Depois do COVID-19

“Conceber outro planeta Terra, mas com luta”

22/04/2020
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Bernard Borel con dos colaboradores locales en el Congo, marzo 2020
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Médico pediatra com mestrado em Saúde Pública, Bernard Borel, tem uma longa experiência de mais de 40 anos em sua profissão. Além disso, realizou inúmeras missões de cooperação na Ásia, na África e, particularmente, na América Latina tanto para a Organização Mundial da Saúde quanto para várias Organizações Não Governamentais. "A pandemia atual desnuda os limites do sistema e antecipa eventuais e novos paradigmas da sociedade planetária", enfatiza nesta entrevista.

 

P: Em sua longa experiência de saúde pública, na Europa e nos países do Sul, você já enfrentou uma situação como a atual?

 

Bernard Borel (BB): Creio que nem eu e nem ninguém viveu algo assim. Houve um alerta sério em 2009 com a gripe H1N1, que, felizmente, no final, não foi tão grave e uma vacina foi rapidamente obtida. Além de alguns especialistas, não houve naquela época nenhuma tomada de consciência política ou social sobre o que poderia acontecer com esses tipos de pandemias. Nos últimos 50 anos viemos com a autoconfiança da arrogância típica da sociedade de consumo imposta pela globalização neoliberal, esquecendo-nos de nossa própria fragilidade biológica enquanto sociedade humana.

 

“A pandemia foi subestimada”

 

P: O que lhe surpreende mais na crise atual?

 

BB: A negação, em um primeiro momento, por parte da Organização Mundial da Saúde e de quase todos os governos, da gravidade da epidemia. E a dificuldade de dar uma resposta concertada em nível regional, o que comprova a falta de preparo. O Covid-19 nos pegou de surpresa. Todos pensaram que isso era um problema dos outros; mas, de repente, estava aqui, se espalhando a uma velocidade acelerada por todo o planeta. E por tratar-se de um novo vírus, não foi possível prever como a doença evoluiria. Mas ficou claro que era muito contagioso, que não tinha tratamento específico e poderia ser fatal. E isso levou a um movimento de pânico, na Europa, pelo menos, já que esse vírus atacava a todos igualmente, ricos e pobres. No final, os governos não tiveram escolha a não ser impor o confinamento, com diferentes nuances, para impedir a propagação do vírus e evitar o máximo possível de sobrecarga nos hospitais. E isso leva a uma semiparalisação da economia: por exemplo, segundo estimativas moderadas iniciais, 25% na Suíça e não menos de 35% na França. Em perspectiva, terá um impacto muito maior do que a crise financeira de 2008. E isso, na próspera Europa dos últimos 50 anos, parece inédito.

 

P: Da perspectiva europeia, a pandemia parece deixar uma lição: não há países ricos ou "potências" que, realmente, possam subestimar seu impacto. A França, a Itália, a Espanha, são exemplos paradigmáticos...

 

BB: É verdade. Isso nos lembra que somos todos seres humanos, com nossa própria fragilidade biológica. Neste caso, há dois elementos importantes em jogo: qual população está mais em risco de complicação (por se tratar de uma doença sem tratamento específico) e como o sistema de saúde pode lidar com uma enorme onda de pacientes. Pelo que se observa, felizmente, as crianças têm poucos sintomas, e são os idosos que mais morrem. Na Europa, devido à tendência demográfica atual, este setor da população é significativo. Na última década, os sistemas públicos de saúde foram amplamente criticados aqui, acusando-os de serem "caros e ineficientes". Como resultado, muitos leitos hospitalares e empregos no setor foram reduzidos em toda a Europa, especialmente nos países do sul do continente, (Itália, Grécia, Espanha e França). Agora, paga-se o custo dessa visão de curto prazo e neoliberal da saúde. Mas há algo ainda mais importante. Essa pandemia deve-se à nossa economia globalizada. Os vetores foram viajantes que se deslocaram em aviões, principalmente quadros de grandes corporações transnacionais e de diferentes governos, e turistas do autodenominado primeiro mundo. Os vetores não foram/são migrantes econômicos ou climáticos, nem refugiados fugindo dos conflitos que clamam às portas da Europa ou dos Estados Unidos.

 

A saúde no centro do debate

 

P: À luz dessa crise, abriu-se um verdadeiro debate sobre o papel do Estado e da saúde como um bem público...

 

BB: No primeiro mundo, o setor saúde representa um importante "mercado", e, claro, o setor privado, que tem forte lobby nos Parlamentos, continuou a criticar o sistema público por ‘ineficiente’. Esses mesmos setores conseguiram convencer a classe política -com um certo aval da população- de que o sistema de seguridade social é muito caro e que os orçamentos deviam ser cortados. Isso significou uma redução de leitos hospitalares à metade em 10 anos, cortes sistemáticos de pessoal e cortes de salário. Um médico pode ganhar mais trabalhando no setor privado, sem ter que fazer plantões, do que seus pares que, em hospitais públicos, assumem as emergências. Muitos deles desertaram do setor público.

