A esquerda marrom

20/03/2012
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Está ficando claro que para os governos progressistas ou da nova esquerda as questões ambientais se tornaram uma seara de sérias contradições. O apoio decidido ao extrativismo para alimentar o crescimento econômico vem agravando os impactos ambientais, desencadeia sérios protestos sociais e perpetua a subordinação como provedores de matérias-primas para a globalização. Rompe-se o diálogo com o movimento verde, virando uma esquerda cada vez menos vermelha, pois está ficando marrom.
 
Uma rápida olhada nos países sob governos progressistas mostra que em todos eles há conflitos ambientais em curso. É impactante que isso não seja exceção, mas tenha se tornado regra em toda a América do Sul. Por exemplo, nestes momentos ocorrem protestos contra o extrativismo minerador e petroleiro, não só da Argentina a Venezuela, mas também em Guiana, Suriname e Paraguai.
 
Na Argentina registram-se conflitos cidadãos contra a mineração em pelo menos 12 províncias; no Equador, o protesto social contra a mineração também segue crescendo; na Bolívia, há pouco tempo encerrou-se uma marcha indígena em defesa de um parque nacional (TIPNIS) e já se anuncia nova mobilização. Nestes mesmos países, os governos progressistas incentivam o extrativismo, amparando as empresas que o praticam (estatais, mistas, privadas), oferecendo facilidades de investimento ou reduzindo as exigências ambientais. Os impactos sociais, econômicos e ambientais são menosprezados. Os governos em alguns casos enfrentam o protesto social, em outros criticam acidamente tais movimentos, e num giro mais recente criminalizam e chegam a reprimir.
 
A contradição entre um desenvolvimento extrativista e o bem-estar social acaba de alcançar um clímax no Peru. Ali, o governo de Ollanta Humala decidiu apoiar o grande projeto minerador de Conga, em Cajamarca, apesar da generalizada resistência local e a evidência de seus impactos. Isso gerou uma crise no seio do gabinete, a saída de muitos militantes de esquerda do governo e uma fratura em sua base política de apoio. O governo se afastou da esquerda ao decidir garantir os investimentos e o extrativismo.
 
Ainda assim, é possível que o caso mais dramático ocorra no Uruguai, aonde há poucos meses o governo de Jose Mujica voltou-se decididamente à mudança da estrutura produtiva do país no sentido de torná-la mineradora. Assim, se propicia as condições para a megamineração ferrífera, apesar do protesto da sociedade, seus impactos ambientais e suas duvidosas vantagens econômicas. Paralelamente, acaba-se de aprovar uma polêmica ponte em uma zona ecológica de destaque, cedendo aos pedidos de investidores imobiliários ensimesmados com Punta del Este, e como se fosse pouco, agora ameaça desmembrar o Ministério do Meio Ambiente. O governo Mujica não está quebrando promessas de compromisso ambiental, já que a coalizão de esquerda uruguaia é um caso atípico no qual seu programa de governo carece de uma seção voltada a tais temas, deixando claro que está disposto a sacrificar a natureza para garantir os investimentos estrangeiros.
 
Esses são só alguns exemplos das atuais contradições dos governos progressistas. Elas resultam de estratégias de desenvolvimento de intensa apropriação de recursos naturais, onde se perpetua a aposta nos altos preços das matérias primas nos mercados globais. Sua macroeconomia está enfocada no crescimento econômico, atração de investimentos e promoção de exportações. Busca-se que o Estado capte parte dessa riqueza para se manter e financiar programas de luta contra a pobreza.
 
Sob tal tipo de desenvolvimento, a esquerda governante não sabe muito bem o que fazer com assuntos ambientais. Em alguns discursos presidenciais se intercalam referências ecológicas, aparecendo em capítulos de certos planos de desenvolvimento e até se fazem invocações a Pacha Mama (Mãe Terra). Mas se somos sinceros, deverá se reconhecer que no geral as exigências ambientais são percebidas como travas do crescimento econômico e que por isso são consideradas freios para a reprodução do aparato estatal e a assistência econômica aos mais necessitados. O progressismo se sente mais confortável com medidas como as campanhas para abandonar o plástico ou trocar as lâmpadas, mas resiste aos controles ambientais sobre investidores ou exportadores.
 
