A nova rota da seda e a relação com a América Latina

05/11/2018
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Elaboración Marcos Santos
Navis Consultores
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A reemergência chinesa no sistema economia-mundo traz novas possibilidades e desafios para os estados emergentes. A proposta chinesa de reconfiguração da ordem mundial, representada pela iniciativa One Belt One Road e respaldada na dimensão temporal braudeliana, impulsiona a demanda por commodities, afetando diretamente as relações de dependência dos países latino-americanos e caribenhos, especificamente. Espera-se mostrar os impactos do projeto OBOR no subcontinente, em termos de criação de infraestrutura, aumento dos investimentos chineses e as repercussões nos governos de esquerda e direita da região.

 

A China no Sistema Internacional

 

A visão da historiografia eurocêntrica acerca da economia-mundo atribui à Europa e ao Ocidente, de uma forma geral, a qualidade de área pivô do desenvolvimento econômico, sociocultural e tecnológico desde os tempos antigos aos tempos contemporâneos. André Gunder Frank, um dos formuladores da Teoria da Dependência, recua a origem do sistema mundial para cinco mil anos atrás, recusando tais interpretações hegemônicas ocidentais. Para o autor, que incorpora a visão de longa duração braudeliana,

 

“a Europa e Ocidente já foram periferia de um mundo em que a ascendência coube a outras civilizações, capazes de melhor fazer comércio e acumular o capital.” (CERVO, 2005)

 

Dessa forma, a análise do crescimento econômico chinês à luz do sistema economia-mundo de Gunder Frank foi baseada nas seguintes formulações: antes de 1800, o padrão de vida chinês podia ser equiparado ao padrão europeu (1), os mercados chineses eram tão eficientes quanto aos europeus (2), as técnicas de agricultura chinesa eram mais sofisticadas que as europeias (3), como a China e a Europa tinham economias agrárias, ambas tinham as mesmas restrições malthusianas (4). Assim, antes de 1800, o Oriente era o principal território que fomentava a economia mundial até o final do século XVIII. Nesse período, China e Índia estavam a frente do continente europeu em termos de crescimento populacional, ganhos de produtividade, inovação tecnológica e renda per capita.

 

A ascensão da Europa se deu às custas da força de trabalho barata e dos recursos naturais provenientes da América e da África no decorrer dos séculos seguintes, que permitiram ao Velho Continente ser o berço da Revolução Científica. Segundo Gunder Frank, as inovações trazidas foram decorrentes de um processo que se caracteriza por ser muito mais mundial do que regional, exatamente por englobar os recursos e mão de obra de outras localidades do globo.

 

A China passou por processo distinto daquele expansionista europeu. A cultura estratégica chinesa foi marcada pela larga experiência em lidar com tentativas de invasões, o que influiu na construção de uma preocupação prioritária relacionada a estabilidade interna. A política adotada de se orientar para dentro e não para fora do império chinês é explicada por Gunder Frank como uma escolha racional, já que a alta oferta de mão de obra barata, o sistema agrário mais eficiente e os baixos salários tornaram desnecessárias a mecanização e expansão aos moldes daquelas realizadas pela Europa no mesmo período. Além disso, a prosperidade pós 1400 na China polarizou a distribuição de renda e contraiu a demanda doméstica efetiva para consumir em massa.

 

A partir de então o que se estabeleceu foi a “grande divergência” duradoura e secular entre países do centro e países periféricos, na qual a Europa e os Estados Unidos, posteriormente, emergiram como os centros hegemônicos da configuração do sistema mundial.

 

No entanto, desde o rápido crescimento econômico chinês das últimas décadas, o qual atingia aproximadamente 10% ao ano, a China não mais pode ser vista como estando às margens do sistema economia-mundo. Com a crise de 2008, a China atingiu novos patamares do crescimento econômico, contabilizando cerca de 7% ao ano, enquanto a média anual tem sido de 2,2% ao ano. Dessa forma, o planejamento estratégico e a segurança nacional marcam as prioridades do governo chinês, a fim de fortalecer sua posição no sistema internacional. Estão inseridos nessa perspectiva o fortalecimento da conversibilidade da moeda chinesa; a nova Lei de Segurança Nacional, que estabelece a proteção de canais através dos quais a China obtém suas fontes de energia; e a iniciativa One Belt One Road, que promete reconfigurar a ordem do sistema economia-mundo (DELGADO, FEBRARO, 2017).

