Adriana Salvatierra: “Uma Bolívia soberana precisa de industrialização e democratização da riqueza”

28/08/2020
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Nesta entrevista exclusiva, a ex-presidente do Senado da Bolívia, Adriana Salvatierra, denuncia a transnacional estadunidense Tesla como uma das agentes por detrás da deposição do presidente Evo Morales - e dela própria - em 2019, “processo que implicou em prisão, perseguição política e assassinatos” e agora, mais recentemente, “devido à improvisação e à corrupção, em milhares de mortos pela pandemia e a crise sanitária”.

 

Destacada liderança da juventude, Salvatierra recorda como o governo do Movimento Ao Socialismo (MAS) decidiu explorar em benefício dos bolivianos uma riqueza estratégica como o lítio – da qual o país é detentor da maior reserva mundial. Assim, em 2018, a Bolívia fez um acordo com a empresa alemã Acisa, que havia sido a principal fornecedora de baterias para veículos elétricos – justamente a maior empresa que o dono da Tesla dirige, uma transnacional com capital de origem norte-americano”.

 

“Como por si só a propriedade do lítio não nos garantia transferência tecnológica e soberania no desenvolvimento e na industrialização, decidimos assinar um acordo com a China”. A partir desta importante parceria firmada em 2019, ressaltou, “a Bolívia teria mercado garantido pelos próximos 50 anos”. “Nosso povo decidiu industrializar seus recursos naturais prescindindo e confrontando os interesses norte-americanos e transnacionais”, assinalou a cientista política, “ficando fácil entender porque, com tanta arbitrariedade, o dono da Tesla reconhece sua participação no golpe”.

 

Com Luis Arce e David Choquehuanca, ressaltou Salvatierra, o MAS reúne todas as condições para vencer a eleição presidencial do próximo 18 de outubro, porque os bolivianos sabem o que tinham “e o quanto sofreram nestes nove meses de governo”. “É claro que cometemos erros, mas continuamos sendo o melhor que já aconteceu na história do nosso país no que se refere à materialização da democratização da riqueza e ao exercício da soberania”, sublinhou.

 

Boa leitura.

 

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Pela contagem oficial, são cerca de 4.500 mortos por coronavírus para um país de pouco mais de 11 milhões de habitantes. Mas conforme artigo do The New York Times, com dados do Registro Civil da Bolívia, foram apuradas 20 mil mortes a mais do que nos anos anteriores de junho até agora. Qual é a responsabilidade do governo da autoproclamada presidente Jeanine Áñez por tais números?

 

Acredito que a pandemia e a crise sanitária não fazem mais do que pôr em evidência - e aprofundar - as características de um governo que não é fruto da vontade popular, mas de um golpe de Estado. É um governo que vem da improvisação. E o problema é que se a improvisação, em tempos normais, em termos políticos poderia cobrar uma fatura política, em tempos de crise sanitária cobra uma fatura que implica em muitas vidas humanas. Em números oficiais já são mais de quatro mil e 500 mortos, mortes que sequer haviam sido computadas até recentemente.

 

O primeiro caso de coronavírus apareceu em 10 de março, mas somente em 6 de agosto – cinco meses depois - o governo anunciou que iria distribuir, a partir de brigadas médicas, 150 mil kits de medicamentos.

 

Ocorreram casos de corrupção que mancharam qualquer administração da crise sanitária. Houve uma instabilidade na gestão que acompanhou os nove meses de governo: três ministros da Saúde diferentes, dois ministros da Economia, dois ministros do Planejamento... Então há uma tensão e uma crise permanente em um gabinete que não tem qualquer possibilidade real de enfrentar a pandemia.

 

Há os que dizem que o governo procura fortalecer a crise sanitária, maximizá-la, para se perpetuar no poder. Eu acredito que não, acho que isso é o que são. O reflexo do erro histórico do golpismo que cobra uma fatura na vida dos bolivianos.

