O fenômeno evangélico em números

23/05/2019
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'Marcha para Jesus', em São Paulo (2018)
Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo
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O Brasil passa por uma grande transição religiosa. Diminui o número de católicos, cresce o de evangélicos, dos “sem religião” e, de forma geral, o pluralismo religioso se amplia no país. Os dados que retratam essa transformação foram apresentados pelo professor José Eustáquio Alves (ENCE/IBGE), no seminário “Religião e Política: um olhar sobre o campo religioso brasileiro”, ocorrido na PUC-SP, entre 10 e 11 de maio.

O evento foi organizado pelo Grupo de Trabalho (GT) Religião, Valores e Comportamento do Projeto Brasil Popular, que conta com mais de 31 GTs (acompanhe-os pelo Facebook) sobre as mais diferentes áreas. Como detalha Anivaldo Padilha, coordenador do GT Religião, Valores e Comportamento, “nós chegamos à conclusão de que a melhor contribuição que o grupo poderia dar é ajudar as pessoas a compreender como se move o campo religioso no Brasil”.

“Nem sempre as forças políticas que atuam no campo popular compreendem a dimensão religiosa (...) As esquerdas, em geral, têm bastante preconceito e desqualificam o fenômeno religioso na vida humana”, complementa. Daí o seminário, uma oportunidade rara de compreender essa dimensão, guiado por acadêmicos e pesquisadores que estudam e praticam o fenômeno religioso.

Transmitido ao vivo, o seminário está online, na página do Facebook e, em breve, no canal do Youtube do Projeto Brasil Popular. Na primeira mesa, o professor Jung Mo Sung analisa a dimensão religiosa do neoliberalismo e a professora Valéria Vilhena, a partir da conjuntura política do país, traz uma forte discussão sobre gênero e religião.

Na segunda mesa, como detalharemos abaixo, José Eustáquio Alves (IBGE) apresenta os números que atestam a transição religiosa no Brasil, seguido de um debate imperdível com os pesquisadores e religiosos Alexandre Brasil (evangélico), João Décio Passos (católico), Rodney William (matriz africana). Na terceira e última mesa, Gedeon Alencar, Magali Cunha e Christina Vital debatem a religião na conjuntura política nacional, com apresentação de Milton Quintino.

Vejamos abaixo os dados trazidos pelo professor José Eustáquio. Eles dimensionam e permitem uma visualização espacial da transição religiosa hoje no Brasil.

“A coroa do Vaticano está se transformando”

“O Brasil está passando por uma grande transformação religiosa que já está impactando o presente e vai impactar ainda mais o futuro”. A afirmação é do sociólogo, doutor em demografia e professor José Eustáquio Alves (ENCE/IBGE), um dos autores do estudo “Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil” (Tempo Social, 2017).

Essa transição religiosa, explica, diz respeito a quatro tendências “que vêm acontecendo há muito tempo, e de forma acelerada nos últimos anos”. São elas (1) o declínio absoluto e relativo das filiações católicas; (2) o aumento acelerado das filiações evangélicas (com diversificação das denominações e aumento dos evangélicos não institucionalizados); (3) o crescimento do percentual das religiões não cristãs; e (4) o aumento absoluto e dos “sem religião”.

Essas quatro tendências, explica José Eustáquio, podem ser sintetizadas em duas: a mudança de hegemonia entre católicos e evangélicos, com forte probabilidade de o segundo grupo ultrapassar o primeiro; e o aumento da pluralidade religiosa, com o crescimento das religiões não cristãs e dos “sem religião”. Abaixo, os números ( * ) que atestam essas tendências:

 



Os primeiros dados sobre religião no Brasil revelam uma maioria esmagadora dos que se dizem católicos, por exemplo, o censo de 1880 apontava 98,9% de católicos no país, explica José Eustáquio. Se observarmos a tabela acima, um século depois, em 1980, os católicos ainda são maioria esmagadora, 89%. A partir de 1991, no entanto, começa a cair a porcentagem de católicos e a subir a de evangélicos. “Aproximadamente, os católicos estavam perdendo 1% de fiéis por década (entre 1872 e 1980). A partir de 1991, eles começam a perder 1% por ano”, observa.

