Dos porões às agências de segurança privada
- Opinión
Documentos dos órgãos de inteligência da ditadura mostram violações de direitos humanos cometidas pelas empresas regulamentadas em 1969 e compostas por membros do aparato repressivo do regime militar
Regulamentado pela Junta Militar que substituiu o general Costa e Silva no governo, o setor de segurança privada criou um ramo de negócios próspero para os membros das Forças Armadas e do aparato repressivo da ditadura. De acordo com documentos analisados pela reportagem da Pública, as empresas de segurança constituídas por esses agentes durante a ditadura se envolveram também em casos de tortura, assassinatos, desaparecimento, cárcere privado e outras violações de direitos humanos.
Os documentos examinados pela reportagem no Arquivo Nacional e no Arquivo Público do Estado de São Paulo são provenientes dos órgãos de segurança e tratam do período que vai do Decreto-Lei 1.034, de 21 de outubro de 1969 –promulgado para regulamentar o setor dois meses depois do afastamento de Costa e Silva, acometido por uma isquemia cerebral – até os anos da redemocratização. O decreto obrigava à utilização de “dispositivos de segurança” – vigilância ostensiva armada e sistemas de alarme – por todos os estabelecimentos de crédito. Essa foi a primeira vez que a segurança privada foi citada na legislação brasileira.
“Os roubos a banco vinham sendo praticados tanto por criminosos ‘comuns’ como pelas organizações da chamada ‘luta armada’ e geraram grande preocupação nos governos militares”, explica o pesquisador André Zanetic, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
O decreto conferiu poder de polícia no interior dos estabelecimentos de crédito também aos agentes de segurança privada, que, além do certificado de antecedentes criminais, tinham de obter um atestado ideológico emitido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Para isso, os nomes dos candidatos eram submetidos ao SNI, que vetava aqueles com “inclinações subversivas”.
Os documentos mostram que nas capitais e no interior agentes de segurança privada, não raro associados ao aparato de repressão do regime, foram apontados como responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos.
Gama Lima e o “Cenimar privado”
A empresa de segurança privada Agents foi fundada em 1973 pelo primeiro-tenente da Marinha Francisco da Gama Lima Netto seis anos depois de ele ter passado à reserva – ele serviu no Centro de Inteligência da Marinha (Cenimar) entre 1963 e 1967. Rapidamente, a Agents se tornou uma das maiores do ramo no Brasil: chegou a contar com 200 carros e mil vigilantes. Entre suas clientes figuravam, por exemplo, a TV Globo, a Companhia Hidrelétrica de Furnas e o governo do Paraná. Também era de propriedade de Gama Lima a empresa Scorpion Comércio e Empreendimentos Ltda., especializada em equipamentos eletrônicos ligados à segurança privada. O tenente reformado fundou ainda a ASIS Brasil – Associação Internacional de Segurança, a filial brasileira da ASIS International, think tank estadunidense do ramo da segurança que reúne membros das esferas pública e privada.
Gama Lima, na extinta Manchete, 1981: o primeiro tenente da Marinha Serviu no Cenimar antes de criar a Agents (Reprodução)
Em suas empresas, Gama Lima se cercou de seus ex-colegas. O diretor técnico da Agents, por exemplo, era ninguém menos que Fernando Pessoa de Rocha Paranhos, capitão de mar e guerra que comandou o Cenimar entre 1968 e 1971. Paranhos está na lista final de agentes responsáveis por violações de direitos humanos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), implicado no sequestro do paraibano João Roberto Borges de Souza, estudante e militante do PCB, ocorrido em 7 de outubro de 1969. Segundo a CNV, Souza foi sequestrado por membros do Cenimar e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) em Catolé do Rocha, Paraíba. O sequestro se deu depois de sua quarta prisão, quando, traumatizado pela tortura, passou a se esconder. Três dias depois, sua morte foi noticiada por uma rádio paraibana como afogamento em um açude de Catolé do Rocha. O corpo apresentava claros sinais de agressão. Segundo um boletim de 1974 da Anistia Internacional, ele foi jogado no açude depois de ter sido torturado até a morte.
