Em entrevista ao Diário de Cuiabá,

Dom Pedro Casaldáliga falou sobre a guerra, Lula, latifúndios e sobre o futuro

07/03/2003
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Sua casa é pequena, simples e tem as portas sempre abertas. Nas paredes sem reboco, relíquias, pequenas lembranças, mensagens, panfletos e ilustrações tomam cada ponto do diminuto espaço. Dom Pedro Casaldáliga está em uma varanda arejada, circundada por luz e verde, onde dá retorno a algumas das centenas de cartas que tem recebido ao longo dos últimos dias. É seu escritório, de onde se pode ver uma ainda mais modesta capela, erguida bem nos fundos do quintal. Quando recebeu o Diário, ele também preparava o envio de sua última e mais emocionada carta circular. "Pessoalmente sinto-me como quem espera num ponto de ônibus, sem saber bem nem a hora nem o destino imediatos, sabendo, porém, que continuaremos em comunhão a humilde viagem humana para a Casa paterno-maternal", diz, em um trecho da carta. O bispo é um homem franzino e de saúde frágil. Tem pressão alta, audição auxiliada por aparelhos e sua mão direita revela continuamente o mal de parkinson. As convicções, porém, seguem tão firmes quanto nas primeiras vezes em que se manifestou em nome das milhares de vítimas anônimas do latifúndio. "Passaram-se dois anos do novo século XXI e o Mundo continua cruel e solidário, injusto e esperançado. Ainda há guerra e há império, e o império acaba de inventar a guerra preventiva. Ainda o Mundo se divide pelo menos em três: Primeiro, Terceiro e Quarto. A fome, a pobreza, a corrupção e a violência têm aumentado; mas aumentaram também a consciência, o protesto, a organização, a vontade explícita de alternatividade". Inquieto, respondeu às perguntas muitas vezes sem esperar que o repórter as concluísse. Falou abertamente do passado e do futuro, dos homens da guerra e das manifestações pela paz, deu conselhos a Lula, se emocionou ao tratar da própria morte e ainda reconheceu os próprios erros. Um relato franco sobre utopia, realidade, medo e esperança. DIÁRIO - Como foi o impacto de, aos 40 anos, deixar a Europa para se embrenhar no interior de Mato Grosso? Casaldáliga - É sempre brutal. Mas, felizmente, eu e um colega que vinha comigo, padre Manoel, fizemos o curso do CENFI (Centro de Formação Intercultural, organizado pela CNBB) para missionários estrangeiros. Fomos aprender a língua e também nos situarmos, ao menos inicialmente, na história e na cultura brasileiras. Foi muito bom porque chegamos em Mato Grosso um pouco vacinados ideologicamente, no melhor sentido da palavra. Porque se você vem de Madrid (capital da Espanha), onde passei meus últimos anos, diretamente para Mato Grosso, justo naquela época da ditadura militar, fica perdido, não tem nem idéia de onde está. Então esse curso nos dava, além de aulas de idioma, uma visão dos dois ou três ou vários brasis. Por outra parte você vinha aqui a um mundo perdido, que não tinha infra-estrutura nenhuma, até o ponto de que a primeira carta pastoral que eu escrevi, quando fui sagrado bispo, em 23 de outubro de 1971, ao ar livre, à beira do rio Araguaia, se intitula "Uma igreja da Amazônia contra o latifúndio e a marginalização social", porque o que a gente via é que o problema não era só o latifúndio, mas um total desamparo administrativo. DIÁRIO - A conjuntura política também contribuiu para esta tomada de posição? Este documento é quase uma declaração formal de guerra. Casaldáliga - Aquela era uma América Latina em plena época de ditaduras militares, de perseguição religiosa e, particularmente, de perseguição a nós aqui na Prelazia de São Félix do Araguaia, pelo nosso posicionamento frente às injustiças e na defesa do índios, dos posseiros e dos peões. Era a luta contra o latifúndio patrocinado por uma ditadura militar. E era significativamente nesta região, porque