Esse fenômeno não se restringe ao Brasil. “Está ocorrendo em toda a América Latina”, como mostra o levantamento “Religião na América Latina”, divulgado em 2014, pelo Instituto de Pesquisa Pew. Segundo o especialista, a transição religiosa estava em processo em países pequenos como Nicarágua, Honduras e Guatemala que se tornaram territórios de maioria evangélica. Entre os grandes países da América Latina, no entanto, o Brasil é onde esse fenômeno está mais avançado. “Somos ainda o maior país católico do mundo, mas a coroa do Vaticano está se transformando”, afirma.

Outra tendência desse processo de transição é o aumento do pluralismo religioso. Se observarmos na tabela acima, entre 1970 e 2010, os “sem religião” saltaram de 702 mil para 15,3 milhões de pessoas. José Eustáquio explica que, ´sem religião´ não necessariamente significa ateu ou agnóstico. Trata-se de pessoa sem credo definido, por exemplo, “o cara era católico e vai para Assembleia de Deus, cansa de tudo e diz que está sem religião”. Além disso, “a maior parte [desse grupo], nos censos utilizados, é composta por crianças. De qualquer forma, têm crescido e continua crescendo muito os ´sem religião´, os ateus e agnósticos no Brasil”, complementa.

Ele explica que há um fluxo contínuo entre as religiões. “Evangélicos viram católicos, católicos viram evangélicos, ateus viram católicos, católicos viram ateus...” O fato é que “o saldo líquido deste processo sempre aponta a perda de fiéis católicos. “Por isso, nós os chamamos de doadores universais. De 1991 a 2010, entre os que deixaram de ser católicos, 72% se tornaram evangélicos, 10% foram para outras religiões e 18% para os sem religião”, detalha.

Distribuição espacial

Para demonstrar o fenômeno da transição religiosa no Brasil, José Eustáquio trabalha com um indicador sintético chamado REC – razão (em 100) entre evangélicos e católicos –, que indica o grau de avanço da transição religiosa no país, considerando a mudança de hegemonia entre católicos e evangélicos.

No quadro abaixo, extraído do artigo “Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil”, é possível acompanhar a evolução da REC (na coluna à direita) ao longo de quatro décadas, por exemplo, pode-se observar que, em 1991, a razão entre evangélicos e católicos (REC) era de 10,8%, ou seja, existiam 10,8 evangélicos para cada 100 católicos no país.

De modo geral, quanto mais perto a REC estiver de 100%, mais avançada está a transição religiosa entre católicos e evangélicos. Vejamos a tabela:

 



Entre 2000 e 2010, houve uma queda no número absoluto de católicos no país – passou de 124.980.132 para 123.280.171 –, segundo José Eustáquio, “foi a primeira vez que isso aconteceu na história do Brasil”. No mesmo período, o número de evangélicos cresceu. Se observarmos a REC, em 1991, existiam 10,8 evangélicos para cada 100 católicos; vinte anos depois, 34,3 evangélicos para cada 100 católicos.

A REC também permite a visualização espacial dessa transição religiosa. Em termos regionais, no censo de 2010, o Norte apresenta o maior crescimento relativo do grupo de evangélicos, com REC de 47%; seguido do Centro-Oeste (45%) e do Sudeste (41,3%). O Sul (28,8%) e o Nordeste (22,7%) mantêm a menor relação entre evangélicos e católicos.

“A queda dos católicos se deu em praticamente todos os estados brasileiros”, observa. Os mais adiantados neste processo são Rondônia (REC de 71,1%) e Rio de Janeiro (64,1%). “Em termos de volume populacional, pode-se afirmar que a periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro (municípios da RM menos a capital) está liderando o processo de transição religiosa no país”, avalia.

Os evangélicos também apresentam crescimento acelerado no Acre (REC de 62,9%), Espírito Santo (62,1%), Roraima (61,6%) e Amazonas (52,4%). Em contraposição, o Piauí é o estado de maior resiliência católica, com REC de 11,4%; seguido de Sergipe (15,4%) e da Paraíba (19,7%).

Agora, se considerarmos as 12 maiores regiões metropolitanas do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Curitiba, Recife, Salvador, Campinas, Belém, Manaus, Goiânia – termos a uma REC de 46,7%. Nas capitais, o índice chega a 41,2%; e nas periferias, a 53,9%. Todos acima da média nacional de 34,3%.

“Cada estado brasileiro conta com pelo menos um município de maioria evangélica”, explica. Em 1991, as 16 cidades com maioria evangélica tinham nascido evangélicas, por conta da imigração; em 2000, eram 34 cidades já fruto da transição religiosa; em 2010, 73 cidades; e estima-se que, em 2020, serão mais de 200 municípios de maioria evangélica.

