Estados Unidos, em colisão com a China

18/05/2018
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CINGAPURA - O relacionamento bilateral mais importante do mundo (o dos Estados Unidos com a China) é também um dos mais inescrutáveis. Atormentado por paradoxos, mal-entendidos e desconfiança, tornou-se uma fonte de grande incerteza e, potencialmente, séria instabilidade. O exemplo mais visível é a guerra comercial que está se formando entre os dois países.

 

A chave para a disputa, que começou com o governo do presidente dos EUA, Donald Trump, é a suposição de que o déficit comercial dos EUA é muito grande e que a culpa é da China. O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steve Mnuchin, veio exigir da China uma redução unilateral de 200 bilhões de dólares de seu superávit comercial com os Estados Unidos antes de 2020.

 

Mas os economistas mais sensíveis concordam que déficits comerciais nos Estados Unidos são o resultado de fatores econômicos estruturais internos, incluindo baixos níveis de poupança das famílias, o déficit fiscal persistente e o papel do dólar como a principal moeda de reserva mundo. Segundo Joseph Gagnon, pesquisador sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional, se os Estados Unidos quiserem reduzir o déficit comercial, a primeira coisa que precisam fazer é reduzir seu imenso déficit fiscal.

 

Mas também não está claro que há uma necessidade urgente de reduzir o déficit comercial dos EUA (embora seja indubitavelmente grande), já que este país, ao contrário de outras economias, tem um modo de viver além de suas possibilidades. O status da moeda de reserva do dólar permite que ele absorva a maior parte das economias do resto do mundo e, assim, financie a falta de poupança própria. Além disso, como o Trump Council of Economic Advisers apontou em fevereiro, nos serviços, os Estados Unidos têm um superávit comercial com o mundo (incluindo a China).

 

Mas não é apenas a administração Trump que está em desacordo com a argumentação econômica racional. A estratégia comercial de Trump para a China tem mais apoio do público americano do que o resto de suas políticas, porque a maioria dos americanos (incluindo muitos que geralmente se opõem a Trump) estão convencidos de que a China não joga de forma justa. Por exemplo, o comentarista político Fareed Zakaria afirmou que há "uma questão fundamental" na qual Trump está certo: que a China "trapaceia" comercialmente.

 

Mas com tantas críticas à China, esquece-se que as importações de produtos chineses baratos melhoraram drasticamente a qualidade de vida dos trabalhadores americanos, cuja renda média está estagnada há 40 anos. Segundo a consultoria Oxford Economics, com a compra de importações chinesas, as famílias americanas economizam cerca de 850 dólares por ano. Não é um número menor, dado que 63% dos domicílios dos EUA não têm economias ou até 500 dólares para emergências.

 

É verdade que o livre comércio com os Estados Unidos e o resto do mundo permitiu à China alcançar a redução mais rápida da pobreza na história da humanidade. Mas isso não significa que a China esteja mantendo a maior parte dos benefícios econômicos. Por exemplo, a fabricante chinesa Foxconn ganha apenas US $ 7,40 por cada iPhone vendido por US $ 800; A maior parte do valor vai para os americanos.

 

As autoridades chinesas adotaram o que pode ser considerado a principal exportação que o Ocidente fez: a teoria econômica moderna. Mas eles ainda estão sujeitos a decisões prejudiciais tomadas por um país cheio de mal-entendidos. A questão é: a China cederá à pressão dos EUA?

 

A liderança chinesa é basicamente pragmática. Se algumas concessões simbólicas são necessárias para evitar uma colisão (como a restrição voluntária às exportações que o Japão aceitou nos anos 80), a China pode fazê-lo. Mas, se maiores exigências forem feitas (e sem justificativa econômica), é provável que a China permaneça firme.

 

O exemplo mais óbvio é a demanda de Mnuchin para que Pequim abandone o plano " Made in China 2025 ". A China já passou por controles de exportação de equipamentos de alta tecnologia dos EUA (incluindo a recente proibição de sete anos de venda de software ou componentes de empresas norte-americanas para a ZTE Corporation). Não abandonará a busca do desenvolvimento em alta tecnologia, um elemento crucial de uma estratégia clara de longo prazo que busca a ascensão da economia chinesa na cadeia de valor global.

 

Em suma, por mais racional que a China tente ser, a possibilidade de uma guerra comercial (que prejudicaria as duas partes) é real, e a crescente agitação no relacionamento bilateral torna-a cada vez mais provável.

 

Durante uma licença sabática de três meses em duas grandes universidades americanas eu podia ver o quanto a atitude em relação à China piorou nos últimos anos. Se as autoridades chinesas conhecia a magnitude da mudança (e eu relatei isso para uma autoridade importante), eles entenderiam que as políticas medidos e racionais aplicadas em relação aos Estados Unidos nos últimos vinte anos não podem servir para a próxima vinte.

 

Seria preciso um livro inteiro para explicar por que a opinião da China nos Estados Unidos se tornou tão negativa. Mas algumas razões são óbvias. Ao longo da próxima década, a China superará economicamente os Estados Unidos, apesar de não ser uma democracia. Pessoas muito atenciosas me disseram nos Estados Unidos que não teriam problemas com uma China maior, desde que fosse democrática.

 

Há também alguma irracionalidade nisso: uma China democrática seria muito mais vulnerável a pressões populistas e nacionalistas, o que provavelmente tornaria um parceiro bilateral mais difícil. Mas os Estados Unidos ainda estão cegos pela ideologia, e isso impede que ela veja os benefícios de uma China guiada pela racionalidade econômica.

 

No futuro, os historiadores lamentarão que a política de longo prazo dos Estados Unidos em relação à China também não tenha sido o resultado de um cálculo medido. E é provável que apontem para a polarização política e o simplismo ideológico (compartilhado por muitos que deveriam ter percebido o que estavam fazendo) como os fatores que levaram os Estados Unidos a um conflito muito prejudicial e totalmente desnecessário.

 

- Kishore Mahbubani, no Project Syndicate

 

Tradução de Caiubi Miranda

 

17/05/2018 

https://jornalggn.com.br/noticia/estados-unidos-em-colisao-com-a-china-por-kishore-mahbubani

https://www.alainet.org/pt/articulo/192958

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