 

A Nova Rota da Seda

 

Em 2013, o presidente chinês, Xi Jinping, divulgou a Iniciativa Belt and Road (BRI ou OBOR), também conhecida como Nova Rota da Seda. A partir desta, o governo chinês busca proporcionar a base física e o argumento político para integrar toda a Eurásia, recriando o corredor econômico milenar que uniu Oriente e Ocidente. O projeto prevê a construção de novas infraestruturas que favoreçam a conectividade e o comércio, a cooperação econômica e financeira, o intercâmbio cultural e acadêmico entre os países participantes e conta com um investimento de mais de US$ 890 bilhões.

 

O documento elaborado em conjunto pelos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Comércio e pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma titulado Vision and Actions on Jointly Building Silk Road Economic Belt and 21st-Century Maritime Silk Road traz consigo a ideia da valorização da tradição milenar chinesa, a partir da importância concedida à antiga rota de mais de dois milênios atrás, que integrava Ásia, Europa e África. A Nova Rota seria então a reformulação e atualização da antiga, o que, segundo a dialética da duração dos tempos de Braudel, indica a potencialidade que o projeto pode adquirir.

 

No mesmo documento, o governo chinês diz buscar os seguintes elementos: coordenação das políticas, a conectividade das instalações, a integração financeira e o intercâmbio de pessoas. Para isso, a coordenação e o alinhamento das estratégias de desenvolvimento desses países tornam-se os objetivos centrais, assim como a criação de demandas e oportunidades de emprego, e a promoção de confiança, paz e prosperidade. É estabelecida também, a subdivisão da Nova Rota em Cinturão Econômico, ligando China-Ásia Central- Rússia-Europa (Báltico); e a Rota Marítima, que liga a costa da China a Europa através do Mar do Sul da China e do Oceano Índico em uma rota e do Mar do Sul da China para o Pacífico em outra rota.

 

O processo de integração envolve aproximadamente 55 países e cerca de 62% da população mundial de três continentes (Ásia, Europa e África), sendo estruturado em 6 corredores: Corredor Econômico Marítimo, Corredor Econômico China-Península Indochinesa, Corredor Econômico China-Ásia Central, Nova Ponte de Terra da Eurásia, Corredor Econômico China-Mongólia-Rússia. A China, dessa forma, propõe um novo modelo de expansão, baseado no discurso win-win (benéfico para todos os países acordados) e teoricamente distinto do modelo colonizador já consagrado pelos Estados Unidos e outras potências ocidentais.

 

A partir de então, o governo chinês têm mobilizado recursos financeiros para impulsionar a iniciativa OBOR, com a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS e o Fundo da Rota da Seda, que conta com US$ 40 bilhões para apoiar a infraestrutura, logística, investimentos e novos projetos em países envolvidos. Isso, além de alavancar o projeto, pressiona a emergência de uma nova estrutura econômica em âmbito do sistema internacional que vai de encontro às instituições tradicionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

 

Dessa forma, o AIIB se constitui como um instrumento econômico que desempenha importante papel financeiro e político globalmente. Os principais acionistas são a Rússia, Alemanha, Itália e Brasil, países diretamente envolvidos no projeto, seja por constituírem pólos de atração de investimentos, seja via desenvolvimento de infraestrutura em seus territórios.

 

O projeto de nação chinês é, dessa forma, alavancado através da iniciativa OBOR e sua projeção de viabilização é baseada na valorização da própria história nacional chinesa dada pelo governo com um projeto de nação que visa reestruturar a rota milenar.

 

A aproximação com a América Latina e o Caribe

 

A magnitude do projeto OBOR tem como consequência direta o aumento da demanda por matérias-primas para a construção de infraestrutura. Dessa forma, os recursos energéticos adquirem papel prioritário para a China, determinando a sua política externa e os investimentos de Pequim. Já em 2016, o país foi considerado o maior consumidor de energia do mundo, respondendo por 23% do consumo global.

 

Segundo os dados da Agência Internacional de Energia (IEA)1, as variações do Produto Interno Bruto (PIB) estão intrinsecamente relacionadas com a demanda energética em alguns países. A necessidade de desenvolvimento em infraestrutura na China é dependente dos setores intensivos em energia. No período entre 2000 e 2014, a demanda energética chinesa cresceu mais de 150%, enquanto a alteração do PIB foi equivalente a 250%. As projeções da IEA, para o período entre 2015 e 2035, são que a produção de energia na China aumentará em 38% e o consumo em 47%.

