"A Alca impedirá o desempenho econômico brasileiro"

06/12/2002
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Embaixador Samuel Pinheiro: 'O Brasil não precisa da Alca'
A revista "Cadernos Diplô", vinculada ao "Le Monde Diplomatique" - cuja versão em português é publicada pela mesma equipe no site www.diplo.com.br - publica, em sua última edição, uma excelente, esclarecedora e extensa entrevista com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães sobre a Alca e as consequências - aliás, terríveis - que ela teria para o Brasil. Essa edição do "Diplô" é dedicada, em seu conjunto, à análise da Alca sob vários pontos de vista - econômicos, políticos, militares, culturais ideológicos. Todos os artigos, de diversos autores, são de excepcional profundidade e clareza. Por isso mesmo, são de grande valor para os brasileiros. Recomendamos, portanto, aos nossos leitores a leitura dessa extraordinária publicação. Aqui fornecemos um aperitivo: com autorização da "Cadernos Diplô", reproduzimos nesta edição a entrevista do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, erudito e lúcido diplomata, na tradição daqueles que, no Itamaraty, sempre foram, também, pensadores do Brasil. Por isso mesmo, o embaixador foi demitido do cargo que ocupava por Fernando Henrique. O entreguismo, já se sabe, é incompatível com a inteligência. Apenas admite o servilismo e a estupidez que lhe é inseparável. O leitor sem dúvida concordará conosco que, pela profundidade das idéias, a sua extensão até que é pequena. - Diplô - Quais são as principais críticas que o senhor faz à Alca? Samuel Pinheiro Guimarães - A Alca é um projeto de criação de um território econômico único, onde não haverá nenhuma barreira para circulação de bens, tarifárias e não tarifárias. Nessas condições, o Estado brasileiro abdica da possibilidade de ter política comercial, porque não pode ter mais nenhum obstáculo ao comércio. Se abdica da possibilidade de ter política comercial, abdica também da possibilidade de ter política industrial, porque abre mão de uma parte importante dessa política que é a proteção a novos investimentos. Sem política industrial perde sentido a política tecnológica, pois ela só faz sentido se gerar uma inovação que vai reduzir custos no processo produtivo, gerar um novo produto. Por isso a Alca impedirá o desempenho econômico brasileiro. Ela tem efeitos muito graves sobre o mercado, a mão-de-obra, a exclusão social, e inclui efeitos políticos extraordinários. Ela vai impedir que a sociedade brasileira tenha os instrumentos necessários para desenhar e aplicar as políticas públicas, fundamentais para enfrentar as profundas desigualdades, que são características marcantes do país. - Se a Alca não se limita ao comércio, como o acordo agirá sobre os outros setores econômicos? Do ponto de vista dos serviços, isto é, empresas financeiras, de saúde, de educação, de consultoria, todas teriam o mesmo tratamento. Não haverá nenhum obstáculo na movimentação do capital: tanto o capital financeiro como o de investimento poderiam atuar, em princípio, em qualquer setor e em qualquer país. Nenhum país poderá estabelecer restrições nem disciplina para o capital de outro país. Por exemplo: não se poderá exigir que os investimentos feitos no país se comprometam a exportar uma parte de sua produção, ou a usar mão-de-obra local. Não poderá haver nenhuma discriminação nas chamadas compras governamentais. Os Estados recolhem recursos, distribuem e gastam com funcionalismo, mas também com obras e serviços de saúde, com compras de livros para as escolas. Quanto maior o Estado, maior a receita, maior o equipamento, e maiores suas contas. Hoje um Estado pode privilegiar suas empresas. Com a Alca não poderá mais. Ou seja, uma empresa qualquer, localizada em qualquer país das Américas, poderá participar das concorrências públicas com igualdade de condições. Na