Outro nome ligado ao Cenimar que aparece entre os contratados da empresa de Gama Lima é o ex-chefe do Grupo de Operações Especiais (Goesp) da Secretaria Estadual de Segurança da Guanabara, o inspetor José Paulo Boneschi. Ele chegou a chefiar o temido Departamento de Operações de Informações do Rio de Janeiro (DOI I). Boneschi era também um dos diretores da ASIS e foi citado no livro de Carlos Marighella Por que resisti à prisão (Edições Contemporâneas, 1965) como um dos principais torturadores que prestavam serviços ao Cenimar e ao DOPS da Guanabara. Entre os torturados por Boneschi está, por exemplo, Dilson Aragão. Filho de um almirante brizolista, ele foi preso pelo DOPS em 20 de maio de 1964. “Fui torturado no dia 27 de maio, das 14 às 17 horas, pelos agentes do DOPS, Solimar e Boneschi (…). Bateram-me dias seguidos e só me deixavam sair quando ficava desacordado”, contou Aragão em depoimento publicado no jornal Correio da Manhã.
O engenheiro Arnaldo Mouthé foi outro a denunciar Boneschi por tortura. “Fui colocado no escuro com um feixe de luz nos olhos, quando fui inquirido. A cada negativa às perguntas incriminatórias, recebia estrangulamento, socos, tapas e cuteladas. Fui insultado e ameaçado de morte e sequestro. Chegaram a ameaçar a minha família. Cheguei a perder os sentidos pelas cuteladas e estrangulamento”, relatou. “Os meus espancadores e torturadores são os agentes do DOPS à disposição do Cenimar, Sérgio Alex Toledo, Solimar e Boneschi e outros da Marinha.” Segundo o engenheiro, Fernando de Rocha Paranhos foi um dos oficiais da Marinha que assistiu à sua tortura. Boneschi consta como autor de vários outros episódios de tortura relatados no livro Torturas e torturados, do jornalista Márcio Moreira Alves, e é um dos torturadores listados no projeto Brasil: Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo.
Segundo reportagem dos jornalistas Chico Otávio e Alessandra Duarte, do jornal O Globo, o coronel da PM carioca Paulo César Amêndola, atual secretário de Segurança municipal do Rio de Janeiro, também trabalhava na Agents. Fundador do Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio (Bope), Amêndola, que chegou a cumprir mandados de busca pelo Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do I Exército, também já cumpriu missões pelo Cenimar. Em outra entrevista ao Globo, Amêndola contou que participou de uma missão na Bahia, onde prendeu o então militante do MR-8 César Benjamin, hoje secretário municipal do Rio (Educação).
Nos anos 1980, a empresa de Amêndola foi acusada de manter uma central de grampos clandestinos e chantagear diversas autoridades e instituições como o Banco Nacional de Habitação; o ex-deputado Antônio Ferreira; José Carlos de Borra, funcionário da Companhia Estadual de Habitação; o ministro-chefe do SNI Octavio Aguiar de Medeiros; e Ney Webster de Araújo, presidente da Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas (Caeeb). A central seria comandada pelo delegado Walter Abreu, denunciado por um detetive particular que também fazia parte da empresa. A morte de um funcionário da Telerj, Heráclito de Souza Faffe, foi associada a Gama Lima. Acusado de integrar a central de grampos da Agents, Faffe foi morto com uma injeção letal na nádega esquerda. Sua morte nunca foi devidamente esclarecida.
Gama Lima foi associado também à morte do ex-jornalista e informante do SNI Alexandre von Baumgarten, mas a autoria desse assassinato nunca foi comprovada.
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“Estamos interessados em nomeá-los nossos representantes para a limpeza da área de nossa sucursal em Altamira […]. Tivemos ótimas referências [de] vossa empresa nos serviços de “operação limpeza” no garimpo do Rio Traíra e no de Alta Floresta assim como na área da Brascan [em] RO.” Esse é um trecho de uma carta endereçada em janeiro de 1986 ao coronel da reserva do Exército Antônio de Almeida Fernandes, ex-comandante da Guarda Territorial de Rondônia – corporação civil que posteriormente se tornaria a Polícia Militar do estado.