 

Devido à alta necessidade chinesa por energia, a América Latina e Caribe adquirem um papel chave para a política externa chinesa, em razão da alta disponibilidade de recursos naturais em seus territórios. Assim, o presidente Xi Jinping se comprometeu a investir US$ 250 bilhões em projetos de abastecimento energético na região.

 

Dessa forma, as relações sino-latinoamericanas aumentaram significativamente na última década. Entre 2010 e 2013 o investimento agregado na região chegou a US$ 42.716 milhões frente a US$ 7.342 milhões nos dez anos anteriores. Em 2013, o volume total do comércio entre China e América Latina foi 24 vezes superior ao contabilizado em 2010. Em 2014, a China foi o principal destino das exportações de Brasil, Chile, Peru e Uruguai. O montante equivalente aos empréstimos chineses para a região também se expandiu. Em 2015, o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação e Importação da China ofereceram um total de US$ 29,1 bilhões em empréstimos para a América Latina, frente aos US$ 4,8 bilhões oferecidos em 2007. Politicamente, a China estreitou mais os laços com os governos de esquerda da região e, além disso, tornou-se financiadora crucial da Venezuela, Equador e Bolívia, os quais rejeitaram as instituições ocidentais, tais como o Banco Mundial e o FMI (VALDERRAY, MONTOYA, 2016).

 

Depreende-se que a China estabelece uma posição mais proativa na América Latina, acompanhando a tendência de aumento da demanda de commodities. Em janeiro de 2015, o país asiático sediou a primeira reunião ministerial com os países da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) em Pequim, a qual, segundo o presidente Xi Jinping, seria a representação de uma nova fase da parceria entre a China e o subcontinente. Nessa, o fórum China-CELAC criado foi responsável por facilitar o intercâmbio acadêmico e o debate entre jovens. Assim, a Comunidade de Estudos Chineses e Latino Americanos (CECLA) foi fundada em 2015, constituindo uma organização privada, com sede em Pequim, e tem por objetivo promover o diálogo entre jovens pesquisadores e acadêmicos de ambas regiões.

 

Em julho de 2014, Xi Jinping viajou ao Brasil, Argentina, Venezuela e Cuba, todos os quais tinham governos de esquerda na época. Em uma reunião com a então presidente da Argentina, Cristina Kirchner, Xi declarou que as relações sino-argentinas alcançariam “novos horizontes sem precedentes”. Um ano depois, Li Keqiang, primeiro-ministro chinês, visitou cinco Estados da América do Sul, onde foi recebido por líderes, tais quais as então presidentes chilena Michelle Bachelet e brasileira Dilma Rousseff, e garantiu vários acordos de investimentos. Desde então, porém, a situação na América Latina tornou-se menos favorável para a China, com a ascensão de governos neoliberais no Brasil e na Argentina, com Michel Temer e Mauricio Macri, respectivamente, e a orientação destes para Washington.

 

Os Impactos do Projeto OBOR na América Latina

 

Na Venezuela, a China planeja investir mais de US$ 56 bilhões em projetos de estradas de ferro, moradias e projetos de geração de energia elétrica. Aproximadamente 4% do consumo chinês em óleo cru provêm do país latino americano. Nesse momento de instabilidade política do governo de Nicolás Maduro, o gigante asiático mantém boas relações com o país, reconhecendo seu papel estratégico global.

 

Na Argentina, o governo de Cristina Kirchner mantinha relações amigáveis com a China. No entanto, Mauricio Macri a substituiu e antes de sua vitória disse que revisaria e possivelmente vetaria os contratos multimilionários que foram assinados com a China pelo governo que o antecedeu. Esses contratos incluíam a construção de duas usinas nucleares e uma estação espacial em Neuquén, a qual a China alegou que a usaria para rastrear satélites e Macri acredita que seria usada para fins militares. Apesar disso, Macri manteve as conexões econômicas com a China. Em abril de 2016, os dois presidentes se encontraram e, em maio do mesmo ano, a ministra argentina de relações exteriores, Susana Malcorra, ratificou os contratos das usinas nucleares e da estação espacial em reunião com seu homólogo chinês, após cinco meses de revisão pelo governo argentino. O primeiro-ministro chinês garantiu a Malcorra que a estação espacial seria exclusivamente para o uso civil e concordou em reduzir o número de turbinas instaladas no complexo Cepernic-Kirchner de onze para oito, o que reduziria os potenciais danos ambientais do projeto.

 

No Peru, a China planeja investir US$ 50 bilhões em infraestrutura, que inclui uma estrada de ferro ligando a Amazônia ao Peru. Em 2014, o país asiático importou 58% do cobre, 48% do ouro e 29% do zinco peruanos. Empresas chinesas investiram em três complexos de mineração peruanos - Río Blanco, Toromocho e Las Bambas. Pedro Pablo Kucynski, ex-presidente do Peru, compartilhava do interesse chinês em desenvolver o setor de mineração e considerava a China um grande parceiro estratégico.

 

No Brasil, o Banco de Desenvolvimento da China está financiando projetos de interconexão de pipelines de gás no sul e no norte do país para a Sinopec, uma empresa de energia chinesa. A Lei de Segurança Nacional, que defende a proteção de canais estratégicos pelos quais a China obtém suas fontes de energia, respaldou a participação da China no pré-sal brasileiro, independente dos custos de exploração e entrada nas rodadas. As estatais Corporação Nacional de Petróleo da China (CNPC) e China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) respondem por 10% cada um dos consórcios formados para a exploração da área de Libra. Além disso, tais empresas também demonstraram interesse nas próximas rodadas de campos do pré-sal.

 

Na Colômbia, desde a conclusão das negociações de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), a China se mostra progressivamente mais interessada em investir em recursos naturais e infraestrutura no país. Além disso, o governo chinês demonstra interesse pela agricultura, estradas e grandes portos na costa do Pacífico. Um desses projetos é o Parque Industrial Portuário de Buenaventura, localizado no porto comercial mais importante da Colômbia. Em 2015, os governos de ambos os países assinaram um memorando de entendimento, oficializando o compromisso em explorar opções de desenvolvimento e financiamento para esse projeto. Várias propostas foram apresentadas desde então, mas a construção ainda está estagnada. Se concretizado, o Parque Industrial se tornará um dos principais portos de comércio da América do Sul e Ásia e contará com logística avançada, processamento de tecnologia para cargas e envio de recursos estratégicos. Espera-se que o projeto inclua conexões com novos sistemas ferroviários e rodoviários, bem como áreas comerciais para a venda de produtos a granel.

 

Ademais, a China tem demonstrado interesse na bacia do rio Orinoco e nas planícies orientais, que atravessam a Colômbia e a Venezuela e são áreas férteis, ricas em recursos hídricos e minerais. O governo colombiano e o governo chinês estudam a possibilidade de despender conjuntamente US$ 3 bilhões em projetos agrícolas na região, além de projetar a modernização da infraestrutura rodoviária e ferroviária existente, a qual conecta a bacia e as planícies com o restante do país e com os portos ao longo da costa do Pacífico. As empresas estatais chinesas também estão participando do projeto do governo colombiano de criar um sistema rodoviário nacional de quarta geração.

 

Juntamente a essas iniciativas locais, estão em curso dois projetos de integração terrestre transnacionais. São estes: o Corredor Ferroviário Bioceânico de Integração (CFBI), o qual pretende interligar Brasil, Bolívia e Peru, a partir do Porto de Santos, no Brasil, ao Porto de Ilo no Peru, contabilizando 3.750 km; e a Ferrovia Transoceânica (FT), a qual interliga Brasil e Peru, ao longo de 6.400 km entre Ilhéus (BA) e o Porto de Ilo, no sul do Peru.

 

O CFBI se transformou em uma importante pauta política do governo do presidente boliviano, Evo Morales. Em dezembro de 2013, Morales se reuniu com Xi Jinping, a fim de discutir a viabilidade do projeto. Para a China, a execução deste permitiria reduzir significantemente os custos e a duração do transporte de mercadorias entre América Latina e o continente asiático. Por exemplo, um navio cargueiro, que sai do Porto de Santos em direção à China e perpassa pelo Canal do Panamá, demora em média 67 dias e 13 horas para chegar ao seu destino final. Caso faça o trajeto contornando o sul do continente americano, levará em média 58 dias e 11 horas. Não obstante, se o CFBI for concluído, tal percurso poderá ser reduzido a 38 dias e 8 horas. O governo boliviano recebeu, então, US$ 6,8 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que foram destinados à contratação de empresas de consultoria espanholas, francesas e bolivianas para realizarem o estudo do projeto.

