Entre cantos de sereia

25/05/2020
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A

Numa nota anterior publicada em Facebook, (https://bit.ly/2ykWPy5) procurei, humildemente, chamar a atenção do recente show que a mídia brasileira quis montar com o assunto da cloroquina. Identifiquei nesse momento uma tentativa da direita golpista e fascista de encontrar oxigênio, pois se encontra afogada na sua miséria, mediocridade e no sangue de mais de 20 mil brasileiros absurdamente falecidos pelo Covid-19. Não colou. Nem sequer o vínculo manipulado com o fantasma da Venezuela lhes ajudou e a coisa ficou por aí. Prevaleceu o sentido de realidade, dada a gravidade do momento que vive o Brasil, país que está em terceiro lugar no mundo em número de contágios.

 

Sem pretensões proféticas, disse e volto a repetir, que a direita virá uma e outra vez com novos cantos de sereia como esse, pois é criminosa e, como tal, tentará até o fim se livrar da culpa pela chacina social que está produzindo.

 

Poucos dias depois, umas palavras “polêmicas” do Lula viraram a nova cortina de fumaça, embora o assunto já esteja saindo da cena, ao se desculpar numa entrevista na Rede Brasil Atual. O que o Lula disse não tinha, para nada, a transcendência à qual foi elevada.  Mas a mídia imoral, essa mesma que nunca vai se desculpar pelo golpe da Presidenta Dilma, nem pela prisão infame do Lula e nem por colocar em Brasília um psicopata criminoso, mesmo com suas mãos também cheias de sangue, aproveitou a oportunidade, como era de se esperar, e foi na jugular. Desta vez teve mais sucesso que com a cloroquina, pois além dos holofotes das manchetes, foi acompanhada ativamente por um conjunto de pessoas do campo democrático e popular que parece não perceber o sentido profundo da tragédia na qual estão imersos. Trata-se de companheiros e companheiras rapidamente impressionáveis que sem perceberem, tornam-se elos de transmissão das campanhas de manipulação dessa mídia golpista e fascista.

 

Quantas vezes verdades incontestes sobre injustiças, roubos e traições aos interesses nacionais foram absolutamente ignoradas por essa mesma mídia, quando percebia que lhe eram inconvenientes? Acaso ela mesma não continua acobertando toda essa barbárie que está destruindo a Pátria Brasileira? Quantos horrores mais serão necessários para que as pessoas progressistas e de esquerda passem a praticar a dúvida razoável em relação ao que é divulgado por uma mídia que age como uma força de ocupação estrangeira? As intenções malévolas e destrutivas de noticiar as palavras do Lula não só eram evidentes senão que guardavam uma obscena e absoluta desproporção com relação a tragédia em curso. Nosso dever era o de guardar silêncio, sem dar ibope para esses terroristas que estão ajudando a minimizar e a subnotificar as reais consequências de tudo o que está acontecendo no Brasil, não só com relação à pandemia, o que é gravíssimo, mas também com todo o holocausto social e econômico que está regredindo o país a 1888, ano da suposta abolição da escravatura.

 

No balão de ensaio da cloroquina, onde tentaram implicar o Presidente Nicolás Maduro da Venezuela, ele e seu governo ignoraram por completo o assunto sem morder a isca. Essa sabedoria faz parte de uma revolução que tem mais de 20 anos, resistindo a todas as formas de ataque que os EUA são capazes e é para ser partilhada e posta em prática por todos os irmãos da Pátria Grande. Faz parte dos acertos necessários para sermos vitoriosos.

 

O companheiro Lula, esse extraordinário ser humano mil vezes injustiçado e acusado de todas as baixezas possíveis, foi impedido de enterrar um neto e submetido a tantas outras infâmias que teriam levado ao desespero a muitos dos que se apressaram a criticá-lo. Que mais ele precisa fazer para receber uma pequena parte da lealdade e da solidariedade que tem prestado ao mundo?

 

Nesse episódio envolvendo o Lula estão contidas algumas das falhas de coesão e unidade que emperram o campo democrático e popular para resistir e avançar nessa hora dramática. Mesmo que todos coincidam que após a pandemia o mundo já não será o mesmo, alguns se antecipam a fazer o contrário. Sua predisposição para lhe dar credibilidade aos cantos de sereia, leva-os a cair nos velhos erros e nas velhas práticas de fragmentar e enfraquecer a unidade de ferro que precisamos.

 

Devemos tentar ser mais sábios. Tudo está muito difícil para todos e todas, ninguém escapa. No entanto, é bom lembrar que a crítica feita sobre estarmos em camarotes diferentes dentro do mesmo barco nesta crise, vale para a grande maioria de nós que nos manifestamos pelas redes sociais. Os mais afetados pelo vírus, a fome, o desemprego e a miséria não têm nem tempo nem condições de estar emitindo opiniões. Pensando neles, acertaremos mais.

 

No próprio ato de questionar as bolhas de segmentação das consciências, acabamos por reforçar essa na qual participamos, sem percebermos. Não escapo dessa armadilha. Exponho-a, para que juntos possamos enfrentá-la.

 

Se nós, que nos consideramos “progressistas” e de "esquerda", não paramos para pensar antes de sair emitindo opiniões ou criticando os nossos parceiros de luta atuais e potenciais, ao invés de vitórias, teremos novas derrotas e isso, em tempos de fascismo, se paga com vidas humanas. Estamos pecando por incontinência discursiva. Não estamos obrigados nem precisamos emitir opinião sobre todas as coisas e todos os assuntos. Ocupar o nosso tempo com textos, lives e likes não vai mudar a realidade. É hora de reflexão e meditação. 

 

Não sejamos parte do problema e sim da solução. Agucemos o nosso instinto de sobrevivência. É a vida de todos que está em jogo. Refletindo e agindo é que se vai longe. 

 

(*) Anisio Pires é venezuelano, Sociólogo (UFRGS/Brasil), professor da Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV)

 

 

https://www.alainet.org/es/node/206762
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS