Davos e Porto Alegre: Movimento popular força debate sobre inclusão social

20/02/2002
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Política econômica de países em desenvolvimento deve ser diferente das de sociedades maduras, com reduzido crescimento demográfico, infra-estrutura construída e geradoras de tecnologia O Brasil é um país subdesenvolvido (e não apenas injusto). Por essa razão, as políticas para superar os três grandes desafios brasileiros, quais sejam reduzir as vergonhosas desigualdades, eliminar as vulnerabilidades externas e realizar seu extraordinário potencial são necessariamente diferentes das políticas adequadas ao crescimento e à estabilidade econômica dos países altamente desenvolvidos, sociedades maduras, de reduzido crescimento demográfico, de infra-estrutura construída, geradoras de tecnologia. Em Davos, o centro das discussões tem sido a globalização da economia mundial, encarada como um processo benéfico a todos os países e a todos os indivíduos, equânime e pacífico, e das políticas que todos os países, sem distinção, devem seguir para melhor participar desse processo. As políticas "ideais" de Davos têm sido em geral apresentadas como a redução do Estado; a desregulamentação dos mercados; a abertura das economias à livre movimentação de bens e de capitais (mas não da mão-de-obra); a privatização; a liberdade de ação para as megaempresas multinacionais. Em Davos, essas políticas tem sido objeto de louvor e de debates com a participação de estadistas em geral periféricos, executivos de megamultinacionais, acadêmicos neoliberais, administradores das agências internacionais. São políticas recomendadas com ênfase aos Estados "em transição" (ex-socialistas) e aos Estados periféricos desde 1979, quando se inicia nos Estados Unidos e na Inglaterra a luta neo-liberal contra o Welfare State, e, recomendadas muito em especial a partir da Queda do Muro de Berlim, que teve enorme valor simbólico de fracasso do socialismo (e da intervenção do Estado) e de vitória do capitalismo neoliberal, da "democracia de mercado" e dos Estados Unidos, nova Hiperpotência, magnânima e beneficente, em um mundo novo, unipolar. Apesar da longa expansão da economia americana, interrompida antes dos atentados de setembro de 2001, da profunda reorganização produtiva causada pela tecnologia da informação e a telemática, os programas neoliberais nos países desenvolvidos, nos países em transição e nos países subdesenvolvidos (entre eles o Brasil) trouxeram conseqüências inesperadas para seus propugnadores. Nos países desenvolvidos se acentuaram a concentração de renda e de riqueza, o desemprego estrutural e a oligopolização de mercados; na política, o separatismo, a xenofobia e os movimentos de direita agressiva, como no caso da Áustria e da Itália, enquanto o fenômeno da corrupção empresarial e política se espraiou, sendo seu símbolo maior o caso da megaempresa ENRON, nos Estados Unidos. Nos países em transição, em especial na União Soviética, a aplicação dos ideais de Davos desarticulou o Estado e a sociedade, levando à "apropriação" dos bens públicos, à ampla corrupção nos mais altos níveis, à proliferação das máfias, ao aumento da pobreza e da mortalidade infantil e ao caso raríssimo de redução da expectativa de vida da população. Nos países subdesenvolvidos implantaram-se com rigor os programas neoliberais propugnados pelos participantes de Davos, que exaltaram, em distintas ocasiões, "estadistas exemplares", tais como Salinas de Gortari, Carlos Andrés Peres, Collor de Mello, Alberto Fujimori, Carlos Menem e Domingos Cavallo, os dois últimos autores do "sucesso argentino", modelo tão recomendado ao Brasil. Esses programas fragilizaram e estagnaram a economia, concentraram a riqueza e a renda, ampliaram a pobreza, esgarçaram o tecido social, devido à política míope de abertura radical, sobrevalorização cambial, altas taxas de juros. Tudo em busca de uma estabilidade fictícia da moeda que atrairia os capitais externos, que modernizariam o país, ampliariam a capacidade, instalariam uma