 

Para eles não existe planejamento, por isso não assumem suas responsabilidades e as repassam aos governos locais, por isso faltam medicamentos, falta gestão pública, e agora, finalmente, aparecem atos de corrupção. [Para enfrentar a pandemia o governo anunciou a compra de 500 respiradores que nunca chegaram. Apareceram somente 170 que funcionam e ainda foram superfaturados. A informação era que cada um deles custaria US$ 8 mil (R$ 41.700), pelos quais foram pagos US$ 28 mil (R$ 146 mil). A divulgação do crime – e a comprovação – levou um ministro da Saúde à prisão].

 

Retornando aos primeiros dias do golpe e toda a dinâmica daquele momento, a questão militar, midiática e a violência que ocorreu naqueles dias, a usurpação do Palácio de Governo, como avalias a decisão da sua renúncia à presidência do Senado? Hoje em dia, vendo quais foram as consequências, crês que foi acertada?

 

É importante entender que o golpe de Estado não foi apenas contra Evo Morales e Álvaro García Linera, mas contra todo um projeto político. E compreender isto é sensato para que consigamos entender os acontecimentos. Quando vemos que a – recém falecida – irmã de Evo teve sua casa queimada; que Patricia Arce que era prefeita de Vinto foi sequestrada e torturada durante horas, teve seu cabelo cortado, sendo obrigada a caminhar descalça no meio de turbas; ou que por exemplo a irmã de Victor Borda, que era o presidente da Câmara dos Deputados, o quarto na linha de sucessão junto a mim, foi sequestrada e teve sua casa queimada... Isso obrigou a minha renúncia.

 

A decisão que assumimos foi tomada em caráter orgânico, não foi uma decisão espontânea nem individual, e foi levando em conta esses elementos. A “solicitação” da renúncia por parte das Forças Armadas foi o golpe final de uma construção a partir da qual se tentava legitimar o golpe, com a participação de parte de alguns cidadãos, que derivou nestes fatos fascistas.

 

A renúncia à presidência do Senado foi uma decisão que tomamos junto com os companheiros Evo Morales e Álvaro García Linera, porque se tratava de um golpe contra um projeto político. Muita gente acredita que eu realmente poderia ter governado o país, mas isso era impossível. As Forças Armadas, particularmente a Força Aérea, se negava a respeitar a sucessão constitucional. No caso do Exército, não havia emitido um critério e, se não me equivoco, a Força Naval sim, mantinha a intenção de seguir a sucessão. A Polícia Nacional não aceitava a sucessão constitucional e, por isso, ocorreu o amotinamento nos nove departamentos e, finalmente, havia forças políticas que tampouco aceitavam a sucessão constitucional.

 

Diante da falta de garantias, tomamos essa decisão. Se eu tivesse assumido a presidência isso não teria acabado com o banho de sangue que a oposição buscava na época para sustentar seu golpe de Estado.

 

É por isso inclusive que Jeanine Áñez materializa o golpe e se reafirma no poder a partir da solicitação das Forças Armadas de que qualquer intervenção contra manifestações de caráter civil somente se daria se contassem com a impunidade necessária. Então se emitiu o decreto garantindo que as Forças Armadas que atuem em mobilizações não fossem processadas penalmente, e que seus atos não fossem considerados delitos.

 

Se me perguntas agora, olhando para trás, se a renúncia foi a melhor decisão, não sei se foi a melhor ou a pior, mas estou certa de que não havia alternativas e nem garantias para assumir o mando presidencial.

 

Temos acompanhado duras críticas por parte de outros dirigentes do MAS sobre as relações da presidente Áñez com narcotraficantes. Podemos dizer que o governo interino está armando um narcoestado semelhante ao modelo colombiano?

 

Foram realizadas múltiplas denúncias sobre o fato de as autoridades estarem dando autorização para o uso do nosso espaço aéreo a avionetas que depois baixaram no Paraguai, por exemplo, e confiscadas ali, demonstrando serem do narcotráfico. Não foi uma única denúncia. Somente entre nossos parlamentares temos quatro ou cinco denúncias importantes nesse sentido. Uma das principais que realizava a então oposição ao MAS era o aumento do cultivo de folhas de coca, associando isso a um suposto aumento do narcotráfico.