área tecnológica, querem reforçar as regras que protegem os detentores de tecnologia, que são as grandes empresas. Na agricultura, em princípio, a idéia é não haver qualquer subsídio à produção nem à exportação de produtos agrícolas. Isso cria um território econômico único nas Américas. Na prática, uma anexação. - Quais as principais conseqüências do acordo para o Brasil, levando em conta a desigualdade social, que o senhor cita como uma das marcas do País? A sociedade brasileira é marcada por duas características fundamentais: as profundas disparidades sociais - que são de natureza econômica, cultural, regional, racial, política e tecnológica - e uma vulnerabilidade externa crônica. Existe uma grande disparidade de renda, definida como rendimento do trabalho; mas muito maior é a disparidade de riqueza, pois é grande a concentração de propriedades rurais, urbanas e mobiliárias. Há também disparidades educacionais: existem pessoas altamente qualificadas e pessoas que não tiveram educação nenhuma, informal ou formal. Depois temos as disparidades tecnológicas. Dentro da sociedade brasileira convivem pessoas que utilizam instrumentos usados desde a descoberta do Brasil, como um enxada, ao lado de fazendas altamente mecanizadas. Na indústria existem sapatos feitos de forma artesanal e fábricas modernas. Existe ainda a disparidade política: há pessoas que não têm idéia de como funciona o sistema político e exercem o seu direito de cidadania uma vez a cada quatro anos, não têm nenhuma influência; e outros, que têm uma influência enorme no processo de escolha, de eleição dos candidatos, no executivo, no legislativo e no judiciário. Estas disparidades se concentram dentro das regiões. A soma destas características resulta no fato de que cerca de 50 milhões de brasileiros vivem com menos de 80 reais por mês, e mais de 30 milhões com um pouco mais do que isso. Um terço da população brasileira vive com cerca de um dólar por dia. Estas pessoas são as mesmas que vivem em habitações precárias, não têm riqueza nem educação. Para enfrentar esse grande desafio, que é incorporar 50 milhões de pessoas no mercado de trabalho e superar gradualmente essas grandes disparidades, só com a ação do Estado, com um projeto nacional, com políticas públicas. E isso estaria impedido com a Alca. - O senhor tem afirmado também que a Alca agravaria nossas vulnerabilidades externas ... As vulnerabilidades externas são políticas, econômicas, tecnológicas e ideológicas. As econômicas estão sumariadas no déficit do balanço de pagamentos e na necessidade de pagar a amortização de empréstimos públicos e privados. Temos, por isso, uma dificuldade enorme de gerar um superávit comercial saudável que significa um aumento das exportações, um aumento das importações e um superávit. O Brasil também paga muito por tecnologia importada e não gera própria. Existe também a vulnerabilidade militar, gerada pelo fato de o Brasil ter aderido a acordos desiguais, ter a obrigação de não ter estoque de armas e concordar que outros países a tenham, que é diferente do desarmamento. Nos acordos políticos, apresentados como muito positivos para a humanidade, o que ocorre é que os países poderosos continuam com suas armas nucleares, biológicas e químicas e proíbem os outros de as terem. O Brasil, ao aderir a estes tratados, aceitou uma situação de vulnerabilidade militar no meio de grandes conflitos. Se estivéssemos num mundo de paz, estaria tudo bem. O Brasil tem 15 mil quilômetros de fronteira. De onde vêm as armas utilizadas pelos criminosos? São todas contrabandeadas e entram pelas fronteiras desguarnecidas. O Brasil tem dez países vizinhos. Uma situação de instabilidade política, social, econômica deles gera possibilidade de conflitos internos que podem passar para o outro lado da fronteira, então é necessário que elas sejam guarnecidas. A vulnerabilidade política significa