Diz vice-ministro venezuelano

EUA acreditam ter "missão messiânica" contra comunismo

20/04/2020
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Carlos Ron Martínez, Vice-chanceler para América do Norte
Foto: Sul21
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Blumenau (SC).- A Venezuela tem sido alvo de uma série de ameaças pelo governo dos Estados Unidos. Desde que em 2015, o presidente Barack Obama decretou o país como uma "ameaça inusual à segurança dos EUA", foram aplicadas uma série de medidas coercitivas, que caracterizam o bloqueio econômico.

 

A administração Trump manteve a postura agressiva, e em maio de 2018, o governo bolivariano declarou como "persona non grata" o encarregado de negócios de Washington, Todd Robinson, no território venezuelano. 

 

O anúncio veio logo depois que a Casa Branca não reconheceu o processo eleitoral que reelegeu Nicolás Maduro como presidente e emitiu novas sanções econômicas contra o país.

 

Em resposta, o governo Trump deu 72h para que todos os funcionários venezuelanos deixassem Washington. 

 

Em março de 2020, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos denunciou o chefe de Estado venezuelano e outras 12 pessoas de suposto crime de narcotráfico, lavagem de dinheiro e tráficos de armas. Mesmo sem apresentar provas, o procurador geral William Barr anunciou uma recompensa de 15 milhões de dólares pelo "resgate" dos indiciados.

 

Já no dia 1º de abril, o secretário de Estado, Mike Pompeo e o enviado especial para a Venezuela, Eliott Abrams anunciaram o "Marco Democrático para a Venezuela", uma proposta de governo de transição e convocatória de eleições até o final de 2020. O documento previa a formação de Conselho de Estado que iria administrar o país de maneira provisória, sem o presidente Nicolás Maduro, sem o deputado Juan Guaidó e com apoio das Forças Armadas. Em troca, os Estados Unidos levantariam progressivamente as sanções contra a Venezuela.

 

Ainda no mesmo mês, o presidente Donald Trump anunciou o início de um operativo militar antidrogas, no Mar Caribe. Apesar de que cerca de 80% do fluxo do narcotráfico atravesse a costa ocidental do Oceano Pacifico, pelas costas do Equador e da Colômbia, as frotas estadunidenses cercaram a o lado oriental, bloqueando a costa venezuelana. O conjunto de medidas adotadas nas últimas semanas acentua as tensões entre Caracas e Washington.

 

Carlos Ron Martínez, era o encarregado de negócios da Venezuela nos Estados Unidos desde 2017. Hoje, já em Caracas, atua no governo bolivariano como vice-ministro de Relações Exteriores para América do Norte. 

 

Em entrevista para o Brasil de Fato, tratou sobre a política exterior venezuelana, a relação com o governo estadunidense e o futuro do governo Trump.

 

Brasil de Fato: Essa nova proposta de governo de transição para a Venezuela, anunciada pelo departamento de Estado dos EUA, sem o presidente Nicolás Maduro e sem o deputado opositor Juan Guaidó, é a prova de que a narrativa de Guaidó como presidente autoproclamado se esgotou?

 

Carlos Ron Martínez: Com certeza ele está debilitado no último ano. Na verdade ele nunca teve essa força que os Estados Unidos esperavam que ele tivesse.  É inconstitucional o que eles estão propondo. Existe um Conselho de Estado na Constituição, mas é diferente do que estão propondo.

 

Além disso, eles estão dizendo a uma parte da população venezuelana que eles já não podem mais ser governo, que não precisam mais respeitar as eleições de 2018. Ou seja, a gente se entrega porque eles querem. Parece coisa de filme de cowboy. 'A gente oferece US$ 15 milhões de dólares pela sua cabeça, você sai do governo e tudo dá certo'. Não é assim. 

 

É um desrespeito à população venezuelana e ao nosso sistema democrático.

 

Se você somar tudo que estão falando é o resumo do que eles anunciam desde março, que é a campanha de "máxima pressão". É importante entendermos o contexto de lá. Eles têm eleições em novembro e um estado que é chave para a vitória de Trump é a Florida, onde moram muitos venezuelanos que são opositores. Inclusive muitos que fugiram da Venezuela para os Estados Unidos com dinheiro que roubaram, pessoas que estiveram envolvidas em atos de terrorismo. Essa é a base quem tem dinheiro e que pode apoiar um candidato nos Estados Unidos. 

 

Trump está tentando conseguir esse apoio e agora mais com a saída de Bernie Sanders da disputa. Sanders que se autointitulava socialista tinha muita rejeição nessa base eleitoral que eu comento, mas o Biden é outra coisa, ele tem bastante receptividade na Florida.

 

A outra coisa que eu acho chave para entender o que está acontecendo é que estão tomando essas atitudes em meio a uma crise enorme pelo coronavírus. Eles não têm respostas. 