 

Contudo, com isso se colocou em evidência, para além dos números, que existe um interesse por parte do governo interino de criar desinformação a respeito dessa responsabilidade. De utilizar o conceito penal de narcotráfico como uma estigmatização, mais do que como bandeira de luta efetiva contra os ilícitos. Aqui me refiro a que, supostamente na luta contra o narcotráfico, o senhor Arturo Murillo (ministro de Governo) se centra na região do Trópico de Cochabamba, que é onde existe uma maior força sindical, mas se esquece que os pequenos aviões não saem daí, mas do departamento de Beni, carregados com a produção ilícita. E de lá, seguem uma rota de navegação autorizada pelas autoridades locais, que é quem tem relação direta com o controle do espaço aéreo.

 

É importante entender que existe aí uma dupla ação no que se refere ao narcotráfico. Há uma tentativa de estigmatização dos movimentos sociais em uma região que esteve em constante mobilização. Ao mesmo tempo, no que tange a políticas públicas de segurança e de luta contra o narcotráfico, estamos falando de que este utiliza outras vias que não estão necessariamente relacionadas com as investigações que realiza o ministro de Governo.

 

Já foram adiadas as eleições em três oportunidades, manobras de perseguição ao MAS, ataques à chapa presidencial e a seus candidatos. O governo interino garantiu à OEA como fiadora das eleições, estrutura que foi responsável direta pelo golpe. Como fazer com que uma delegação de observadores internacionais, com figuras e organizações de prestígio, possa se contrapor a essa presença nociva e vir a colaborar para que a Bolívia volte ao caminho democrático?

 

A primeira coisa que é importante entender foi o papel que esses mecanismos tiveram no golpe de Estado, quais foram os autores. Há uma companheira cientista política, Helena Argirakis, que está estudando as fases do golpe em uma pesquisa e situa como uma das primeiras a construção do relato da fraude, a operação comunicacional da qual participou a OEA e conflui a grande mídia.

 

A outra fase é a civil, que é a que lhe dá, em teoria, a legitimidade da participação dos cidadãos no golpe. Há também uma fase policial, outra fase militar e, finalmente, a parlamentar. Depois, o exercício da violência de Estado para conter a resistência dos movimentos sociais.

 

É importante entender qual foi a participação da OEA no golpe - e as denúncias realizadas em outras ocasiões -, frente à impossibilidade de construir uma agenda efetiva de unidade latino-americana, na medida em que se mantinha a tutela estadunidense nos espaços de integração.

 

Acredito que é importante transitar na direção da construção de espaços que realmente ponham ênfase na soberania, em uma relação internacional ou na construção de relações assentadas sobre os princípios da horizontalidade e também da solidariedade entre os povos e Estados.

 

É claro que temos organismos internacionais como a OEA que estão mais preocupados em construir uma agenda política de desestabilização contra os governos progressistas, em detrimento da construção de uma  integração que realmente responda às necessidades de nossos povos.

 

Quão útil teria sido nesse momento a Secretaria de Saúde que existia na UNASUL (União das Nações Sul-Americanas), que tentaram desmantelar no Equador, e buscaram desmantelá-la a partir da destruição da sua sede. Pensaram que a UNASUL fosse uma sede, mas é muito mais que isso, é um espírito de integração no marco da horizontalidade. Tentaram destruir a agenda da integração da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), que se planejava como um organismo alternativo à OEA.

 

Acredito que aí reside o grande desafio: gerar espaços de integração que rompam a tentativa de tutela que existe por parte dos EUA; construídos com base na horizontalidade e solidariedade; que vão além do mundo comercial e comecem a fazer efetiva a integração fundamentalmente dos povos, para além dos Estados.

 

Os companheiros Luis Arce e David Choquehuanca, candidatos do MAS à presidência e à vice da Bolívia, conversaram conosco e sublinharam o papel do Estado no desenvolvimento, do fortalecimento do investimento público, de garantir recursos para impulsionar a educação, ciência e tecnologia, e nisso destacaram a relevância do lítio, bem natural do qual vocês têm as maiores reservas do mundo. Neste contexto, como vês a declaração de Elon Musk, da Tesla, de que darão um golpe em quem quiserem?

 

Os 21 dias de paralisação que levaram à renúncia do nosso presidente Evo já implicaram em um golpe direto na nossa economia.