de Barra do Garças até a divisa do Pará, esta área toda, o nortinho de Mato Grosso, era pioneira dos incentivos fiscais patrocinados pela Sudam. Então você ir contra o latifúndio, era ir contra o sistema, o regime, o que desencadeava a ira da polícia, do exército e da ditadura. Então todas as grandes fazendas, a Suiá-missu, a Codeara, a Santa Terezinha, a Bordon, eram nossas inimigas porque eram inimigas dos índios, dos posseiros e dos peões. Quando eu escrevi em um poema "maldito seja o latifúndio, e a Sudam, sua amancebada", eu já demonstrava que a situação era muito séria. Tanto que foi aqui que surgiu a idéia do que futuramente seria a Comissão Pastoral da Terra (CPT). A gente percebeu que o que estávamos vivendo aqui ia se espalhando pelo Sul do Pará, pela região norte de Goiás, hoje Tocantins. DIÁRIO - Os conflitos de terra no Araguaia eram um prenúncio do destino de toda a Amazônia? Casaldáliga - Correto. Não havia fiscalização nenhuma. A Sudam era a prostituta do latifúndio, com o perdão das prostitutas. E o povo inerme, indefeso, não tinha organização, não tinha sindicato, enquanto as forças todas, políticas, judiciárias e militares estavam a favor do latifúndio. Você podia apelar a quem? A Deus e aos mortos. E aqui nesta região nós temos concretamente dois direitos de terra: o de compra, que é titulado no papel, e o de posse, que é suado e escrito nos calos. Mas na hora da verdade, com suas malandragens nos cartórios, você sabe quem prevalece. O primeiro presidente da Funai, logo após a extinção do SPI (Serviço de Proteção ao Índio, extinto em 1967) me falou que no Parque Indígena do Xingu havia uma área com três títulos de terra sobrepostos. Isso na área sagrada dos índios. Agora, imagine em outros lugares. O governador Garcia Neto chegou a declarar em uma revista de circulação nacional que se Mato Grosso tivesse que cumprir as exigências de títulos de terra que constavam nos cartórios, haveria necessidade de se invadir uma parte do Pará e outra de Goiás. DIÁRIO - Muitas pessoas, inclusive dentro da igreja, criticam o posicionamento tido como radical da Prelazia. Como o senhor responde a essa afirmação? Casaldáliga - Olha, em áreas conflitivas é muito difícil, por um lado, a demarcação dos campos e, por outro, a equanimidade, pois tudo é quente. Você não pode andar com meias tintas. É preciso deixar claro de que lado você está. Então nós éramos maldosamente chamados de comunistas, terroristas, diziam que estávamos envolvidos com a guerrilha no Pará. Advertiam a quem chegava: cuidado com a Prelazia, cuidado com o bispo. Tudo porque, na época, se não organizássemos nós, não organizaria ninguém. Isso fez com que o próprio povo tivesse de optar: com a prelazia ou contra a prelazia. Até mesmo nas campanhas eleitorais. O próprio MDB da época, que era a única oposição pública que havia, foi considerado o partido da prelazia. E, afinal de contas, nós não patrocinávamos um partido, mas a reivindicação de um povo, no seu direito a reclamar o seu direito. Depois foi chegando mais gente de fora, baixaram as águas, se multiplicaram os partidos, o governo, bem ou mal, passou a uma democracia formal pelo menos, o país foi se organizando em sindicatos e associações, ongs. Então já não é a Prelazia a única a falar. Já não temos que substituir ninguém. Hoje, sempre quando surge um problema de terra, eu digo: procure o sindicato, procure o Incra. Na época, além de nós, os pequenos não podiam procurar mais ninguém. DIÁRIO - Há contudo mazelas e carências que ainda persistem. Como o senhor vê a região do Araguaia após estes 35 anos? Casaldáliga - A falta de infra-estrutura continua. A falta de reforma agrária que seja também reforma agrícola e que vá à raiz, acabando com o latifúndio, também. Eu tenho uma convicção, a tenho repetido várias vezes e até hoje ninguém me desmentiu: