Privatização da educação: tendências de subordinação ao lucro pós pandemia

A privatização envolve a ausência ou a flexibilização de regulamentações governamentais para o setor privado, e a criação de novos mercados como serviços alternativos aos governamentais.

11/01/2021
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 551: Derecho Humano a la Educación: horizontes y sentidos en la post pandemia 10/12/2020

Para começar este dialogo considero fundamental destacar a natureza desigual com que as relações no capitalismo se apresentam e se constituem, de modo que, ainda que identifiquemos tendências globais, os processos de privatização da educação apresentam-se com peculiaridades nos distintos contextos, posto que se materializam em políticas educativas localmente operadas, que envolvem atores em relações historicamente construídas e distintos mecanismos de regulamentação e de desregulamentação da ação do Estado na educação.

 

Essas peculiaridades ou singularidades também se apresentam entre os países da América Latina e, por vezes, no interior de um mesmo país. De modo que analisar e se contrapor aos processos de privatização da educação em nossa região exige nossa articulação e o conhecimento sobre as formas com que a privatização da educação se manifesta em nossos países. Ainda assim, neste trabalho limito-me a assinalar aspectos gerais destes processos.

 

O desafio aqui é sistematizar as formas pelas quais a educação pode ser submetida ao lucro, ainda que de maneira indireta. Para tanto, tomo por referência trabalho publicado em 2018 (Adrião, 2018), no qual são sistematizadas formas de privatização da educação considerando três dimensões da política educacional: Gestão da educação pública, oferta educacional e Currículo. Vale lembrar que esta divisão decorre de estratégia metodológica para facilitar o reconhecimento das formas pelas quais a educação vem sendo privatizada, uma vez que na política educacional encontra-se conexão entre tais dimensões.

 

Já o sentido atribuído à privatização apoia-se em BELFIELD e LEVIN (2004), para quem a privatização envolve processos de transferência de atividades, ativos e responsabilidades dos governos/ organizações públicas para indivíduos ou agências particulares. A privatização envolve ainda a ausência ou a flexibilização de regulamentações governamentais para a atuação do setor privado, e ainda a criação de novos mercados como serviços alternativos aos governamentais.

 

Considerando a diversidade de nossa região, mas levando em conta que na maioria dos países a ação do Estado na oferta da educação, inclusive na etapa de escolaridade obrigatória, mais especialmente na educação infantil, na educação especial e no ensino superior, é pouco efetiva, a privatização da oferta educacional é uma realidade e se amplia neste período de pandemia. Ainda mais em países que adotam políticas econômicas neoliberais e de ajuste fiscal.

Em uma mirada geral destaco duas formas que nesta conjuntura tendem a se ampliar: o financiamento público (direta ou indiretamente) à oferta educacional por provedor privado e a introdução de políticas ou programas de escolha parental.

 

No caso do financiamento direto há uma tendência de os governos estabelecerem ou ampliarem convênios com escolas privadas repassando parte do fundo público na forma de valor por aluno como resposta à pressão dos donos de escolas diante da queda da renda das famílias e da consequente diminuição no número de matriculas. Parte do apelo apoia-se em declarações relativas ao impacto do fechamento destas escolas na diminuição de postos de trabalhos. Indiretamente, os fundos públicos subsidiam a educação privada na medida em que isenções fiscais são aprovadas como mecanismo para incentivar os provedores privados.

 

Um segundo conjunto de medidas que potencializam a subordinação da educação ao lucro decorre da introdução, manutenção ou ampliação de políticas de escolha parental como mecanismo para o acesso à educação. Aqui destaco em especial o subsídio público para o pagamento de bolsas de estudos em escolas privadas, a adoção de programas de crédito educativo e a introdução ou ampliação de programas de educação domiciliar. No primeiro e segundo caso canalizam-se os fundos públicos para organizações privadas nem sempre claramente não lucrativas, além de que os créditos educativos tendem a endividar famílias ao priorizar a remuneração do mercado financeiro. Já a educação domiciliar merece um adendo posto que mesmo não se tratando de mecanismo de lucratividade diretamente, mobiliza um enorme mercado editorial, potencializado pelas tecnologias e plataformas digitais durante a pandemia.

 

Ensino remoto

 

Considerando a capilaridade das empresas globais de comunicação e a subordinação de escolas e sistemas de ensino às suas ferramentas, condição imposta pela adoção do ensino remoto ao menos a grande parte dos/das estudantes e docentes, é inegável o aprofundamento da privatização do currículo de nossas escolas. Aos processos de compra de recursos e insumos pedagógicos de corporações e editoras globais (Clade, 2014; Croso e Magalhães, 2016) e à contratação de consultorias privadas para elaboração de desenhos e reformas curriculares, associa-se à adoção de plataformas e ferramentais desenvolvidas por corporações e oferecidas “gratuitamente” a escola, sistemas públicos de ensino e praticantes de educação domiciliar. Vale o alerta de Scasserra e Sai (2020, p. 4), para quem

 

el problema de las grandes empresas tecnológicas no sea tanto la propiedad privada de los datos (con mucho gusto podrían afirmar: «los datos son tuyos, son de cada persona, te pertenecen»), sino la propiedad privada de los algoritmos, que son los verdaderos medios con los cuales se generan productos (aplicaciones) o servicios (streaming, redes sociales, propaganda segmentada, personalizada, etc.) que permiten enormes ganancias.

