Mentiras e vídeos

06/11/2018
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O fenômeno Bolsonaro deu origem a um vendaval de interpretações. Sociólogos, economistas e cientistas políticos debruçaram-se sobre o personagem de gestos e falas tão agressivos quanto balbuciantes.

 

As considerações a respeito das características pessoais do então candidato, hoje eleito, abriram espaço para a avaliação de seu eleitorado. A palavra fascista foi distribuída com abusiva generosidade pelos adversários do capitão para marcar o lombo dos bolsominions.

 

Peço licença para modestas considerações. A guerra de fake news e vídeos nas redes sociais, todos reconhecem, teve um papel decisivo na formação das escolhas dos eleitores. Essas batalhas foram cuidadosamente preparadas nos laboratórios da malta rica e poderosa, daqui e de fora, em um exercício deliberado de controle dos espíritos machucados pelas incertezas da crise econômica aviada nos gabinetes dos mercados financeiros e executada nas retortas dos desenganos e das frustrações eleitorais de 2014.

 

A ascensão de Bolsonaro recebeu os favores do desencanto, do ressentimento e do ódio. O desencanto transmutou-se em ressentimento e o ressentimento decantou suas moléculas no ódio indiscriminado, “contra tudo isso aí”.

 

Nas precipitações químicas do desencanto para o ressentimento e do ressentimento para o ódio criou-se a cadeia de reações entre a mentira e a crença: o kit gay, o estupro da filha pelo candidato adversário e outras tantas ridicularias pousaram sem resistência nas consciências trôpegas e ansiosas dos brasileiros desamparados e desinformados. O truque consistiu em proclamar mentiras em nome dos bons costumes e dos valores familiares.

 

Essa é uma peculiaridade interessante da comunicação em nossos tempos: a mentira, a falsificação e o engano deliberado foram incluídos no rol dos bons costumes e das virtudes familiares. Imagino que o velho Gepeto iria perder o emprego, tantos são os Pinóquios que pululam pelo mundo. Tudo isso abençoado pelo Senhor, Saravá treis veis!

 

Em sua configuração atual, a sociedade dos mercados escancara a incapacidade de entregar o que promete aos cidadãos. A celebração do sucesso colide com a exclusão social; o desemprego tromba com a desigualdade de oportunidades.

 

Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os “inimigos” imaginários, produtores do seu desencanto. Os inimigos são os outros: os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o Bolsa Família e recusam a vara de pescar, comunistas imaginários etc.

 

As normas sociais da concorrência utilitarista que guiam o sujeito pós-moderno levam à morte o indivíduo iluminista de Adam Smith, aquele consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia. Ele foi substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações, sempre preocupado em retirar de si, com doses maciças de Prozac, a essência de todo o conflito.   

 

A rejeição pós-moderna é mais profunda porque, de forma devastadora, erodiu os sentimentos de pertinência à mesma comunidade de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciação e (des)identificação em relação aos “outros”. E essa recusa do outro vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo tosco, agressivo e antirrepublicano.

 

Na Genealogia da Moral, Nietzsche não hesita em afirmar que “grande perigo para os homens são os indivíduos doentios, não os maus, não os predadores. São os desgraçados, os destruídos, os vencidos de antemão – são eles, são os fracos que mais solapam a vida entre os homens, que envenenam e colocam em questão da maneira mais perigosa nossa confiança na vida e nos homens”.

 

Os aforismos de Nietzsche exclamam protestos contra as virtudes do cristianismo, contra o ressentimento e a má consciência dos fracos, permanentemente mergulhados na mediocridade da sociedade de massa.

 

A “psicologização” utilitarista da existência, diz Elisabeth Roudinesco, avassalou a sociedade e contribuiu para o avanço da despolitização, filha dileta do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de “pequeno fascismo da vida cotidiana”, praticado e celebrado pelo indivíduo ressentido, ao mesmo tempo protagonista e vítima de um processo social que não compreende.

 

O pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada indivíduo, sem ser percebido, ainda que continue a simular a defesa dos sacrossantos princípios da família, dos costumes e da religião.

 

Assim falou Bolsonaro.

 

- Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

 

06/11/2018

https://www.cartacapital.com.br/revista/1028/mentiras-e-videos

 

https://www.alainet.org/es/node/196366
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