desde que cheguei aqui, nestes 35 anos, de Barra do Garças até a divisa com o Pará, onde termina a Prelazia, foi desmatado e queimado 80% do território. Houve uma época em que desafiamos algumas autoridades federais a apontar uma só fazenda em toda a Amazônia Legal que tivesse cumprido com aqueles requisitos que teoricamente se exigem, como respeitar a área de mata, favorecer o emprego de mão de obra e produzir o que se dizia. Esta fazenda nunca nos foi mostrada. São só léguas e léguas de queimadas e destruição. A fiscalização tem sido ou nula, ou corrupta, ou sem estrutura. Às vezes, funcionários destas autarquias oficiais não têm carro ou lhes falta combustível para atender uma área infinita. Tanto o Incra, quanto o Ibama e a Funai, com muitíssima freqüência, estão desaparelhados. DIÁRIO - Segundo a própria CPT, também persiste a escravidão. Casaldáliga - Aqui mesmo na região temos tido recentemente casos de escravidão nos municípios de Santa Terezinha, Vila Rica e Confresa. E este trabalho contra o trabalho escravo que faz a CPT é sobretudo no Norte de Mato Grosso, no Sul do Pará e no Tocantins. O primeiro documento que eu fiz, no ano de 1970, intitulado "Feudalismo e Escravidão no Norte de Mato Grosso", foi um primeiro grito contra essa escravidão que, à época, não se tratava de um caso ou outro caso. Era o sistema, era o regime. O latifundiário trazia 70 a 80 peões de um povoado do Piauí, por exemplo. Aí jogavam na fazenda, sem direito trabalhista. Às vezes, os peões recebiam um tipo de vale para comprar mercadoria nos próprios armazéns da fazenda e, ao fim do contrato, ficavam endividados com a fazenda. O bacharel Francisco de Barros Lima, então chefe de inquéritos do centro-oeste da Polícia Federal, disse textualmente que na fazenda Codeara viu o maior caso de escravidão branca da história do Brasil. Isso em plena ditadura militar, dito pelo mesmo chefe de polícia que comandou a operação de prisão dos nossos agentes pastorais. DIÁRIO - Nesta mesma perspectiva, qual o resultado das políticas de integração da Amazônia implementadas na região? Casaldáliga - Em resumo: veio muito dinheiro, mas não o desenvolvimento. Muitas vezes porque os incentivos fiscais que se davam ao latifúndio não eram investidos aqui, mas nas próprias empresas que os ditos fazendeiros tinham no sul e sudeste. Várias dessas fazendas eram de bancos. A Codeara, por exemplo, era do Banco Nacional de Crédito (BCN). DIÁRIO - É verdade que o Vaticano também era um latifundiário? Casaldáliga - A história real é a seguinte: o último dono da fazenda Suiá-Missu foi a empresa italiana mista Eni-AGIP, da qual o Vaticano teve ações. Isso nos enchia a paciência, porque os inimigos e o povo achavam que a fazenda era do papa. Inclusive me chegou a seguinte versão: o papa comprou a Suiá Missu e a deu para o bispo repartir com a pobreza. Quando estive na CPI da Terra, no Congresso Nacional, os deputados me perguntaram e eu felizmente já havia me informado bem antes com o núncio do papa, que me respondeu diplomaticamente: se haviam ações, já não as havia mais. Aos inimigos era bom porque eles diziam: olha só, o papa tem a fazenda Suiá Missu, porque o bispo Pedro não protesta contra ele? DIÁRIO - Suiá-Missu por suas dimensões, poderia ser considerada um símbolo de tudo que de errado ocorria na região? Casaldáliga - Sim, porque era uma fazenda grande, que na época chegou a ser a maior fazenda de gado da América Latina. Chegou a ter três mil peões, em uma época em que São Félix tinha pouco mais de 600 habitantes. Ali o regime era de escravidão mesmo. Havia uma curva de estrada pouco antes de chegar à Suiá, com um precipício, uma espécie de grota como uma cratera. Na época mais dura da Suiá Missu, os peões diziam que aquele era o passeio do papai. Pegavam peões, matavam e jogavam os corpos lá. Apesar de tudo, aquela fazenda