 

As plataformas digitais e o ensino remoto estimulam ainda um outro “nicho” de mercado da educação que são as franquias de aulas particulares ou de tutorias. As empresas do setor oferecem o serviço terceirizado e, precarizado, de professores e professoras cadastrados/as em seus sites para apoio a crianças e adolescentes famílias, ou mesmo para escolas em regime de contenção de gastos. No ensino superior, a adoção do ensino remoto moderado por “tutores” em substituição a docentes, prática preexistente, tende também a se ampliar.

 

Por fim, a privatização da gestão da educação acentua-se por meio da adoção de formas de transferência da gestão da escola para organização privadas, política associada à diminuição da presença direta do estado na gestão da educação pública, mesmo quando destinada a organizações sem fins lucrativos, tende a gerar um mercado de provedores privados, cujos “excedentes financeiros” não são claramente identificados como lucro.

 

Os atores

 

Para finalizar este diálogo, destaco os atores que potencializam estes processos de privatização tendo em vista a anuência, compromisso ou omissão por parte dos governantes. Em primeiro lugar, as corporações transnacionais, com destaque para as empresas de tecnologia, de comunicação e para as editoras em muitos casos associadas a empresas nacionais. Em segundo lugar, os fundos de investimento, especialmente na modalidade Venture Capital que alavancam start ups do setor educacional. Um terceiro grupo é integrado por organizações de advocacy, que pressionam pela implantação de políticas liberalizantes e pela destinação dos fundos públicos para o setor privado. Um quarto grupo, os filantrocapitalistas (Bishop e Green, 2008) induzem a adoção de políticas educacionais desenhadas por “parceiros” e patrocinam reformas educacionais que apresentem retorno inclusive financeiro, como contrapartida. Por fim, os donos de escolas privadas, os empresários da educação, que diante da crise pós pandemia acentuam a disputa pelos fundos públicos.

 

Nesse contexto, reafirmar a necessidade de que as verbas públicas sejam aplicadas diretamente na educação pública e que eventuais repasses a instituições privadas seja alternativa excepcional associada ao compromisso de o poder público aplicar seus recursos na expansão e qualificação da sua rede é essencial. Da mesma forma afirma-se a necessidades do aumento da transparência e do controle social sobre a destinação dos fundos públicos e a importância da construção de alternativas, em substituição às ofertadas pelas corporações, por parte sociedade civil, universidades, escolas, sindicatos etc. Por fim, reafirma-se a importância das instituições públicas de ensino como espaço para o encontro e para a construção de valores e práticas inclusivas e cidadãs.

 

- Theresa Adrião: Unicamp/Unemat.

 

Referencias

 

ADRIÃO, T. Dimensões e Formas da Privatização da Educação no Brasil: caracterização a partir de mapeamento de produções nacionais e internacionais. Currículo sem fronteiras, v. 18, p. 8-28, 2018

 

BELFIELD, C e LEVIN, Henry. Education Privatization: Causes, Consequences, and Planning Implications. Paris, UNESCO-IIPE, 2002. https://publications.iiep.unesco.org/Education-privatization-causes-cons...

 

BISHOP, Matthew.; GREEN, Michael. Philanthrocapitalism: How rich can save the world. Bloomsbury Press. 2008.

 

CAMPANHA LATINO-AMERICANA PELO DIREITO À EDUCAÇÃO (CLADE). Mapeo sobre Tendencias de la Privatización de la Educación en América Latina y el Caribe . São Paulo: CLADE, 2014.

 

CROSO, Camilla; MAGALHAES, Giovanna Modé. Privatização da educação na américa latina e no caribe: tendências e riscos para os sistemas públicos de ensino. Educ. Soc., Campinas , v. 37, n. 134, p. 17-33, Mar. 2016 .

 

OECD. netFWD Venture Philanthropy in Development: Dynamics, Challenges and Lessons in the Search for Greater Impact”, OECD Development Centre, Paris, 2014.

 

SOFÍA BEATRIZ SCASSERRA E LEONARDO FABIÁN SAI, Fundación Friedrich Ebert. Buenos Aires – Argentina, Junio 2020

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/210458

Publicado en Revista: Derecho Humano a la Educación: horizontes y sentidos en la post pandemia

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