que o Brasil não participa dos organismos de decisão em nível internacional. Não tem influência no Conselho de Segurança das Nações Unidas, tem pequena influência no Fundo Monetário, no Banco Mundial, na própria Organização Mundial do Comércio e não participa do G8. Por fim, temos uma grande vulnerabilidade ideológica. Há uma profunda penetração da mídia e das agências de notícias na formação do imaginário nacional. A visão que nós temos dos acontecimentos nos é dada por outros. Tudo que vemos nos jornais sobre o Afeganistão é versão dos outros. Se a gente quer saber do Chile, não consegue, porque as agências de notícias privilegiam os países centrais. A criação do nosso imaginário cultural é feito pela televisão, pelo cinema. Há uma hegemonia cultural norte-americana enorme. A maior parte dos filmes e notícias têm origem nos EUA. Tem também a política de que todo brasileiro deve saber inglês, o que cria um vínculo cultural muito grande. Não há formação de material cultural no Brasil que permita termos uma idéia do mundo e de nós mesmos adequada. Falta auto-estima. - O Brasil tem condições de superar essas desigualdades e vulnerabilidades? O Brasil não é um país comum. Se fizermos uma lista com os dez maiores países do mundo em território, uma com os dez maiores países em população e uma com os dez maiores países em PIB (Produto Interno Bruto), há três que aparecem nas três listas: os Estados Unidos, a China e o Brasil. O Brasil é do porte destes países. Não é do porte da Holanda nem mesmo da França. Ter o território grande significa que o Brasil tem o maior estoque de biodiversidade e de água doce do mundo. Isso permite que o país tenha recursos naturais necessários para o desenvolvimento, não seja tão dependente. Temos auto-suficiência de energia elétrica. É claro que as políticas podem levar a uma crise de energia, mas isso é por incompetência não é por falta de recursos naturais. Temos recursos necessários para diversas atividades industriais e para o abastecimento da população que outros países, como o Japão, não têm. Temos uma grande população, o que é fundamental do ponto de vista político internacional. Por isso podemos ter um grande mercado interno e depender menos dos mercados externos, como é o caso dos Estados Unidos. Eles têm uma economia poderosa porque têm um enorme mercado interno. Desse modo pode haver todo tipo de produção. Quem diria, no passado, que iríamos nos especializar em produzir aviões? O Brasil já acumulou capital e conhecimento para produzir os mais diferentes produtos. Tem uma enorme indústria petroquímica, siderúrgica, de papel e celulose, de alumínio, de metalurgia e de bens de consumo. A propriedade não é brasileira, mas a indústria está aqui, fisicamente. Por isso o Brasil precisa desenvolver suas potencialidades, estabelecer políticas que interessem ao seu desenvolvimento. O Brasil não precisa da Alca para fazer isso. - A Alca não poderia contribuir para ter esse desenvolvimento? Como ter igualdade de condições, se as empresas, no Brasil e nos EUA, são tão desiguais? O déficit brasileiro vai certamente aumentar em relação aos EUA, assim como a nossa competição com eles e com outros países da América Latina. Qual é a vantagem do Mercosul? As empresas brasileiras instaladas no Brasil, de capital brasileiro ou não, ao exportar para a Argentina pagavam tarifa zero, enquanto as empresas americanas pagavam tarifa. Quando a Alca entrar em vigor esta tarifa acaba. O caso do México com o Nafta é ilusório, porque o 48% de aumento das exportações são das maquiladoras. Esses fatos estatísticos não refletem valor agregado. Os produtos das maquiladoras, em geral, vêm do território americano e são montados. O que agrega de valor é muito pouco. É como se você mandasse a sua blusa para o México, importando a 20 dólares. Lá costuram um botão, o que custou 1 dólar, então volta para os Estados Unidos com valor de 21 dólares, então qual foi o aumento do comércio? 