plataforma exportadora, aumentariam a competição, reduziriam preços, gerariam tecnologia, enfim, "reformariam" o Brasil. É verdade que nem todos se prejudicaram no Brasil com a execução das estratégias de Davos, que ressuscitaram o laissez-faire, o utilitarismo e o darwinismo social. O ilusionismo da moeda forte e do orçamento equilibrado foi feito à custa de um acelerado endividamento interno atingindo mais de 53% do PIB e do enorme agravamento dos compromissos externos, públicos e privados. A política econômica, as emendas constitucionais, os processos de privatização, as concessões e a desregulamentação, foram saudados como grandes realizações, até que a extorsão tributária, os cortes orçamentários, os juros astronômicos, a desnacionalização, a fragilização da infra-estrutura e a vulnerabilidade externa parecem ter despertado mesmo aqueles setores e indivíduos que haviam se beneficiado inicialmente daquelas políticas. A síntese da "sabedoria de Davos" é o naufrágio argentino, a poucos quilômetros de Porto Alegre, mas muito longe de Davos. O aumento espetacular da pobreza e da fome; as contas da corrupção, como os 10 milhões em depósitos de Carlos Menem, revelados agora pela Suíça; o descrédito e a revolta contra as instituições públicas, os políticos e a democracia partidária; a revolta contra os capitais estrangeiros, em especial os bancos, percebidos como predadores; a regressão industrial e a não-competitividade; os enormes compromissos externos e a escassez de divisas que se evadiram em especial na última gestão de Domingo Cavallo, ex-ídolo de Davos, são os resultados dessa "sabedoria". O fórum de Porto Alegre representa toda a inquietação da enorme maioria da população mundial com as estratégias econômicas neo-liberais de Davos que ampliaram a pobreza, a miséria e o desemprego, que contribuíram para agravar a violência, a exclusão, a marginalidade e a xenofobia, que agridem o meio ambiente, que fazem regredir as conquistas da legislação do trabalho e que fragilizam as economias dos países periféricos, deixando-as prisioneiras de uma espiral viciosa de endividamento, crise, renegociação, condicionalidades, ajuste fiscal, estagnação, endividamento, crise e assim por diante. Os movimentos de protesto como os que ocorreram em Seattle, em novembro de 1999; em Davos, em janeiro de 2000; em Bangcoc, em fevereiro de 2000; Washington, em abril de 2000; em Bolonha, em junho de 2000; em Praga, em setembro de 2000; em Seul, em outubro de 2000; em Porto Alegre, em janeiro de 2001; em Nápoles, em março de 2001; em Buenos Aires, em março de 2001; em Montreal, em abril de 2001, em Honolulu, em maio de 2001; Gênova, em julho de 2001, demostraram que o pensamento único neoliberal não é hegemônico e, muito pelo contrário, não será aceito pela enorme maioria da humanidade. São os movimentos sociais anti-globalização assimétrica e a favor de uma globalização solidária que tem contribuído para acelerar uma revisão das políticas defendidas pelas agências internacionais, como a autocrítica feita recentemente pelo próprio diretor geral do FMI, a reconsideração do papel do Estado no desenvolvimento econômico, o regresso discreto das políticas keynesianas nos Estados Unidos e até para as mudanças de políticas econômicas no centro e na periferia do sistema, tais como a defesa do controle dos capitais especulativos e da abertura imediata dos mercados dos países desenvolvidos. Esses movimentos, e entre eles figura com destaque o Fórum de Porto Alegre, já contribuíram para forçar a inclusão do debate de políticas sociais no próprio Fórum das elites em Davos e contribuem para a luta permanente de humanização da política econômica, no centro e na periferia, indispensável para a construção de sociedades mais justas, mais prósperas, mais democráticas. * Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador, ex-chefe do Departamento Econômico do Itamaraty e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty
https://www.alainet.org/pt/articulo/105667
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