 

Além disso, quem dirige a política exterior para a América Latina nos Estados Unidos é um grupo que, de certa forma, está vinculado à política anti-Cuba. Maurício Claver-Carone, no Conselho de Segurança Nacional, Marcos Rubio, no Congresso, o John Barsa, na Usaid – essa agência dos Estados Unidos que financia as ONGs que realizam um trabalho político na Venezuela. É esse grupo que vê o momento político que há tempos estão precisando para atacar a Venezuela. Eles acham que a Venezuela não pode atacar ao mesmo tempo a pandemia e a pressão dos Estados Unidos.

 

É muito interessante isso na cultura dos Estados Unidos, de acreditar no destino-manifesto, achar que eles têm uma missão messiânica. Eles acreditam que a missão deles é acabar com o comunismo na América Latina, então eles vão derrubar a Venezuela, Cuba e tudo que é vermelho, porque tudo que é vermelho é comunista.

 

Carlos Vecchio, embaixador venezuelano nos EUA, nomeado por Guaidó, solicitou uma reunião com o Comando Sul do Pentágono / Reprodução

 

Recentemente foi divulgada uma carta do embaixador nos Estados Unidos, nomeado por Guaidó, Carlos Vecchio solicitando uma reunião com Craig Faller, comandante do Comando Sul - braço do Pentágono que controla as bases militares estadunidenses na América do Sul. Essa reunião poderia representar que existe alguma articulação paralela de Guaidó com os militares?

 

Eles já fizeram várias reuniões com o Comando Sul. Eu acho que é uma tentativa de trabalho conjunto. A estratégia dos Estados Unidos tem sido clara. E quando falo Estados Unidos também me refiro a esse grupo do Guaidó, porque não existe uma clara divisão entre eles. 

 

O interesse é promover uma rebelião dentro das Forças Armadas. Eles acham que poderiam convencer a Fanb. Inclusive dentro desse plano de transição, uma das coisas que comentam é a possibilidade de levantar sanções para as pessoas que se afastem do governo Maduro.

 

Isso não tem funcionado, até porque é bem contraditório. Por que num dia eles dizem que você será acusado de narcotráfico, no dia seguinte eles dizem que pode levantar as sanções contra você, mas não pode levantar as acusações de narcotráfico.

 

Eu acho que o que o grupo do Guaidó tenta é afinar essa estratégia. Eles têm pessoas trabalhando pra isso.

 

Ivan Simonovis, que em 2002 participou do golpe de Estado contra o presidente Chávez, fugiu para os Estados Unidos e agora coordena uma espécie de comissão de segurança com Vecchio.

 

Vocês avaliam que existe a possibilidade de que a Casa Branca abandone a tática de guerra híbrida para realizar um ataque militar contra a Venezuela? A ativação de mecanismos do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) e o operativo antidrogas dos Estados Unidos podem sugerir esse cerco militar?

 

As ameaças sempre estiveram aí. Trump fala que tem uma opção militar para a Venezuela. Todos eles falam que todas as opções estão sobre a mesa. 

 

Se você tem forças militares por perto, sempre há a possibilidade de alguma coisa acontecer. Não acredito que estamos nesse momento, mas não podemos descartar que essa seja uma possibilidade, porque eles não estão agindo de maneira racional.

 

Também é histórico que quando os Estados Unidos sente uma pressão interna muito forte, ele entre em guerras fora do país para tentar distrair. A invasão do Iraque foi uma distração, a invasão da antiga Iugoslávia e tantos outros casos. A gente se prepara. Temos uma Força Armada que sempre se preparou para isso, para defender o país. 

 

Alguns analistas apontam que um cenário possível durante a crise da pandemia é que Trump suspenda as eleições presidenciais, assim como já foram suspensas as primárias, e aproveitaria esse período de governo estendido para avançar em um regime autocrático. O que você avalia?

 

Eu acho que seria difícil suspender o processo eleitoral, mas de novo, tudo é inédito. Para a Venezuela realmente tanto faz. Porque os ataques contra a Venezuela iniciaram com o governo Obama. 

 

Quando não é o presidente que assume a política mais agressiva você vai ter outras pessoas que são inimigas do processo democrático venezuelano.

 

Esperamos que o povo estadunidense consiga se expressar democraticamente, consigam mudar o que achem necessário no governo e que mudem essa postura de agressão contra a Venezuela e contra vários países. 

 

A demissão recente do comandante da base de porta aviões nucleares Theodore Roosevelt sugere um desacordo entre a Casa Branca e o Pentágono. Você acredita que existe alguma divergência entre o deep state sobre as ações contra a Venezuela?

 

Tomara. Eu acho que tem que haver pessoas dentro das Forças Armadas, do Departamento de Defesa dos Estados Unidos que entendam o que significa abrir um conflito militar contra a Venezuela. 

 

Abrir uma frente como essa na Venezuela seria muito perigoso para o resto da região. Eles têm esse discurso de que temos uma crise migratória para o resto da região, mas uma crise migratória existiria se eles desatam violência no país. Olha o que se vive na Colômbia. Aqui na Venezuela recebemos milhões de colombianos forçados a fugir da guerra civil. 

