Fernando Huanacuni, uma das principais referências intelectuais dos aymara na Bolívia

Nosso modelo não é comunista, mas comunitário

12/07/2009
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O atual processo político boliviano, sem dúvida alguma, está entre os que mais despertam o interesse da esquerda brasileira. O elevado grau de protagonismo dos movimentos populares na política nacional, o simples fato do país ter elegido um presidente indígena, os embates acirrados com uma elite racista – que fazem de um golpe de Estado uma possibilidade plausível –, as lutas internacionais para garantir a soberania sobre seus recursos naturais, a forte presença do componente étnico como motor de mobilização, as mudanças feitas na Constituição de um país que agora se define como Estado Plurinacional, entre outros elementos, atraem os olhares para a Bolívia e a credenciam como um dos principais laboratórios políticos da atualidade.

 

A originalidade que compõe este processo político, porém, torna difícil a sua compreensão a partir de análises clássicas. É difícil até sistematizar a diversidade de organizações que fazem frente aos grandes capitalistas do país, o que dirá compreender qual o projeto move cada uma delas. Se olharmos só para o movimento indígena, deixando de lado outros movimentos populares, o sindicalismo e a organizações partidárias, veremos uma organização massiva e multifacetada, composta por culturas que nasceram, pelo menos, cinco mil anos antes do pensamento moderno ocidental. (O plurinacionalismo boliviano reconhece 36 povos originários). A entrevista a seguir, com o intelectual aymara Fernando Huanacuni, é só uma amostra desse mosaico político boliviano.

 

- Brasil de Fato – Durante um seminário sobre culturas originárias, você disse que vivemos “tempos de mudança” e que essa mudança não é só política, mas muito maior. Do que você está falando?

 

Fernando Huanacuni – O pensamento indígena originário, não só da Bolívia, mas de outros países, como os povos amazônicos do Brasil, tem a mesma explicação, a mesma projeção da história. A vida tem ciclos. Termina a noite, começa o dia. Em um ano, existem épocas secas, épocas de chuva, épocas de frio. Mas esses são ciclos pequenos. Existem ciclos muito maiores, que o indivíduo não se dá conta porque vive somente 80, 90 anos. E os ciclos são de 500, de mil, de quatro mil, de 20 mil, de 40 mil anos. Um sol tem um ciclo de quatro mil anos de história, sendo dois mil anos de ascenso e dois mil anos de descenso. Assim, existem os dias da história e as noites da história. O ascenso é o dia da história, o descenso é a noite da história E, para nós, em 1992 (que no calendário aymara corresponde ao ano 5500), terminou um sol. Então, a história vai voltar a ascender.

 

- Mas como ela vai voltar a ascender?

 

Nossos avós, de diferentes culturas indígenas, sabiam desses ciclos, do renascimento do sol, por isso começaram a se organizar. Em 1992, diferentes povos se reuniram para poder começar esse novo sol. E as culturas antigas guardaram, sobretudo, valores e princípios, e isso é o que agora está renascendo, porque é necessário, é questão de vida, não somente algo político ou social. Apesar da parte política ser a que mais se vê, a parte espiritual, as oferendas, as cerimônias, é que são a base fundamental de toda a força política, social , jurídica, econômica, educativa.

 

- Mas essa organização alavancada a partir de 1992, esses valores e esses princípios fazem parte hoje da cultura viva desses povos?

 

Nos anos 1980, quando íamos para o Willkakuti (o ano novo aymara) em Tiwanaku, éramos poucos, mas havia gente. Antes, nos anos 1970, 1950, 1940, 1930, no ano 1900, para você ter uma ideia, somente se tinha festa nas casas, com nossos avós, nada mais. Mas nunca desapareceu essa cerimônia. Em 1992, ganhamos força, e agora tem mais gente. Neste ano, haviam 20 mil pessoas. No México – em Teotihuacan, Tchenltza, Tenochtitlan – e até na Inglaterra fizeram cerimônias como estamos fazendo. No Peru, na Colômbia, de norte ao sul, fizeram suas cerimônias. Somente elas não são amplificadas pelos meios de comunicação. Aqui já estão difundindo um pouco, porque já é mais forte o movimento.

 

- E para que servem as cerimônias?

 

Para lembrar ao humano que ele tem um coração, que existe o pai Sol, que existe a mãe Terra. Queremos recordar que é muito importante agradecer. Nós não vivemos sós. Eu trabalho, você trabalha, mas não é por isso que existe vida. Existe vida porque existe sol, porque existem ciclos, porque existe chuva, porque existem sementes, porque existem rios, porque existem montanhas, porque existem árvores. Temos que despertar e entender que a vida é uma complementação e reciprocidade do todo, um equilíbrio perfeito. E, se destroçamos uma parte, vamos destruir tudo.