José Eustáquio também explica que a expansão evangélica é maior no meio urbano, em municípios médios. Entre a população como um todo, a transição religiosa é maior no meio urbano e menor no meio rural. Entre os indígenas, porém, acontece o contrário, “é maior entre os que estão em terras indígenas”.

Outra característica é que essa expansão segue um padrão de mobilidade próprio das estradas brasileiras. “Em municípios distantes de rodovias, a transição é mais lenta”, conta. Esse padrão, inclusive, é analisado no artigo “Estradas da fé: os caminhos da difusão das filiações evangélicas no Rio de Janeiro”.

Evangélicos podem ultrapassar católicos em 2032

O IBGE, após o censo de 2010, não fez nenhuma pesquisa levando em consideração a variável religião. No entanto, há vários levantamentos nacionais (Datafolha) e internacionais (PEW, Gallup, Latinobarômetro etc.) que indicam aceleração da transição religiosa. De forma geral, explica o sociológo, há um declínio das filiações católicas em 1,2% ao ano (antes era 1% ao ano); e um crescimento das filiações evangélicas em torno de 0,8% ao ano (antes era de 0,72% ao ano).

Aplicando essa tendência, a partir de uma projeção simples dos dados anteriores – e não sem ressalvas: “isso é apenas um exercício” – José Eustáquio aponta que “se a transição acelerou de 1% para 1,2% ao ano e o crescimento de evangélicos de 0,72% para 0,8%, os católicos viram menos de 50% da população em 2022, nos 100 anos da Independência, e os evangélicos passam os católicos em 2032”.

O impacto político da transição religiosa que se apresenta como um processo irreversível no Brasil é mais complexo do que se imagina. Como destaca Anivaldo Padilha, os que dizem que a esquerda “perdeu a capacidade de dialogar com as igrejas evangélicas” demonstram uma enorme falta de conhecimento.

“Você não está conseguindo dialogar é com o povo. Quando conseguir dialogar com o povo, aí sim, vai conseguir dialogar com as pessoas que são evangélicas”. E mais: “não adianta dialogar com igrejas evangélicas que têm um projeto claro de poder. Não adianta”.

Isso dito, vejamos as preferências políticas de acordo com as principais religiões do país:

 



Desde 2006, como demonstra a tabela acima, o PT sempre ganhou, com folga, entre os católicos. Na última eleição, porém, Bolsonaro conseguiu uma pequena vantagem. Haddad perdeu por 164 mil votos, “houve praticamente um empate”, entre os católicos.

Já entre os evangélicos tradicionais, o PT vem perdendo praticamente em todas as eleições. “Os tradicionais são mais ou menos 4% dos evangélicos, e a igreja mais forte é a Batista; entre os pentecostais, a mais forte é a Assembleia de Deus”, explica José Eustáquio.

Em 2006, com José Alencar de vice, que era evangélico, Lula contou com o apoio dos pentecostais. “Ele [Alencar] foi importantíssimo para fazer essa costura entre os evangélicos”, destacou o sociólogo. Dilma Rousseff manteve empate entre os pentecostais durante as duas eleições.

Em 2018, Haddad perdeu de lavada em ambos grupos evangélicos, amargando uma diferença de 11,5 milhões de votos pró-Bolsonaro. Ele também perdeu entre os espíritas, mas saiu vitorioso – com grande margem de diferença – entre as religiões de matriz africana (70%) e os “sem religião” (55%). “De modo geral, sintetiza José Eustáquio, “Haddad ganhou nos estados com maior proporção de católicos e Bolsonaro, nos de maior proporção de evangélicos”.

“Nós temos uma grande transição religiosa no Brasil, mas não sabemos exatamente qual o ritmo dessa transição. O Censo de 2020 indicará isso”, ressalta o pesquisador, destacando que a transição religiosa não significa apenas o crescimento evangélico ou a queda dos católicos, mas “uma maior pluralidade na sociedade brasileira” e “maior liberdade religiosa”, o que é “muito positivo”. Por outro lado, “temos uma tendência com esta bancada evangélica [que está no Congresso Nacional] de uma presença muito forte da religião na política, o que pode ameaçar os princípios do Estado laico”, alerta.

*(Os gráficos e tabelas abaixo pertencem todos ao material apresentado e divulgados por José Eustáquio Alves)

22/05/2019
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-fenomeno-...
 

https://www.alainet.org/pt/articulo/199997
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