 

Desde que assumiu como presidente, Jeanine Áñez paralisou todas as obras de construção de infraestrutura que vinham sendo desenvolvidas pelo nosso governo. E esta paralisação do investimento público impactou diretamente, negativamente, na dinamização da economia e no mercado interno, a tal ponto que um dos resultados é que, entre janeiro e março de 2020, o recebimento de recursos por pagamento de impostos havia diminuído 25%, quase alcançando os 30%.

 

É óbvio que afetamos interesses geopolíticos. O dono da empresa Tesla [Elon Musk] tem um patrimônio de US$ 76 bilhões e o Produto Interno Bruto da Bolívia é de US$ 42,5 bilhões. Estamos falando que o dono da Tesla tem em suas contas bancárias aproximadamente US$ 34 bilhões a mais do que todo os recursos econômicos que conduzimos no nosso país. Isso quer dizer, de forma simples, que este senhor tem em suas contas bancárias quase duas Bolívias.

 

Bom, esse pequeno país, com um PIB de US$ 42,5 bilhões, decidiu exercer sua soberania sobre seus recursos naturais. E em 2018 havia feito um acordo com a empresa alemã Acisa (ACI Systems Alemania) que havia sido a principal fornecedora de baterias para veículos elétricos - justamente a maior empresa que o dono da Tesla dirige, uma transnacional com capital de origem norte-americano.

 

Mas como nenhum destes processos nos garantia transferência tecnológica e soberania no desenvolvimento e na industrialização do lítio, decidimos que íamos assinar com a China um acordo que implicava um investimento de US$ 2,3 bilhões para industrializá-lo.

 

No começo de 2019, quando se realiza a assinatura do acordo, o embaixador chinês diz: este é um dia histórico porque de agora em diante a China passará a ser o maior produtor de veículos elétricos do mundo e a Bolívia terá garantido mercado provavelmente pelos próximos 50 anos.

 

Então as pessoas se dão conta de como se haviam afetado os interesses das grandes transnacionais, interesses norte-americanos e porque, com tanta arbitrariedade, o dono da Tesla reconhece sua participação no golpe de Estado.

 

Para um país como o nosso, com um PIB tão pequeno, era imperdoável o exercício da sua soberania, era imperdoável a rebeldia do nosso povo, do nosso processo, do nosso governo, que decidiu industrializar seus recursos naturais de forma soberana, prescindindo e confrontando os interesses norte-americanos e transnacionais.

 

Daí vem uma das razões do golpe de Estado. É óbvio que confrontamos mais interesses, afetamos os interesses das transnacionais no caso do lítio, afetamos os Estados Unidos. Não foi por acaso que Evo Morales expulsou o embaixador Philip Goldberg em 2008. Afetamos os interesses de burguesias locais que eram correia de transmissão das grandes transnacionais, quando decidimos recuperar a propriedade dos hidrocarbonetos ou quando impusemos um limite à propriedade da terra, ao número de hectares. Ou ainda quando decidimos que a participação em instâncias de representação como a Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia seria paritária entre homens e mulheres, afetando o patriarcado como um sistema de privilégios em condições de gênero ou pelo simples fato de convocar uma Assembleia Constituinte para refundar o Estado.

 

Este processo de mudanças afetou interesses das transnacionais, afetou interesses dos Estados Unidos, afetou interesses das classes dominantes, afetou interesses do patriarcado, afetou interesses que se assentaram durante a República para reproduzir práticas coloniais a partir do Estado.

 

Então é claro que a resposta, depois de semelhante agressão, não seria pacífica. Não iriam apontar para a recuperação do poder do Estado pela via democrática, era necessário interromper por meio da violência e do golpe.

 

Se houver o retorno da democracia e o MAS chegar ao governo, quais erros acredita que não poderiam voltar a ser cometidos? E, levando em conta que muitos dos que perpetraram o golpe já tentaram dividir a Bolívia, crês que houve uma subestimação desses atores?

