No Brasil abriram-se janelas do inferno

Na campanha eleitoral esta raiva enrustida saiu do armário. Foi reforçada a violência pré-existente, dando legitimação a uma verdadeira cultura da violência.

05/02/2019
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Há uma constatação inegável no Brasil: em muitos setores se nota a irrupção do ódio, da ofensa, dos palavrões de todo tipo, da distorção, do preconceito e de milhares e milhares de fake news que, em grande parte, deram a vitória ao atual presidente. Há ainda youtubers que falseiam a realidade, misturando palavrões com zombarias e reles moralismo, sujeitos a um processo judicial.

 

Comunista e socialista viraram palavras de acusação. Sequer se define o seu real significado, como se estivéssemos ainda na Guerra Fria de há trinta anos. Quantos, inclusive um dos ministros de parcas luzes, enviam seus críticos para Cuba, Coreia do Norte ou Venezuela. A maioria sequer leu alguma página da Teologia da Libertação, tida por marxista. Ignoram seu propósito básico: a opção pelos pobres e por sua libertação, isto é, em favor da maioria da humanidade que é pobre.

 

Enfim, respiramos ares tóxicos. Muitos mostram completa falta de educação e degradação das mentes. Na campanha eleitoral esta raiva enrustida saiu do armário. Foi reforçada a violência pré-existente, dando legitimação a uma verdadeira cultura da violência contra indígenas, quilombolas, negros e negras, especialmente os LGBTI e opositores.

 

Precisamos compreender o porquê deste despropósito tresloucado. Iluminam-nos dois intérpretes do Brasil, aqui pertinentes: Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928) e Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1936) no seu capítulo V. “O homem cordial”.

 

Ambos têm algo em comum, no dizer de Ronaldo Vainfas, pois “tentam decifrar o caráter brasileiro a partir de suas emoções” (Intérpretes do Brasil, vol.II, 2002 p.16). Mas em sentido contrário. Paulo Prado é profundamente pessimista caracterizando o brasileiro pela luxúria, a cobiça e a tristeza. Buarque de Holanda faz diferenciações quanto à cordialidade.

 

”A contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade- daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro” (p.106). Mas logo observa: ”Seria engano supor que estas virtudes possam significar “boas maneiras, civilidade” (107). E continua: ”A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração”(107 nota 157). Sabemos que do coração emergem tanto o amor quanto o ódio. A tradição psicanalítica nos confirma que aí impera o reino dos sentimentos. Estimo que definiríamos melhor o caráter do brasileiro se sustentássemos que o seu design básico não é a razão mas o sentimento. Este é contraditório: pode se expressar como amor e também como ódio virulento.

 

Pois esse lado dual da “cordialidade”, melhor dito, “do sentimento” ambiguo do brasileiro ganhou hoje asas e ocupou mentes e corações. Dominou a “falta de boas meneiras e de civilidade”. Basta atrir os sites, os twitters, facebooks e youtubes para constatar que janelas do inferno se abriram de par em par. Daí sairam demônios, separando pessoas, ofendendo figuras tão beneméritas como Dráuzio Varela e como a mundialmente apreciada de Paulo Freire. A palavra de um incivilizado ocupa o mesmo espaço como aquela do Papa Francisco ou do Dalai Lama.

 

Mas este é apenas o lado de sombra do sentimento brasileiro, Há o lado de luz, enfatizado acima por Buarque de Holanda e também por Cassiano Ricardo. Temos que resgatá-lo para que não tenhamos que viver numa sociedade de bárbaros na qual ninguem mais conseque conviver humana e civilizadamente.

 

Não há por que se desesperar. A condição do próprio universo é feita de ordem e desordem (caos e cosmos), as culturas possuem seu lado sim-bólico e dia-bólico e cada pessoa humana é habitada pela pulsão de vida (eros) e pela pulsão de morte (thánatos). Tal fato não é um defeito da criação. É a condição natural das coisas. As religiões, as éticas e as civilizações nasceram para conferir hegemonia à luz sobre as sombras a fim de impedir que nos devorássemos uns aos outros. Terminava o pessimista Paulo Prado:”a confiança no futuro não pode ser pior do que o passado”(p.98). Concordamos.

 

Inspira-nos um verso de Agostinho Neto, lider da libertação de Angola: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa. É preciso que a pureza e a justiça existam dentro de nós” (Poemas de Angola, 1976, 50).

 

- Leonardo Boff escreveu Reflexões de um velho teólogo e pensador, Vozes 2019.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/197972
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