41. Mas, na realidade produziram no México por 1 dólar. No México aumentou a concentração de renda, aumentou a pobreza, a situação na área das maquiladoras é gravíssima, as condições de trabalho são terríveis. A internacionalização é muito grande e não houve aumento da renda média do trabalhador, apesar de ter aumentado a renda total do país. - Alguns economistas dizem que o Brasil exporta a metade do que poderia exportar, levando em conta o seu PIB. A Alca não ajudaria a alterar isso? Isso é um equívoco. O que está acontecendo na área comercial é que a maior parte do comércio, inclusive o brasileiro, é entre firmas, isto é, a Fiat do Brasil exporta para a Fiat da Itália, a Ford do Brasil exporta para outras Ford. É um comércio entre multinacionais. A idéia de que Brasil teria que exportar mais para ter um PIB maior é ridícula. Os países pequenos se especializam em poucos produtos e, como não produzem nada, têm que importar muito. Um país maior acaba tendo a relação de comércio exterior com o PIB menor. Não existe livre comércio nem no mundo nem no Brasil. Vamos supor que as exportações brasileiras aumentassem com a Alca. E as americanas, e as canadenses, e as australianas? Só o Brasil iria se aproveitar? No caso do comércio exterior brasileiro, foi a ação do Estado em relação às empresas que diversificou a pauta de exportação do Brasil ao criar os programas de incentivos fiscais. Quando você desnacionaliza seu parque industrial é mais difícil, porque não há empresas que sejam independentes. A Volkswagen do Brasil não vai disputar mercado com produtoras de veículos como a Volkswagen da África do Sul, porque é a mesma empresa. Já os coreanos disputam mercado na área de automóvel, porque as empresas são deles. O parque automobilístico brasileiro é da indústria estrangeira. E também não existe sentido em orientar toda a idéia de transformar o Brasil em um país agrícola ou produtor de produtos primários. Toda a idéia do desenvolvimento é você sair dos mercados mais difíceis e entrar naqueles em que você tenha poder, possa criar uma política de preços e ser um dos maiores. São as marcas, a distinção de que só a sua empresa sabe fazer aquele tipo de produto. Além disso, existe uma série de regras do comércio internacional que dificultam as exportações. Precisa haver uma política comercial ativa. - Existe um argumento também de que a Alca atrairia investimentos para o Brasil. É outro equívoco. O Brasil, por exemplo, é em si mesmo uma área de livre comércio, no sentido em que não há obstáculos nas exportações de São Paulo para Minas. É mais do que livre comércio, é uma união econômica. Não foi sempre assim. Até a revolução de 30 havia impostos interestaduais. Qualquer empresa pode se instalar no Rio, em São Paulo, em Minas, e o que aconteceu? Um processo natural de concentração de riquezas, especialmente em São Paulo. Por quê? A teoria econômica explica que há um processo de causação circular: o círculo virtuoso. Por uma razão histórica - café, indústria, imigração etc - todo o investimento estrangeiro no Brasil tem a tendência de ficar nas áreas mais desenvolvidas. Mas por que a fábrica da Mercedes Benz não se instalou numa região de São Paulo? Porque em Juiz de Fora ela recebeu uma vantagem fiscal. O que é a guerra fiscal do Brasil? É a tentativa de reverter estes elementos naturais. Os Estados menos desenvolvidos oferecem mais vantagens para tentar atrair investimento. Na Alca, qual é a área mais desenvolvida? Os Estados Unidos, que têm 80% do PIB das Américas; junto com o Canadá e México. Onde é que o investimento estrangeiro iria se estabelecer? Se não houver outro atrativo, como o minério, lá. E de lá exportar uma parte para cá, é óbvio, pois não teria tarifa nenhuma. E as atividades intensivas de trabalho ficariam nas áreas de mão-de-obra mais barata.