 

Aqui, nós dizemos Pachamama,ou Madre Tierra. Em outras partes, os indígenas dizem Madre Selva, Madre Agua. Então, identifica-se que nós não somos seres humanos e natureza, mas parte da natureza, não somos superiores. Essa forma de pensar existe da cultura antiga. O renascimento do tempo está nos convidando para que voltemos a essa antiga forma de pensar. Não podemos fazer mais danos à mãe Terra, essa é a primeira mensagem. Todos os povos indígenas originários, desde o Alasca, estão saindo em defesa da vida. Estamos convidando todos os Estados a dar um giro em suas políticas, seus decretos, suas Constituições. Até agora, somente as Constituições de Equador e Bolívia sabem que existe a mãe Terra, enquanto todas as outras Constituições só falam em direitos humanos. E isso não é viável, porque a vida não é só humana.

 

- Muitos discursos de governo na Bolívia falam em descolonização, especialmente aqueles ligados às políticas culturais. Essa descolonização significa resgatar a cultura antiga?

 

Temos que ver o que trouxe a colonização. O processo de colonização individualizou o pensamento, nos dessensibilizou. Já não se sente sequer pelo outro, pelo humano, quanto menos pelos animais, pelas montanhas. Se um tem comida, não importa se os demais têm. O processo de descolonização agora tem que sensibilizar, tem que nos naturalizar e nos fazer voltar ao conceito comunitário. Para as pessoas de pensamento ocidental, o sol é simplesmente um astro, nada mais. Para nós, é o pai Sol, nos referimos a ele com respeito, porque sua energia dá a vida. Quando a mãe Terra se desperta, nós damos alimento a ela, porque ela não é somente um objeto inerte, mas um ser que vive. Então, temos que despertar as pessoas. Estamos ilhados em nossas casas e apartamentos nas cidades, desintegrados. Temos que conectar outra vez o que a colonização desconectou.

 

Minha avó não falava espanhol, falava aymara. Na verdade, pacha-aru, a língua da vida. Falava com os animais, com o vento, entendia suas distintas formas de soprar. Minha mãe segue falando, eu só sei um pouco. Bom, você deve ter visto pelos meios de comunicação que, no episódio do Tsunami, os animais de lá se retiraram para o centro da ilha dois dias antes da tragédia. adiantou a tragédia para eles? CNN? Animal Planet? Não, pacha-aru. E os seres humanos o que fizeram? Colocaram bronzeador e foram para a praia.

 

- E hoje, qual relação os países de culturas colonizadas da América Latina devem estabelecer com os países de culturas colonizadoras, de origem europeia?

 

Primeiro, eu diria que os latinoamericanos têm que se encontrar com os indígenas, para depois poder dialogar com a Europa. O seu pensamento não está relacionado com o movimento indígena, tornaram o movimento indígena invisível porque pensavam que ele era inferior. Eles simplesmente imitaram a Europa. Dizem América Latina, percebe? Para nós, somos Abya Yala, assim chamamos nosso continente há milhares de anos. E te digo mais: temos mais diálogos com os europeus do que com os latinoamericanos.

 

- Por que isso acontece?

 

Porque os latinoamericanos querem ser como os suíços, os alemães, os ingleses, os italianos, seguem no processo de colonização. O indígena amazônico ainda briga com os garimpeiros. Estes destroem florestas, destruíram arvores mãe, árvores pai, árvores de milhares de anos, as cortaram para mandar para o mundo ocidental. Para nós, são as avós, os avôs, é vida, são nossos mestres. O indígena chorou muito e segue chorando porque desequilibraram tudo. E os europeus estão mais preocupados. O europeu se deu conta da poluição. Já chegaram ao extremo de seu capitalismo, do desenvolvimento da modernidade, já foram ao abismo e sabem que essa não é a resposta. Esse modelo o deixou doente e estão buscando alternativas, por isso procuram os indígenas com maior força. Vieram buscar aqui nossos arquitetos, não os que são formados em universidades, mas os que trabalham no campo, para aprender a fazer adobe (casas construídas de barro). Os europeus sabem que nessas casas ficam menos doentes. Mas, um dia, quando a modernidade já não puder dar as respostas, os latinoamericanos vão se dar conta que a resposta estava ao seu lado, só não queriam nos escutar porque pensam que não somos muito inteligentes.