era para muitos como uma mãe, porque dava emprego. Esse mundo da peonada do trecho é dos mais dramáticos. Eles diziam: eu não tenho nem um passarinho para criar, a minha casa é o meu chapéu. Morriam muitos de malária, muitos matados, às vezes por pistoleiros, às vezes entre eles mesmos. Quando vinham aqui para São Félix, era só para bebedeira, prostituição e violência. Isso também mudou muito pouco. DIÁRIO - Além de posseiros e peões, os senhor se notabilizou mundo afora por defender a causa indígena. Hoje o que isso significa? Casaldáliga - A problemática indígena continua sendo a demarcação e a garantia das terras. E também evitar a ameaça que supõe a hidrovia e certas hidrelétricas. É preciso possibilitar a educação bilíngüe e o atendimento à saúde, rever formalmente a situação da Funai, e possibilitar em nível federal o novo Estatuto do Índio, que depende do congresso. Estamos continuando atendendo o povo Tapirapé, o povo Carajá também. Tem pessoal nosso que trabalha em consórcio com a Funasa em saúde indígena. DIÁRIO - Houve aumento populacional nas aldeias. A situação hoje é melhor? Casaldáliga - É claro que sim. Eram 200 mil em todo o país, agora são 500 mil índios. Vários têm reconquistado a terra, outros tantos estão revalorizando a cultura. Mas continua a existir o encontro e o choque com a nossa civilização, para mal e para bem. Porque também não se trata de deixar os índios num museu. O ideal seria que fosse não a integração do índio, mas a interintegração. O primeiro conceito significa absorção de uma cultura pela outra, já o segundo quer dizer o diálogo, a complementação. Eu posso aprender dos índios o amor à natureza, uma certa gratuidade e um espírito comunitário. A cultura branca pode contribuir com a sua experiência e sua técnica. Respeitar as identidades, numa convivência pacífica e plural, sabendo que o Brasil, até mesmo por constituição, é pluriétnico e pluricultural. É obrigação do Governo facilitar pluriculturalidade. Não está fazendo nenhum favor ao índio. É seu direito. Por outro lado, felizmente, eles têm crescido em organização, com suas associações, federações, confederações, inclusive em nível latinoamericano. DIÁRIO - Por falar em governo, o que o senhor espera do presidente Lula? Casaldáliga - O que eu peço a Lula é que continue sempre voltado para o povo, a serviço do povo. Já tivemos muitos governos anti-povo e muitos populistas. Seja ele então um governo popular. Segundo ponto: seja bem brasileiro e bem latino-americano e ajude o Brasil a se latinoamericanizar. Que privilegie ao máximo o Mercosul, saiba contestar a Alca e independize o Brasil dos Estados Unidos da América do Norte. Agora tudo isso é preciso ser executado em concreto". DIÁRIO - O Fome Zero é acusado de ser ao mesmo tempo populista e assistencialista. Casaldáliga - Eu entendo que às vezes é preciso se fazer gestos que são assistenciais. Só que estes não podem substituir nem a reforma agrária, nem a tributária nem a da previdência. Muitos ficam em dúvida sobre dar o peixe ou ensinar a pescar. Eu digo que tem que dar peixe, ensinar a pescar, às vezes tem de ensinar onde está o rio e tem de ajudar a conquistar o rio também, pois ele geralmente está nas mãos de três ou quatro oligarcas. Tem que conquistar o rio, senão continuaremos sempre submetidos a salários de fome, aposentadorias de fome, dívidas externas e ao capricho de impérios e oligarquias. DIÁRIO - Mas os primeiros dias não têm sido, como os reclamam os próprios colegas de partido, moderados demais? Casaldáliga - Eu sei que, como ele ganhou por alianças, são inevitáveis certas concessões. Eu também sei que nem todos os ministros pensam como Lula, mas torço para que ele mantenha o cabresto. Eu acho até bom também que continue um grupo radical para cutucar, cobrar, recordar, sempre que não faça o jogo do inimigo. Uma coisa