Chaga-se a uma gestão ambiental estatal enfraquecida porque não se pode fincar bandeira nos temas mais ardentes. É que muitos companheiros da velha esquerda que agora estão no governo no fundo seguem sonhando com as clássicas idéias do desenvolvimentismo material e estão convencidos de que se deve extrair ao máximo as riquezas ecológicas do continente. Os mais veteranos, em especial os caudilhos, sentem que o ambientalismo é um luxo que só os mais ricos podem se dar e por isso não é aplicável na América Latina enquanto não se superar a pobreza. Talvez alguns desses líderes, como Lula ou Mujica, chegaram muito tarde ao governo, já que essa perspectiva é insustentável em pleno século 21.
 
Tais contradições significam que esses governos se tornaram neoliberais? Certamente não, e é equivocado cair em reducionismos que levam a qualificá-los dessa maneira. Seguem sendo governos de esquerda, já que buscam recuperar o papel do Estado, expressam um compromisso popular que esperam atender com políticas públicas e gerar certo tipo de justiça social. Mas é uma esquerda diferente: seu problema é aceitar um tipo de capitalismo de fortes impactos ecológicos e sociais, em que só são possíveis alguns avanços parciais. Mais além das intenções, a insistência em reduzir a justiça social pagando cotas assistencialistas mensais a submeteu ainda mais à dependência de exportar matérias-primas. É o sonho de um capitalismo benévolo.
 
Parece que o progressismo governante só pode ser extrativista e que esse é o meio privilegiado para sustentar o próprio Estado e enfrentar a crise financeira internacional. Está sendo perdida a capacidade de novas transformações e a obsessão em se manter nos governos os torna medrosos e esquivos à crítica. Essa é uma esquerda, no fim das contas, mas de novo tipo, menos vermelha e muito mais progressista, no sentido de ser obcecada pelo progresso econômico.
 
Esse tipo de contradição explica o distanciamento crescente com ambientalistas e outros movimentos sociais, mas também alimenta a generalização de uma desilusão com a incapacidade do progressismo governante em poder ir mais além desse “capitalismo benévolo”.
 
Muitos recordam que em um passado não muito distante, quando vários desses atores estavam na oposição, tais esquerdistas reclamavam a proteção da natureza, monitorava o desempenho dos controles ambientais e apostavam em superar a dependência da exportação de matérias-primas. Essas velhas alianças vermelho-verdes entre esquerda e ambientalismo se perderam em praticamente todos os países.
 
Chegados a esse ponto, é oportuno recordar que, do ponto de vista ambiental, há distinção entre os assuntos “verdes”, focados em áreas naturais ou na proteção da biodiversidade, e a chamada agenda “marrom”, que deve lidar com os resíduos sólidos, os efluentes industriais ou as emissões de gases. O olhar verde aponta para a natureza, enquanto o marrom deve enfrentar impactos do desenvolvimentismo convencional.
 
Sob este contexto, o progressismo governante na América do Sul está se distanciando da esquerda vermelha e ao ficar obcecado cada vez mais pelo progresso se torna uma “esquerda marrom”. Essa “esquerda marrom” é a que defende o extrativismo ou celebra os monocultivos de transgênicos. Diante de tal deriva, a tarefa imediata não está na renúncia, mas em prosseguir nas transformações para que a esquerda seja tanto vermelha como verde.
 
- Eduardo Gudynas é analista de informação no D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia e Eqüidade), centro de investigações dos assuntos latino-americanos sediado em Montevidéu.
 
Traduzido por Gabriel Brito, Correio da Cidadania.
 
https://www.alainet.org/pt/active/53544
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