matizes ideológicos, incluindo Sarney, Collor, FHC, Lula e Temer (eu diria que o governo Dilma foi exceção, ao promover caos e paralisia no Mercosul).

 

Talvez ele ainda vá descobrir que o Mercosul é nosso terceiro maior parceiro comercial e o mais importante para exportações de bens industrializados. Talvez ele não saiba que o Mercosul é importante plataforma para internacionalização de nossas empresas, e que gera muitos empregos para trabalhadores do Brasil. E talvez alguma alma caridosa diga a ele que o principal acordo comercial do Brasil em negociação, com a União Europeia (vejam só, países desenvolvidos!) e que pode trazer inúmeros benefícios ao país, depende do Mercosul para ser firmado, visto que a União Europeia prefere negociar entre blocos regionais. Talvez ele ignore, por fim, que a Venezuela, o espantalho preferido dos bolsonaristas, já está suspensa do Mercosul e não apita mais nada por lá. Aqui de novo, esnobar o Mercosul significa privilegiar uma vaga ideologia pró-riqueza e anti-Venezuela, mas sem nenhuma lógica e nenhum ganho concreto para os interesses brasileiros.

 

Evidência número 3: Focar na negociação bilateral com Trump. Logo após a vitória de Bolsonaro, o presidente norte-americano tuitou que havia mantido uma excelente conversa com o presidente eleito. Não sei se a ideia de reviver o falecido acordo de livre comércio Brasil-Estados Unidos vingará ou não, como já propõem membros da equipe do norte-americano, mas qualquer um que não tenha se isolado em Marte nos últimos anos sabe que o lema de Donald Trump tem sido “America First”. Que ele tem advogado a revisão de acordos, em postura de negociação dura e mercantilista, querendo que os EUA exportem mais e importem menos. Que ele, sim, vê esses acordos como uma questão de interesses imediatos, não de alianças. Qualquer um pode ver também que nossa balança comercial já é altamente deficitária com os EUA (eles tiveram superávit de US$ 90 bilhões nos últimos dez anos), e que Trump, buscando reduzir seu déficit comercial global, espertamente arregalou o olho para a oportunidade.

 

Pode-se, por fim, imaginar que uma eventual negociação bilateral Brasil-EUA teria tudo para ser um massacre, não uma negociação, com condições completamente desfavoráveis, e uma tentativa de empurrar algo prejudicial em prol de uma suposta amizade e alinhamento ideológico Trump-Bolsonaro-Steve Bannon (estrategista de comunicação do norte-americano). Perderíamos indústria, produção e empregos, e não ganharíamos mercados para compensar. Mais uma vez, a ideologia atropelando os interesses do Brasil.

 

Evidência número 4: A proposta de sair do acordo do clima. Como sabem todos os que analisam a questão seriamente, à esquerda e à direita, o Acordo de Paris é bom para o Brasil. Primeiro, porque com a matriz energética vista internacionalmente como mais limpa do Brasil (no que pese os profundos impactos negativos da construção de hidrelétricas), nosso esforço de cumprimento, apesar de significativo, é mais baseado no combate ao desmatamento. O que é, já em si, positivo e não passa por reformular e fechar bilhões de dólares em usinas de carvão – como é o caso de alguns outros países. Segundo, porque o acordo valoriza o sequestro de carbono, que é um serviço que o Brasil pode suprir, e com isso ganhar muito, seja via reflorestamento, seja via a produção de biocombustíveis e outras fontes renováveis de energia, em que temos grandes vantagens comparativas.

 

Finalmente, é importante ter um planeta ainda funcionando para as próximas gerações. Sair do acordo jogaria isso tudo pela janela, colocaria o Brasil, assim como no caso de Jerusalém, em uma lista de párias isolados do sistema multilateral (sem termos o peso dos EUA para aguentar o tranco) e ainda exporia o nosso país a retaliações comerciais futuras, sobretudo de países europeus – que já assinalaram a imposição de “tarifas climáticas” a quem não estiver cumprindo o acordo. Sendo assim, essa proposta, que parece que já está, felizmente, sendo deixada de lado, é jogar nossos interesses pela janela em prol de um alinhamento ideológico infantil ao governo Trump e aos negacionistas do clima.

 

Antes mesmo do governo começar, e com base apenas nas declarações iniciais de Bolsonaro e equipe, a ideologia está dando um baile nunca antes visto: 4 a 0 contra nossos interesses concretos. Se essas propostas e outras do mesmo quilate forem adiante (e ainda acredito que, de tão surreais, não irão), teríamos a política externa mais absurdamente ''ideológica'' e anti-brasileira da história da nossa República.

 

A nomeação do novo ou da nova chanceler será uma variável importante para saber que rumo será tomado. Varias opções estão sendo cogitadas, desde as mais técnicas às mais ''ideológicas''. Nomes como o de um embaixador júnior de carreira, autor de artigos religiosos pró-Trump e anti-iluminismo, apontariam para uma política externa duramente ideológica e até medieval. Resultados semelhantes poderiam ocorrer em caso de nomeações políticas que não são do ramo e se destacam pela estridência ideológica, como a de certos nomes do Congresso Nacional.

 

Já a nomeação de um nome comprometido com a tradição moderada do Itamaraty e conhecedor profundo dos interesses brasileiros ou de um nome aberto ao diálogo com sociedade civil, empresários, investidores e trabalhadores, será, para Bolsonaro, a melhor forma de ser fiel às intenções que expressou no discurso que fez em 28 de outubro.

 

Ainda há tempo de reverter a goleada. Para tanto, basta o presidente eleito não jogar contra.

 

06/11/2018

https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/196371
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