é a política utópica, outra é a administrativa. Agora, nunca se pode negar a utopia, embora ela tenha se ser contida em um ritmo de administração. A utopia não tem ritmo, mas a administração tem. DIÁRIO - No plano internacional, como o senhor tem acompanhado a iminência de uma guerra contra o Iraque? Casaldáliga - Uma política imperialista, de terrorismo hegemônico, além de uma total estupidez. Essa guerra, como poucas, é ao mesmo tempo homicida e suicida. Os próprios EUA estão se desmoralizando frente ao mundo. A Europa, que estava tão submissa, já está contestando. A sociedade civil, mesmo em território americano, contesta significativamente. Na Inglaterra, mais de 70% são contra. Mas os EUA têm necessidade de que esta guerra aconteça, para que possam investir na fabricação de armas e ainda assegurar o petróleo e o domínio do Oriente Médio. Esta guerra é uma guerra de negócio, armas e petróleo. Saddam é só uma grande desculpa. Eu conheço a Guiné Equatorial, por exemplo, e os EUA se dão bem com o ditador de lá, porque ele deixa que os americanos assumam o controle do petróleo. O próprio Saddam Hussein foi criado por eles, os ditadores da América Latina foram criados por eles. A Inglaterra tinha o Pinochet, aquele ditador sanguinário do Chile, e o deixou ir. Agora quer livrar o Iraque da ditadura? É perversidade, cinismo e burrice, tudo junto. E o que é pior, em nome de Deus, o que já se torna blasfêmia. DIÁRIO - A justificativa oficial também passa pelos atentados de 11 de setembro. Casaldáliga - Que é nada mais que um dos muitos atentados que estão acontecendo na história da humanidade. Eu lamento profundamente a morte daquelas 3 mil pessoas, mas, pergunto, o que está acontecendo na África? Quem manda as armas à África? Quem suga seus diamantes? Quem sustenta seus vários tiranos? Por isso eu acredito cada vez mais na Internacional Humana, que é a sociedade civil se unindo, reagindo. Acredito cada vez mais no diálogo intercultural. Neste sentido, é um tempo de esperança. Honestamente, acho que está amanhecendo um novo tempo. Não é só retórica, eu digo isso com toda a sinceridade. Só na minha cidade de Barcelona, a marcha pela paz reuniu 1,3 milhão de pessoas. E foi assim em várias cidades do mundo. Esses senhores governantes serão obrigados, por bem ou por mal, a considerar o povo. DIÁRIO - O fortalecimento de iniciativas como a do Fórum Social Mundial são parte desse processo ? Casaldáliga - Acho que está se configurando o que se chama de altermundialidade, frente a uma globalização capitalista, neoliberal, do mercado total, de privilégio por um lado e exclusão de outro. Esse movimento de reação é bem significado pelo lema do Fórum Social Mundial, "Um Outro Mundo é Possível". Essa alteridade mundial é um outro mundo, que significará uma outra ONU, em uma nova relação entre os povos. Isso já está surgindo, facilitado também pelas comunicações. Alguém me dizia outro dia, que os famosos panfletos de uma época, agora estão sendo substituídos com uma grande vantagem pela internet. É um avanço positivo. DIÁRIO - Qual o papel das religiões na construção desta via alternativa ? Casaldáliga - Um teólogo suíço, Hans Küng, diz que não haverá paz no mundo se ela não existir entre as religiões. E que não haverá paz entre as religiões se falta diálogo entre elas. Então eu acrescento: e se o diálogo entre as religiões não versa sobretudo para as grandes necessidades da humanidade. Porque não adianta nada reunirem-se as religiões como uma tertúlia de amigos, esquecendo-se da fome, da guerra, da destruição ambiental e das migrações. O grande problema que tem Deus é a humanidade. Quem acredita que este Deus está vivo, tem que ajudá-lo a resolver os problemas da humanidade. DIÁRIO - Esse momento novo contraria uma tese que, de alguma forma, simboliza o momento da queda do muro de Berlim, quando