"EUA subsidia sua indústria pelo orçamento militar que é de 400 bilhões de dólares"
Segundo o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, negociação com a Alca "é como se um condenado à morte estivesse negociando com um carrasco como ia ser a execução, e a vítima chega à conclusão de que talvez o melhor seja a guilhotina". A entrevista com o embaixador, que foi demitido do cargo que ocupava por Fernando Henrique por defender interesses brasileiros contra os EUA, foi recentemente publicada na revista "Cadernos Diplô", vinculada ao "Le Monde Diplomatique" - cuja versão em português é publicada pela mesma equipe no site www.diplo.com.br. Com autorização da "Cadernos Diplô", reproduzimos nesta edição a segunda parte da entrevista com o embaixador - Diplô - Do ponto de vista político, como a Alca afetaria o Brasil? Samuel Pinheiro Guimarães - Num país como o Brasil, com desigualdade e vulnerabilidade, o livre jogo das forças de mercado não resolve estes problemas. As empresas jamais empregarão 50 milhões de pessoas, inclusive porque estas pessoas não têm qualificação profissional. Além disso, cerca de 1 milhão de pessoas por ano ingressam no mercado de trabalho no Brasil. Para empregar, tem que orientar, privilegiar certos tipos de tecnologia industrial. Tem que ter políticas públicas, orientar as atividades econômicas para enfrentar as disparidades. E com a Alca, se for igual ao Nafta, pode acontecer de o fato de o Estado ter escolas grátis ser considerado concorrência desleal, porque prejudica as instituições de ensino privado. - Isso se estende a todas as áreas? No capítulo 11 do Nafta, as empresas podem processar os países se considerarem que as políticas estatais reduzem os seus lucros. E a Alca vai ser igual ao Nafta. Os americanos já propuseram exatamente isso. Existirá uma dificuldade de o Estado ter uma ação direta na economia, pois um dos grandes objetivos dos EUA com a Alca é ter acesso aos recursos naturais. O México até conseguiu preservar o petróleo, mas os Estados Unidos sabem que com o tempo e com as dificuldades da balança comercial do México, isso eventualmente será resolvido. Eles terão que abrir o setor de petróleo de uma forma ou de outra. Por exemplo, a UPS, empresa norte-americana de entrega de encomendas, está processando o Canadá, alegando tratamento discriminatório, porque o Correio canadense, um serviço público, faz isso. - Do ponto de vista dos EUA, quais os grandes objetivos estratégicos com a Alca? Existem objetivos militares, econômicos e políticos. A partir de 1989, apesar da aparência em contrário, o mundo se tornou mais multipolar. Hoje existe a consolidação da Europa, do Euro, a consolidação da China, que cresce 10% ao ano há uma década. A Alca, dentro da estratégia norte- americana, aparece como uma consolidação da sua base territorial. Não que eles tenham perdido a idéia de ter uma estratégia mundial. Eles querem é assegurar este mercado, o acesso aos recursos naturais, principalmente ao petróleo, que é fundamental para a economia deles. Mas querem diversificar as fontes para não depender tanto do Oriente Médio, que é um barril de pólvora. Existem grandes jazidas no México, na Venezuela e algumas no Brasil. No aspecto militar, interessa o desarmamento da periferia, a transformação das Forças Armadas em forças policiais. É pela idéia da segurança que passa o subsídio industrial nos EUA, pois a política industrial deles é feita pelo orçamento militar, que é cerca de 400 bilhões de dólares por ano, quase o PIB brasileiro. Como é que se faz armas? Com aço. - Por que alguns setores brasileiros defendem a Alca? Faz parte de uma visão do sistema econômico que diz que as dificuldades da economia brasileira no passado resultaram da intervenção do Estado, da regulamentação, do fechamento da economia ao capital estrangeiro. Isso levou a estelionatos, crise de pagamentos, etc. A estratégia, portanto, é liberalizar, desnacionalizar, abrir capitais a qualquer custo. É uma visão que corresponde à visão política de que o mundo é bom, pacífico, todos vão cooperar com todo mundo, os capitais virão para o Brasil, desde que ele seja um país normal. Normal significa um país que não tem armas, que abre unilateralmente a sua economia, não cria casos