Por quem os sinos dobram em Kiev?

18/03/2019
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As armas da Santa Igreja são a paciência, o amor e a oração”

São Maximiliano Kolbe

 

As armas da política, no entanto, em distintas circunstancias têm se mostrado paradoxais a estas expressões descritas por Kolbe. Paramentados de aleivosia, muitos dirigentes políticos têm instrumentalizado igrejas, espinhando e crucificando o segundo mandamento cristão pelo qual o nome de Deus não deveria ser evocado em vão, sacrilégio maior ao se tratar de fins venais.

 

Não são poucos os exemplos, na América Latina, de golpes cívico-militares que ancoraram seus atos em uma narrativa alegórica de defesa da religião e da família, utilizando-se de esquadrões da morte, tratamentos degradantes, sequestros e tudo de mais inumano e, consequentemente, anticristão, para impor o calvário aos seus opositores.

 

Durante os 17 anos do regime de Augusto Pinochet, no Chile, mais de 40 mil pessoas foram vítimas de crimes de lesa-humanidade, como torturas, execuções e desaparições, sobre esse fato o General disse: “tudo o que fiz dedico a Deus”. No Brasil, atualmente, Jair Bolsonaro ocupa a presidência, um declarado admirador de Pinochet e seus métodos. “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, foi o slogan da sua campanha e contou com significativo apoio de igrejas neopentecostais e dos seus templos televisivos.

 

O movimento ecumênico, em todo o mundo, há conquistado importantes avanços na promoção de uma cultura de paz, em fomentar a cooperação e olhar fraterno em direção aos diferentes povos, compadecendo-se dos seus sofrimentos motivados por múltiplas injustiças e opressões, e dedicando-se à propagação da mensagem de Jesus de Nazaré, que é fonte de vida, amor, alegria e esperança.

 

Quando apologistas da segregação e do ódio fazem referência a Deus para justificar seus atos, estão difamando a toda cristandade e, portanto, urge que a resposta também seja professada de maneira ecumênica. Outra forma de reafirmar a identidade cristã é denunciar, com veemência, o que representa sua desfiguração, nenhum lugar onde isso se perpetre deveria nos deixar indiferentes. A omissão contribui para que o manto de ignomínias permaneça sempre engomado e sem manchas na hora que o próximo detrator queira usar.

 

E é assim que, como católico apostólico romano, senti o mais recente golpe contra nossa communitas fidelium (comunidade dos que têm fé), no oriente da nossa Mãe Terra, Ucrânia. Em um ato cismático, marcado por irregularidades canônicas e campanhas milionárias, foi proclamado o rompimento do histórico laço, de mais de 330 anos entre a Igreja Ortodoxa da Ucrânia e a Igreja Ortodoxa da Rússia, ainda que sem o apoio desta última.

 

Essa separação surge em um contexto de alinhamento político-econômico-militar da Ucrânia com os Estados Unidos, depois do Golpe de 2014. Desde então, a incorporação do país na União Europeia e na OTAN vem sendo proferida por representantes do Estado como objetivos principais. A esta disputa mundana, quiseram acorrentar a dimensão do sagrado. O atual mandatário, Petró Poroshenko, dono do principal canal de TV nacional, e que está na lista dos dez mais ricos da Ucrânia, financiou, com supostos mais de meio milhão de euros, anúncios e movimentos pró-independência da Igreja Ortodoxa Ucraniana.

 

Além disso, seu governo ordenou ao Serviço de Segurança da Ucrânia (CBU) que registrasse e interrogasse os padres das paróquias vinculadas ao Patriarcado de Moscou. Por meio desse procedimento de intimidação, os acusaram de “alta traição” e “ameaça contra a segurança nacional” sem nenhuma fundamentação, caracterizando assim uma estigmatização e perseguição religiosa. Mídias internacionais também referiram denúncias de clérigos e fiéis que estão sendo pressionados a aderir à nova formação religiosa.

 

Outro fato assombroso nesse processo é que os bispos (exarcas) nomeados por Constantinopla para conduzir a “autocefalia” ucraniana foram os que atuam na América do Norte. Desta ‘coincidência’, tomara que não resulte Trumpcéfala ou Petrocéfala, que daria no mesmo. É, no mínimo, curioso que a autocefalia de uma igreja haja merecido a atenção do Secretário de Estado dos EUA Mike Pompeo, conhecido por suas declarações islamofóbicas e por sua defesa da tortura, expressou: “Exortamos à igreja e às autoridades do país a avançar rumo à criação de uma igreja ortodoxa ucraniana autocéfala”.

 

Epifânio, o eleito Primaz desta nova igreja ortodoxa, ao discursar na entrega dos tomos de autocefalia, dirigiu-se a Poroshenko: “Seu nome, senhor presidente, permanecerá para sempre na história do povo ucraniano e na igreja ao lado dos nomes de nossos príncipes Vladimir, O Grande, Jaroslau I, O Sábio, Kostiantyn Ostrozky e de Hetman Ivan Mazepa”.