 

É claro que cometemos erros, agora quando coloco na ponta do lápis posso ver que nós tivemos também grandes acertos. As pessoas, em quase dez meses de governo Áñez, já conseguem comparar. Há pouco tempo conversei com companheiros da Argentina e eles diziam ter demorado cinco anos para aprender sobre a derrota eleitoral. A nós, bolivianos, nos levou nove meses, e de uma forma muito mais violenta, perdendo companheiros no caminho, em um processo que implicou em prisão, perseguição política e assassinatos.

 

Para nós foi importante a aprendizagem nestes nove meses, mas também sempre insisto em dizer que, assim como tivemos uma dura aprendizagem, em um período muito curto, também o povo se lembra que aquilo que lhe diziam que era impossível fazer, como exercer soberania sobre os nossos recursos naturais... Evo e a mobilização das organizações sociais demonstraram que sim, se podia. Quando nos disseram que não se poderia mudar a Constituição política de Estado, porque interpretavam que significaria destruir as bases do Estado de direito, nós mostramos que sim, se podia.  E essa conquista aprofundou e ampliou o exercício dos direitos humanos, sociais, etc.. Para nós, sim, era possível uma outra Bolívia.

 

É claro que cometemos erros. Eu demarcaria três elementos que provavelmente se converteriam em uma debilidade. A oposição sempre vai tentar debilitar um governo progressista, a direita vai tentar desestabilizar a esquerda e é esperado que assim seja. O problema é que há ações nossas que permitem desestruturar a fortaleza do nosso projeto político.

 

A primeira debilidade foi uma burocratização nossa, que os movimentos sociais na sua crítica chamaram ‘distanciamento’, não na relação do presidente Evo com eles, mas dos altos mandos das organizações sociais com as bases. Além disso, a condução política recaía em um companheiro ou companheira que tinha uma função específica no governo, quando a condução política não deve ser desvinculada da organização social.

 

Essa burocratização nos levou a não ter a presença ativa dos movimentos sociais nas ruas. Porque a mobilização ativa, esse processo permanente de repensar e de reconstruir o Estado o tempo todo, de forma dinâmica, não é somente organizar manifestações uma vez por mês. Para nós, concentrações não faltavam, já que por uma ou outra razão, sempre estávamos ativos. Dizíamos: “somos um povo mobilizado”.

 

Bom, a mobilização social não termina aqui, deve ser fundamentalmente um processo que contribua para a transformação da agenda do Estado, que começou com a Assembleia Constituinte. É claro que o Estado terá lógicas conservadoras e essas práticas geram uma tensão pela sua restauração. E na disputa com instituições como as Forças Armadas ou a Polícia, muitas vezes os militantes pecamos e somos absorvidos por essas lógicas conservadoras.

 

Isso que identificamos como burocratização nos levou primeiramente a nos distanciar das bases sociais; segundo, a não compreender que a mobilização não é somente a tomada das ruas, senão o permanente processo de transformação do Estado, que não termina no processo constituinte, mas deve continuar.

 

Nesta burocratização também está o papel dos militantes, que não devemos nos deixar absorver por essas lógicas conservadoras, mas continuar esse processo de transformação, que deveria envolver com maior participação, por exemplo uma reestruturação das Forças Armadas e da Polícia Nacional. Para que não sejam as pessoas, mas as instituições que realmente sejam capazes de construir servidores públicos a serviço da pátria.

 

Há cinco anos a América Latina tinha uma série de governos de caráter progressista e hoje o panorama é desalentador: desaparição do centro político e surgimento de uma ultradireita com características neofascistas, como no Brasil e mesmo na Bolívia. Como você acredita que essa situação, após tantos golpes exitosos na região, possa ser revertida?

 

Há interesses geopolíticos de fundo e o surgimento de um elemento não menor que é o uso da religião como a construção de uma identidade demográfica do poder. É o que enfrentamos em alguns países da América Central, no Brasil e na Bolívia.

 

O uso dos contrastes, o camponês, o indígena, o originário, o uso da whiphala [bandeira símbolo da união das nações indígenas] versus o que nos propõe a ultradireita na Bolívia, que é o uso da religião, o uso da Bíblia entrando no Palácio de Governo, o retorno à República. São construções de um imaginário que pretendem retornar às épocas mais obscuras que enfrentamos em nosso país e geraram grandes níveis de exclusão.