o pensador americano Francis Fukuyama apontou o fim da História. Casaldáliga - Em primeiro lugar, ninguém, fora Deus, sabe o princípio e o fim da História. Em segundo lugar, eu posso lhe assegurar que há muita História pela frente. Até mesmo porque é muita ignorância e petulância pensar que ter chegado ao capitalismo neoliberal é ter ido ao máximo, que não há mais como ir além. O fim da história para Fukuyama significa exatamente isso: chegamos ao plus, ao plus ultra, não tem nada mais alto que isso. Se for verdade, é muito triste o fim da História. É um final desgraçado, porque a máxima parte da humanidade hoje é excluída. Não é com certeza um final feliz. Mas realidade se impôs rapidamente. Os últimos dias mesmo apontam uma perspectiva de uma nova política internacional da Europa, que vai se desprendendo cada vez mais dos EUA. Isso é bom para nós. É bom, por exemplo, que o Brasil se relacione com a Índia, com a China, com a Coréia, com a África. Que abra outros laços, para deixar de lado a hegemonia americana. DIÁRIO - Voltando à esfera da Prelazia, como têm sido estes dias de transição e despedida? Casaldáliga - Estou bastante despreocupado, bastante tranqüilo, porque agora só tenho de entregar a renúncia e nada mais. A partir daí, tudo depende do papa nomear um sucessor. É lógico que eu gostaria que houvesse continuidade na opção que temos feito. Mas se vier outro que ache que não, também será bom, para que se corrija o que temos cometido de erros. Reconheço que talvez tenhamos sido radicais demais da conta, talvez não tenhamos sido compreensivos em alguns momentos. Em outros, acho que fomos tímidos demais. DIÁRIO - O senhor continua em São Félix? Casaldáliga - Eu só sei que para a Europa não volto. Meu destino é o Terceiro Mundo, a América Latina e, bem possivelmente, o próprio Brasil. Vai depender muito de meu sucessor. Se o bispo que for nomeado para cá for da minha linha, eu posso ficar na região, sem problema. Agora, se é uma pessoa desconhecida ou que opina diferente, o mais certo é eu sair de São Félix. O meu sonho mesmo era ir à África, morrer lá. Seria uma contribuição, uma pequena contribuição, uma presença, deixar os ossos, a paixão e a esperança na África. Só que não estou bem de saúde, tenho problema de pressão, que anda muito descontrolada e alta, tenho parkinson. Então, para ir ate lá e dar trabalho aos outros, eu não quero. Mas, mesmo não indo, eu já tenho falado bastante, tenho escrito muitas coisas e deixo a minha paixão da África espalhada por aí. Outros vão, outros irão. DIÁRIO - Em sua carta de despedida, há alguns versos que falam de persistência e luta. Às vésperas da aposentadoria, qual o significado dessa mensagem? Casaldáliga - Eu achei que, nesta hora, um fragmento da peça "O Homem de La Mancha" define bastante o momento que todos estamos vivendo. Ele diz: Sonhar mais um sonho impossível (que é este outro mundo possível de que falamos tanto). Lutar quando é fácil ceder (primeiro porque estou me aposentando e segundo porque tem gente que já se cansou de tantas lutas). Vencer o inimigo invencível (que bem poderia ser o capitalismo neoliberal). E aí vem um trecho que considero bastante bonito e emotivo: Se esse chão que beijei (que é definitivamente a América Latina e esse Mato Grosso) for meu leito e perdão, vou saber que valeu delirar...(o bispo emudece por longos segundos, enquanto lágrimas caem de seu rosto) e que apesar de tudo, valeu a pena. DIÁRIO - O senhor acha que venceu algum destes inimigos invencíveis de que falam os versos? Casaldáliga - A grande verdade é que só vence aquele que continua, aquele que persiste, aquele que tem esperança e sabe passar a bandeira às novas gerações. Eu continuo cada vez com mais esperança. Essa é a minha vitória * Fonte: Diário de Cuiabá - 23/02/2003.
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