como os países desenvolvidos. A estratégia é acabar com as tarifas porque a tarifa distorce, protege mais um setor do que outro. Segundo eles, para promover a liberdade das forças de mercado não deve haver nenhuma intervenção do Estado. - Como o senhor vê a discussão sobre um projeto nacional? Projeto nacional é um conjunto de políticas públicas, ou seja, de instrumentos que o Estado tem para influir sobre as atividades econômicas, emprego, educação. Política econômica é criar um mercado interno, expandi- lo, não ter disparidades, aumentar a produtividade, a competitividade e, ao mesmo tempo, aumentar empregos. O êxito de uma sociedade não está no aumento das exportações nem ingresso do capital estrangeiro, está no aumento da capacidade instalada e do emprego. Aqui o capital estrangeiro entrou para usar a capacidade instalada e não para aumentá-la. - Entre alguns setores, mesmo de oposição a esta política atual, fica parecendo que a questão é escolher entre a Alca e o Mercosul, ou a Alca e a União Européia. É por aí? É a mesma coisa. Na União Européia existem a indústria alemã, a italiana, a francesa, altamente competitivas, que sobrevivem ao mercado internacional. O efeito é o mesmo. Deixará de haver tarifas com estes países. - Como o senhor avalia a conduta do governo nas negociações? É um processo de acomodação, para chegar a uma posição que é comum. O objetivo dessa negociação em si é negativo. Você não está negociando uma coisa que pode ser boa. É como se um condenado à morte estivesse negociando com um carrasco como ia ser a execução, e a vítima chega à conclusão de que talvez o melhor seja a guilhotina. Definido isso, continua a negociação. O Brasil havia definido quais eram as condições para participar, que era negociar todos os temas ao mesmo tempo, depois negociação por blocos, e que o Mercosul negociaria em conjunto com o Nafta. Depois, estabeleceram as condições de eliminação de todos os subsídios à produção, à exportação, dos obstáculos ao acesso de mercado, e que os Estados Unidos aceitariam rever sua política de proteção. No entanto, os EUA já declararam oficialmente que não vão negociar os seus produtos agrícolas nem sua legislação de proteção comercial. Estão negociando separado, país por país, com o Chile, com o Uruguai. Portanto, as condições, que o próprio presidente da República declarou que seriam preliminares para que a Alca pudesse ser aceita pelo Brasil, já não estão sendo obedecidas. No entanto continuam negociando. - O senhor acha que a sociedade está informada sobre esse processo? Uma parcela cada vez maior da sociedade brasileira está criando consciência sobre a importância destas negociações, que são absolutamente antidemocráticas e autoritárias. Esse é um tipo de acordo que é tão amplo, que envolve aquilo que normalmente é feito pelo Congresso. Mas está sendo feito pelo Executivo brasileiro, sem conhecimento por parte da sociedade dos detalhes do que vai ser decidido. Sairá do Brasil aprovado e será transformado em lei. No fundo, a legislação econômica brasileira está sendo elaborada não pelos seus representantes legais, os deputados e senadores, que são os escolhidos para isso, mas por um grupo de pessoas do Executivo. - A indústria cultural americana já exerce um poder enorme no Brasil. Como vai ficar este setor com a Alca? A Alca não tem mecanismos específicos na área da cultura, porém a idéia é que não haja nenhuma restrição à produção cultural estrangeira. Não será possível estabelecer proteção à produção cultural local. Já existe um domínio das gravadoras na área de música, e começará a influência nas editoras, nos jornais, na televisão. O importante é garantir a diversidade e lutar contra o monopólio cultural. Basta ter uma política que estabeleça que não pode existir uma exibição maior do que a produção brasileira em algum veículo. Quem quiser exibir só 10% de filmes brasileiros pode, mas não pode exibir 11% americanos. Tem que exibir também filmes italianos, iranianos. É uma estratégia que não é restrição e sim uma maneira de diversificar as manifestações culturais. * Transcrito do jornal Hora do Povo, edições de 03 e 06/12/2002
https://www.alainet.org/pt/articulo/106768

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