 

Hoje, diante da pandemia, o setor público encontra-se na vanguarda, à frente do combate epidemiológico, mesmo que muitos dos recursos necessários estejam em falta. Na França, por exemplo, ao longo de 2019, o setor de emergência hospitalar protestou permanentemente contra a sobrecarga, mas não houve resposta do governo, apesar de grandes greves. E agora se pode ver o caos, e as pessoas estão começando a perceber a gravidade de deixar o setor público com recursos insuficientes.

 

Mas há outra coisa: esta pandemia destacou a fragilidade do fornecimento de insumos dos sistemas de saúde na Europa: 80% dos medicamentos são produzidos na Índia ou na China; quase 100% das máscaras vêm da Malásia; a solução hidroalcoólica (para desinfecção da mão) também é importada. E uma vez que o acúmulo de reservas parecia ser caro, a consequência foi a dificuldade de insumos, testes e medicamentos em muitos países europeus.

 

P. E o impacto econômico-produtivo da crise?

 

BB: A crise econômica já começa a se sentir aqui também, e isso afetará muito mais as pequenas empresas e os independentes, já que não podem trabalhar no confinamento, mas têm encargos fixos para pagar. Daí a responsabilidade essencial que os Estados devem assumir para financiar esses setores mais frágeis com subsídios ou empréstimos não reembolsáveis (no total ou pelo menos uma parte significativa de menos de dois terços). De outra forma, muitos desses empreendimentos e atividades irão à falência e a precarização da sociedade vai aumentar.

 

Infelizmente, não é isso que está se vislumbra. Os governos se endividarão para garantir empréstimos que serão fornecidos pelos bancos privados. O problema de liquidez de curto prazo será resolvido, mas a dívida permanecerá, reforçando o poder do sistema financeiro. E, a longo prazo, a dívida pública será uma oportunidade para as direitas conservadoras exigirem orçamentos de austeridade e cortes sociais. O mesmo acontecerá com as iniciativas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial: financiar países com poucos recursos para lidar com a crise do COVID-19, particularmente na África, mas também na América Latina, fortalecendo o mecanismo da dívida, uma espada pesada de Dâmocles sobre os povos.

 

“Outro paradigma possível, mas com luta”

 

P: A crise atual pode provocar uma lógica de ruptura e gestar novos paradigmas civilizacionais?

 

BB: Pode ser que sim; mas isso não será feito sem luta! O sistema econômico está paralisado, mas o aparelho de produção está intacto e a demanda sempre existe. O sistema financeiro está se organizando para manter ou aumentar seu poder. Mas a sociedade civil e os movimentos sociais sairão reforçados dessa crise, porque ela revelou claramente muitas das demandas sociais mais sentidas. Não só a defesa da saúde como serviço público, mas também a luta contra o descontrole climático. Ao parar a economia, se pode ver que a natureza retoma um pouco de vida. É por isso que estou convencido de que temos que aprender a viver neste mundo de forma diferente. Com essa crise vemos que, com o modo de vida atual, os seres humanos são a primeira vítima da irracionalidade do sistema hegemônico.

 

 

A realidade dramática do Congo

 

Bernard Borel acaba de voltar de uma missão de dois meses no Congo, onde trabalhou para o Médicos Sem Fronteiras na região de Ituri, no nordeste do país, outrora cenário de um dos confrontos militares mais violentos da história africana e epicentro da recorrente epidemia de Ebola, cuja fase atual iniciou-se em 2018 e ainda não acabou.

 

"Estive no nordeste do Congo, uma região muito rica porque tudo que é semeado cresce, e porque há ouro, cobre, coltan e diamantes. E encontrei uma mortalidade infantil terrível, com um sistema de saúde estatal raquítico e corrupto. Uma epidemia de sarampo ocorreu em toda a RDC, que já produziu cerca de 20 mil vítimas em 2019, todas menores de 5 anos. Há um alto nível de desnutrição nesta área, particularmente relacionado à insegurança causada por grupos armados (que muitas vezes defendem os interesses dos proprietários de minas). Na região nordeste há mais de 300.000 pessoas deslocadas internamente que não têm recursos, nem terra para semear. Sem falar na malária, que é endêmica e é a primeira causa de internação infantil no hospital. Espero muito que, com esta situação tão difícil, esta outra epidemia não seja tão grave - porque tem uma população jovem. Mas nada é certo. E lá, na África, as pessoas podem fazer o confinamento tão facilmente como na Europa. Seriam consequências dramáticas e terríveis como as que teve que suportar, agora, com as epidemias de Ebola e sarampo! Sem mencionar a forte ameaça nos próximos meses de pragas de gafanhotos que podem destruir plantações inteiras. (Sergio Ferrari)

 

- Sergio Ferrari, da Suíça

 

Tradução: Rose Lima

 

https://www.alainet.org/es/node/206085
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