A disputa do discurso é luta de classe

26/11/2018
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Até o Saci será demonizado?
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A vitória de Jair Bolsonaro para a presidência fez assomar outra vez o discurso do anticomunismo, como se houvesse alguma ameaça comunista no Brasil. Não há. Mas, isso não importa. O que vale é o que aparece no uatizapi como verdade. E nesse universo dos aliados do presidente eleito até o Partido dos Trabalhadores é comunista. Não é e nunca foi. No máximo, socialdemocrata. Mas, isso também não importa, porque esse discurso parece já bem entranhado na vida de pelo menos 50 milhões de brasileiros. Tanto a mídia convencional quanto as redes sociais têm afirmado e respaldado essa ideia, que aparece como vencedora no imaginário de expressivo número de pessoas.

 

E, no contexto desse discurso anticomunista e antipetista o que aparece como salvação é o exército brasileiro. Isso já aparecia lá em 2013, quando as primeiras faixas e bandeiras pedindo intervenção militar surgiram e foram tratadas com desdém pelo povo mais politizado.  O combate a esse discurso não foi feito e o desejo dessas pessoas foi tratado com piadas e memes, o que o tornava ainda mais forte. 

 

Agora, o Brasil que se apresentará a partir do dia primeiro de janeiro traz um bom número de militares, tanto nos espaços legislativos, como nos do executivo. E já veremos se todos eles compartilham dessa análise de que o comunismo é o grande perigo, ou não. De qualquer forma, esse discurso já pegou e tem sido reproduzido pela correia de transmissão dos apoiadores do novo governo, os novos deputados eleitos na esteira da grande batalha dos “sem partido” que vem desde 2013. E ainda que essas mesmas pessoas que gritavam “sem partido, sem partido” tenham sido eleitos por um partido (o PSL), ninguém parece fazer as ligações. Não era “sem partido”, era sem alguns partidos, os da esquerda. E por quê? Porque esquerda é comunismo, inclusive o PT. É o senso comum.

 

Outro discurso que aparece como vencedor na massa é o discurso racista, homofóbico, misógino e religioso. Os casos de violência contra as pessoas que se enquadram nesses tipos vêm aumentando em nível alarmante, a ponto de atingir até gente que não está nesses “grupos de risco”, como o caso de uma jovem em Florianópolis, que, doente, com câncer, sem cabelo, foi “confundida” com uma pessoa transgênero e agredida. Ou seja, a violência está nas ruas, para além dos já tradicionais “criminosos”. Pessoas “de bem” virando justiceiras, julgando “crimes” os quais sequer compreendem muito bem, em nome de deus. Pobre deus. O medo, que já é grande por conta da pedagogia do apavoramento gerada por programa do estilo Datena, agora assume outro nível no jogo da vida. E está difícil de passar essa fase, até porque, na vida real, não temos vidas para gastar. Só uma.

 

Mais um discurso que vem crescendo é do apagamento dos horrores da ditadura miliar. A tortura, uma das ações mais torpes do humano, segue sendo relativizada por muitos dos novos “governantes”. Ratos na vagina, choques, unhas arrancadas, pau-de-arara não é coisa tão ruim se aplicada nas “pessoas certas”, dizem os arautos da moralidade e da religiosidade. Mas, quem dirá quem são as pessoas certas? Aqueles que atacaram a jovem com câncer achando que era um transgênero? A tortura é vil, e ponto. E a ditadura foi um momento grotesco da história que precisa ser lembrado para que não se repita. Porque o horror pode chegar para qualquer um. 

 

No campo da esquerda, ainda são tímidas as ações para vencer todos esses discursos aparentemente vencedores. Há certa paralisia típica dos momentos de negação. A ficha ainda não caiu. O que se vê é um frisson cotidiano por conta da formação da equipe de trabalho do novo presidente. A cada novo ministro, ou assessor, chovem os comentários desesperados, sempre depreciativos, quase nunca elucidativos e com pouca penetração na carapaça dos apoiadores de Bolsonaro. Tudo fica dentro da bolha, cada um tem a sua. E a vida real, lá fora, esperando.

 

O escritor Gilberto Felisberto Vasconcellos, num texto cheio de claridade, escreveu que a grande batalha do novo governo, cuja base é a comunidade evangélica fundamentalista, será a cultural. Muito mais do que prender/matar/desaparecer pretensos comunistas, esse governo empreenderá uma guerra feroz contra a vida que se expressa no campo popular. As crendices, o folclore, a cultura cotidiana. Tudo isso estará sob o crivo dos bispos neopentecostais e seus fiéis seguidores. 

 

A questão que fica é: como enfrentaremos isso? Chorando ou encontrando caminhos para tocar a vida do outro? Quais serão as ferramentas que usaremos para disputar o discurso? Qual a linguagem? Qual a estratégia? A tática? 

 

Já houve um tempo em que nossa gente, aqui em Pindorama, viu chegar pelo mar uma gente armada de cruz e espada. E essa gente destruiu a cultura, os deuses, o modo de vida. Porque não tolerou a pluriversidade da vida que já vivia aqui. Aplastou com a bíblia. Naqueles dias, os irmãos Tupi-Guarani tinham poucas ferramentas à sua disposição para enfrentar a enxurrada teocrática que se abateu sobre eles. Hoje é diferente. Temos todas as chances de não sucumbir. 

 

Mas, par anão sucumbir há que entender que a guerra está aí e que nela, a primeira vítima é a verdade. Vimos isso nas eleições e continuamos vendo. Não há tempo para lamber feridas. É preciso contra-atacar. E o campo da cultura é fundamental. Defender nosso modo de vida, nossas crenças plurais, nossos mitos, nosso folclore cheio de deuses e seres encantados, é vital. 

 

À teologia da prosperidade, de salvação individual, que prepara a pessoa para ter um carro, um celular, pregada pelos neopentecostais eletrônicos e dinheiristas há que se contrapor uma proposta de luta coletiva, de salvação coletiva, que é dura e difícil, mas que só pode acontecer se estivermos juntos. 

 

Alguma coisa temos de aprender de todo esse processo. E uma delas é que não basta tripudiar das barbaridades que são feitas e ditas. Há que desconstruir. E de maneira a ser entendido.

 

26 de Novembro de 2018

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/196761
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