 

Nos damos conta que além do uso da religião, o projeto que continua sendo imposto aos países que sofrem desestabilização e golpes segue sendo a redução da participação do Estado na economia, na saúde, na educação, priorização do vínculo militar-empresarial  em contraposição ao vínculo com os movimentos sociais.

 

É muito clara a rota: governos que aprofundam as lógicas neoliberais, servis aos interesses estadunidenses. que utilizam o religioso e o simbólico para destruir a potencialidade dos processos transformadores que vêm dos movimentos indígenas, camponeses, originários.

 

Temos notado que no Brasil o noticiário sobre a Bolívia desapareceu dos meios de comunicação tradicionais durante o período de pandemia. Por que acredita que isso aconteça e qual seria seu papel na ascensão deste tipo de conservadorismo no continente? O que espera para o futuro da Bolívia?

 

O papel dos meios de comunicação foi chave para o acontecimento de toda essa conjuntura que estamos falando desde o princípio, quando citamos as primeiras fases da construção da narrativa de fraude, legitimada a partir de operações comunicacionais. Essas operações não foram somente articuladas. Neste caso, vimos também em 2016 quando chegaram a inventar um filho do presidente Evo para induzir a derrota eleitoral em um referendo. Então se vê que obviamente há uma articulação, uma agenda para adoçar a informação e existem, claro, interesses comuns, entre as grandes corporações de mídia que supostamente obedecem, reproduzem e fortalecem os privilégios das classes dominantes do nosso país, e estão ao seu lado.

 

É importante entender isso a partir da irrupção das redes sociais e de mecanismos de informação alternativa, que possam chegar a todos os rincões com a construção dessas outras verdades que vão sendo conhecidas.

 

Sobre o que esperar para o futuro do país, as cifras econômicas não são muito alentadoras. Ainda que o Banco Mundial em suas projeções mais moderadas preveja uma queda do PIB de oito pontos, há projeções que rondam 12% ou mais. O panorama econômico não é muito alentador. Mesmo assim tenho certeza que não era tão diferente o panorama em 2005 e nós demonstramos que era possível transformar o destino do nosso país.

 

Mas em 2005 tínhamos mais de 60% da população boliviana em situação de pobreza e 38% em extrema pobreza, e demonstramos que era possível mudar o modelo de distribuição da riqueza e democratizá-la em favor dos setores que haviam sido discriminados. Mudamos em favor de setores que haviam sido relegados, excluídos da participação política.

 

Tenho absoluta certeza de que é possível reverter esse quadro econômico, como já fizemos. Representamos esse projeto político e continuamos do mesmo lado da história. Com acertos e erros, mas continuamos sendo o melhor que já aconteceu na história do nosso país no que se refere à materialização da democratização da riqueza e ao exercício da soberania.

 

Agora, as eleições não significam o fim das tensões sociais e políticas no país. Há uma tensão muito mais profunda e isso se refere à radicalidade do nosso processo, que interpelou e afetou interesses diversos, a nível geopolítico e local, e acredito que nessa medida as tensões políticas vão continuar. Não existiriam tensões se não tivéssemos impulsionado esses processos de transformação. O importante é que essas tensões sempre se resolvam pela via democrática.

 

Como disse o companheiro Evo, recuperaremos a democracia não com força, mas com um povo que tem consciência e sabe da importância que tem a conquista dos direitos.

 

Uma última mensagem aos bolivianos que vivem no Brasil e na Argentina.

 

Aos nossos compatriotas no exterior: a pátria sempre os espera. Essa pátria, que nós conseguimos recuperar e reconstruir foi entregue a esses tiranos, espera de todas maneiras que vocês acompanhem o que acontece e, com nostalgia, que seus filhos voltem a ela para continuarem crescendo e avançando juntos.

 

- Leonardo Wexell Severo (Hora do Povo), Mariano Vázquez e Nicolás Honigesz (CTA-Argentina) e Raphael Sanz (Correio da Cidadania)

 

https://www.youtube.com/watch?v=-R57S-FYEPA&feature=youtu.be

 

 

 

https://www.alainet.org/es/node/208673
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