 

- Para além do movimento indígena, você não vê na América Latina um processo conjunto de descolonização?

 

Agora está havendo uma confusão entre socialistas e povos indígenas. Quando Evo Morales ascendeu, Chávez disse que era seu irmão indígena, com seu discurso do socialismo do século 21, com seu pensamento de esquerda, que é ocidental. Mas, na Venezuela, recém estão descobrindo os povos indígenas. Muitos estão pensando que o movimento boliviano é socialista, mas é um movimento indígena. Nosso modelo não é comunista, mas comunitário.

 

- Mas o partido organizado pelo presidente se chama Movimento ao Socialismo (MAS).

 

Sim, mas o nome MAS foi comprado, nada mais. Ele estava registrado na Corte Nacional Eleitoral e foi emprestado para o Evo poder se candidatar, foi algo circunstancial, percebe? Nós pensamos que o socialismo, o comunismo e o capitalismo são iguais. Porque só pensam no humano, são individualistas, são homogeneizadores e materialistas. Você não vai ver um comunista fazendo cerimônias, não vai vê-lo honrando seus ancestrais, não vai vê-lo cuidando da lhaminha. Ou melhor, vai cuidar da lhama porque é um bom negócio para vender.

 

- Existem marxistas que mantêm crenças. No Brasil, por exemplo, existem marxistas que mantêm sua religiosidade cristã. Você pode dizer que o cristianismo é ocidental também, mas existem marxistas que mantêm crenças de origem africana. Você não vê sintonias com os marxistas?

 

Partimos de premissas. Quando falamos de comunidade, não falamos só de humanos. Comunidade é tudo: animais, plantas, pedras. E não para vender. Por exemplo, no governo boliviano, existem marxistas. Bom, nosso país tem uma reserva muito grande de lítio e sua exploração é alvo de muitas especulações. O lítio pode deixar a Bolívia poderosa. Mas o mundo indígena não quer explorar o lítio. O marxista quer, tem somente um pensamento material. Nós preferimos não explorar porque é importante para o equilíbrio da vida. Mas o marxista não pensa assim. Para mudar o sentido de um rio, o marxista vai colocar tratores e pronto. O indígena vai dizer “não, calma, espera, vamos pedir permissão para os nossos ancestrais e vejamos se é bom”. O marxista vai dizer “claro que é bom, aqui vamos produzir”. Ele não vê importância no espiritual, não o sente. Por isso ainda não está entendendo.

 

- E dentro dessas premissas, o que fazer com a vida nas cidades?

 

Essa resposta tem que se buscar na Europa. Eles estão buscando alternativas. Mas, o movimento indígena não é só do campo, é uma forma de vida e um convite a viver com respeito. As montanhas estão degelando. Vai faltar água. E isso vai afetar a todos, brancos, mestiços, indígenas etc. Por isso, necessitamos de novas formas de política, porque as atuais não nos permitem resolver. E isso é incumbência de todo mundo. O ocidente tem buscado respostas e o povo indígena as está dando: para que todos tenhamos alimentos, temos que produzir com os ciclos da natureza, não somente com elementos químicos, ou de maneira anormal ou antinatural. Os povos originários estão avisando que as mudanças da história são também mudanças de ciclos naturais. Por isso, devemos aproveitar este momento e voltar ao paradigma comunitário e ao seu modelo pedagógico, jurídico, de governo. Aqui, por exemplo, nas comunidades, não há eleições. Nós não queremos a democracia, como agora se conhece, porque ganha o que faz mais campanha, o que tem mais dinheiro, o que tem mais poder de influência nos meios de comunicação. Aqui, um é a autoridade em um ano, no ano seguinte é outro, no seguinte outro, ninguém pode repetir. Todos têm que participar e todos têm que se desenvolver como autoridade. Porque se alguém se mantém, algo vai falhar na sua mente e tudo vai se desequilibrar. Então, para que descanse, se passa para o outro.

 

<QUEM É>

 

Fernando Huanacuni, 43 anos, nasceu nas montanhas de Illimani, ao sul de La Paz. Ele pertence à comunidade Sariri, um grupo de descendentes e não-descendentes de povos originários que se reúne para estudar, viver e difundir a cultura dos povos, que antes da colonização espanhola, habitavam os Andes. Também é diretor de protocolo do Ministério das Relações Exteriores do governo Evo Morales e um dos responsáveis por um programa de TV no canal boliviano RTP, que se dedica a debater a cultura andina e os temas da conjuntura.

 

- Vinicius Mansur é correspondente de Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)

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