 

Esquecerá, Epifânio, que uma das razões do citado Príncipe Vladimir (1147) ser conhecido como O Grande foi por haver conclamado à Unidade e advertir os irmãos ortodoxos contra as divisões internas, e assim superar as manobras dos invasores? Com a subestimação do seu alerta, Gengis Khan atacou e dominou a antiga Kiev. A fórmula do Divide et impera, mais uma vez é resgatada, agora dentro do espectro de uma geopolítica religiosa. Assim, pois, por quem dobram os sinos na recém-criada igreja ortodoxa, em Kiev?

 

Diante de uma reflexão para além dos dogmas violados durante o processo de reconhecimento da Igreja Ortodoxa da Ucrânia (IOU), para além da questionável jurisdição que a concebeu, passando por cima da ortodoxia canônica, mesmo que haja quem insista em fiar credibilidade legal à criação desta igreja: suportarão a carga de validá-la moralmente? Este é um problema para todo o mundo cristão se posicionar, é a gestação de uma nova igreja, mas que já nasce com a alma abortada, comprometida com interesses políticos mesquinhos, sob a sombra e investimentos gananciosos de um governo que nutre em seu seio grupos que reivindicam os assassinos de São Maximiliano Kolbe.

 

Em dezembro do ano passado, enquanto ocorria o questionável ‘Concílio de Unificação’ que estabeleceu a IOU, também foi decretado pelo parlamento desse mesmo país a celebração do aniversário de Stepan Bandera como feriado nacional. Bandera foi um notável colaborador nazista, destacado líder do Exército Insurgente Ucraniano, responsável pela limpeza étnica de dezenas de milhares de poloneses, e organização de campos de concentração.

 

Neste ano de 2019, o sacerdote polonês Maximiliano Kolbe (canonizado em 1982) completou seu 125º aniversário, ele sofreu os martírios do campo de concentração nazista de Auschwitz, e após escutar o desespero de um pai de família que ia ser executado, entregou sua vida para que o outro continuasse vivendo. Antes que o matassem com uma injeção letal, disse a seus carrascos – “o ódio de nada serve, só o amor cria”.

 

Petró Poroshenko, o nome que a Igreja Ortodoxa Ucraniana quer eternizar, estará mais próximo dos Caminhos de Jesus ou de Herodes, ao admitir em seu governo perseguição a minorias, ataque a ciganos e outras etnias, censura a partidos políticos progressistas e proibição de determinados livros como os que fazem crítica ao ingresso do país na OTAN (a exemplo de: “Suicídio anunciado. Por que Ucrânia necessita da OTAN?)? Em seu governo, grupos neonazistas como o Batalhão Azov foram incorporados à Guarda Nacional e estiveram envolvidos, junto com extremistas do partido Svoboda e a facção paramilitar S14, no sequestro do brasileiro Rafael Lusvarghi de dentro de um Mosteiro, na periferia de Kiev.

 

Lusvarghi, católico ortodoxo, que estava em liberdade depois de haver sido julgado por sua participação solidária nas brigadas do povo de Donetsk (etnia perseguida, que teve direitos cancelados e se tornou independente da Ucrânia) foi arrastado, espancado, escrachado nas ruas de Kiev. Esses grupos de extrema direita o entregaram na sede do Serviço Secreto da Ucrânia e, desde então, voltou a passar por novos controversos processos. O governo do Brasil o ignora, e já explicitou sua afinidade com o governo da Ucrânia.

 

Semana Santa se aproxima, e as eleições na Ucrânia também: Poroshenko pleiteia reeleição, no próximo 31 de março. O Sábado Santo de Ressurreição de Lázaro também é chamado nos textos litúrgicos de “Prelúdio da Cruz”. Que a voz de Deus na consciência dos ucranianos, ilumine seus discernimentos neste sufrágio, para que os resultados não sejam mais uma pesada cruz para seu povo.

 

Como nosso querido Papa Francisco, sou um “peregrino em busca de unidade e de paz”, por essa mesma razão não reconheço autoridade em igrejas que pregam o divisionismo e fazem uso de coerção, com apoio do Estado, com os fiéis de outras igrejas. Ser neutro diante dessa questão, é seguir o caminho de Pôncio Pilatos, não de Jesus Cristo. Omitir-se é assumir a posição de lavar as mãos e, mais uma vez, com o sangue de filhos de Deus.

 

ANEXOS

 

O brasileiro Rafael Lusvarghi sendo arrastado pelas ruas e escrachado por grupos extremistas.

 

 

Abaixo, imagens de grupos neonazistas e de marchas em homenagem ao colaborador nazista e “herói nacional Stepan Bandera”

 

 

 

 

 

https://www.alainet.org/es/node/198763
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