 

A informação que recebemos de lá é que os militares têm tentado colocar um freio nesses atores políticos que só estão pensando na estratégia eleitoral na Florida, no destino-manifesto, nesse filme de Guerra Fria que eles acham que devem completar. 

 

É importante que o povo dos EUA exija que esses recursos que agora poderiam ser usados para combater a pandemia não sejam gastos em uma agressão contra a Venezuela, em uma falsa política contra narcóticos.

 

Uma hora de voo desses aviões radares que estão sendo usados tem um custo de aproximadamente 39 mil dólares, enquanto um dia de funcionamento dos respiradores que estão sendo usados para o cuidado intensivo gera um gasto de 2 mil dólares. Por que não investir esse dinheiro em vez de fazer esse show?

 

Rotas das tropas militares estadunidenses sugerem um possível bloqueio naval contra a Venezuela / Marinha EUA

 

O Ministro Jorge Arreaza já denunciou que estavam impedindo entrada de navios com gasolina ou com químicos para refino do petróleo. Quais são os impactos reais dessa operação antidrogas?

 

Nosso petróleo precisa passar por um processo químico que utiliza substâncias importadas para poder gerar a gasolina como resultado

 

Eles [administração Trump] confessaram que estão pressionando muitas empresas a não transportar esses químicos para cá. Então muito do problema que nós temos com a gasolina é porque já existe um bloqueio desses componentes por parte dos Estados Unidos.

 

A gente tem cooperação com outros países, mas é necessário entender que todo nosso sistema foi criado em função de abastecer os Estados Unidos com petróleo. 

 

Todas as refinarias da Venezuela estão desenhadas para enviar o petróleo para as refinarias do Golfo do México, de Louisianna e para que o produto final seja dos Estados Unidos. Então é muito mais difícil para nós revertermos essa dependência, porque a estrutura está planejada assim. 

 

Nesse sentido, como retomar a CITGO - sede da Petróleos de Venezuela (PDVSA) nos Estados Unidos?

 

Legalmente temos algumas ações que a Procuradoria Geral da República no exterior.  Também acreditamos que precisamos avançar no diálogo político aqui para que essa oposição que está no controle político da CITGO retorne essa empresa para o Estado venezuelano.

 

A pandemia acelerou uma das maiores crises dos últimos 90 anos nos Estados Unidos, enquanto a China parece dar repostas mais eficientes e mais rápidas, tanto sanitárias, como econômicas nesse momento. Acredita que pode gerar uma nova hegemonia? Como o governo da Venezuela vê esse cenário pós-pandêmico?

 

Uma coisa importante nessa conjuntura é que está se evidenciando a necessidade política de se ter um Estado forte para atender esse tipo de crises a nível nacional. Isso tem sido importante para que se veja que dentro de um cenário de crise as respostas mais efetivas são as coletivas e não as individuais ou privadas.

 

Acho que fica evidente que os Estados Unidos já não têm é mais essa potência única e hegemônica no mundo. O que nós temos construído é a multipolaridade entre os países.

 

A ideia não é trocar os Estados Unidos pela China. E acho que essa não é a intenção da China, que tem agido com muita solidariedade com vários países. O que tentamos construir é um equilíbrio no mundo. 

 

Por isso é tão importante construir a união da América Latina para que possamos ter uma voz dentro desse conjunto de potências que estão surgindo no mundo. Por isso a importância da Celac, poderíamos planejar, ter estratégias juntos, uma perspectiva comum. 

 

Como Venezuela pretende derrotar o bloqueio?

 

Pela primeira vez eu acho que tem um clima internacional que mostra o impacto [do bloqueio] e chama à reflexão. Dentro do partido Democrata já existem algumas pessoas, eu não diria que é o pensamento dominante, mas existem várias vozes contra essa política.

 

Então nossa denúncia internacional deve continuar e essas forças internas dos Estados Unidos devem ver esse impacto. Parte do que estamos fazendo dentro das Nações Unidas uma articulação entre países que denunciem que a ação dos Estados Unidos é ilegal, vai contra o direito internacional.

 

São medidas coercitivas unilaterais, que são ilegais, porque as únicas sanções que tem previsão no direito internacional são aquelas impostas pelo Conselho de Segurança da ONU.

 

Quando outros países aliados dos Estados Unidos assumem esses ataques é a coletivização do unilateralismo, não é uma medida multilateral. 

 

Essa unidade que estamos criando na comunidade internacional é importante. Apresentamos na Corte Penal Internacional de Haia uma denúncia de crimes contra a humanidade. 

 

Ninguém pede que eles apoiem o processo bolivariano. A gente não precisa de apoio dos Estados Unidos. O que a gente precisa é que eles deixem os venezuelanos tomarem suas próprias decisões. Apoio nós conseguimos aqui, construímos aqui com as nossas políticas públicas, com nosso projeto de país. Esse é o único respaldo que precisamos.

 

Edição: Rodrigo Chagas

 

https://www.brasildefato.com.br/2020/04/19/eua-acreditam-ter-missao-messianica-contra-comunismo-diz-vice-ministro-venezuelano

 

https://www.alainet.org/es/node/206003
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