 

Em setembro de 2017, Cochabamba, na Bolívia, sediou o primeiro encontro do Grupo Operativo Bioceânico para avaliar o progresso de seis meses de trabalho técnico, que foi responsável por estudar a viabilidade do projeto. Participaram do encontro representantes da Bolívia, Brasil, Paraguai e Peru. Também estiveram presentes representantes de empresas da Suíça, Espanha, Alemanha e Áustria, que pretendem financiar o projeto. A execução deste foi orçada em ao menos US$ 10 bilhões. Nessa ocasião, os representantes do Brasil, Bolívia, Paraguai e Peru ratificaram o apoio para a consolidação do projeto.

 

Em suma, o corredor, que se iniciará em Santos (Brasil), ingressará na Bolivia pelo Porto de Suarez, chegará à La Paz e concluirá no Porto de Ilo (Peru), está ainda em fase de viabilização técnica, estrutural e financeira. Além disso, há consenso entre os países envolvidos da importância de tal projeto. A China, no entanto, mostra-se distante deste, enquanto empresas europeias, principalmente de origens espanholas e alemãs, já se mostraram dispostas a investir no CFBI.

 

Já sobre a Ferrovia Transoceânica, em maio de 2008, o projeto foi incluído no Plano Nacional de Viação brasileiro, mas, apenas em 2015, a FT ganhou impulso na ocasião da visita do primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, à América Latina. Ao desembarcar no Brasil, Li anunciou um pacote de investimentos orçado em US$ 53 bilhões. Estes seriam direcionados à aeroportos, rodovias, ferrovias, energia, agronegócio, autopeças, equipamentos de transporte, portos, armazenamentos e serviços. E, dentre os projetos, o principal é o financiamento da Ferrovia Transoceânica, que ligará a Ferrovia Norte-Sul à costa sul-americana do Pacífico, no Peru.

 

O projeto, o qual despertou o interesse da estatal chinesa China Railway Construction Corporation (CRCC), seria interligado à Ferrovia Norte-Sul, a qual realiza o trajeto entre o Porto de Santos, em São Paulo, ao Porto de Açailândia, no Maranhão. As partes a serem construídas compreendem os trechos de Ilhéus, na Bahia, a Figueirópolis, em Tocantins, contabilizando 1.500 km; e de Figueirópolis, em Tocantins, ao Porto de Ilo, no Peru, percorrendo 4.900 km. O custo do projeto está orçado entre R$ 30 e 50 bilhões.

 

Embora o estudo técnico tenha garantido a viabilidade do projeto, o grande entrave foi a falta de interesse do governo peruano em investir em tal obra. Bi Qiang, engenheiro responsável pelo estudo de viabilidade técnica da empresa China Railway Eryuan Engineering Group Co, sugeriu a criação de uma empresa estatal joint venture ou de um fundo de investimentos Brasil-China para a construção conjunta e propôs que o projeto na parte brasileira seja realizado em três etapas: primeiro, concluindo a Ferrovia Leste-Oeste (Fiol), comunicando o Centro-Oeste e o Oceano Atlântico; depois, levando a ferrovia de Campinorte, em Goiás, à Porto Velho, em Rondônia; por último, chegar ao Acre. Finalizada a parte brasileira e após um retorno financeiro, o trabalho, então, seria impulsionar o Peru a aceitar a continuação da obra, explicou Bi Qiang.

 

No início de 2018, a cidade de Ji-Paraná, em Rondônia, sediou um encontro entre os representantes dos estados de Rondônia, Acre e Mato Grosso, com uma comitiva chinesa de 23 empresários, o qual teve como pauta dar os primeiros passos para retirar do papel o projeto da Ferrovia Transoceânica. No entanto, na ocasião, houve apenas a elaboração de uma declaração conjunta de interesse, em que o embaixador chinês no Brasil, Ji Jinzhang, deixou clara a disposição da China, Brasil e Peru - o qual, por sua vez, já havia revisto sua posição em relação ao projeto - em dar continuidade aos planos para a construção da Ferrovia.

 

Não obstante, apesar das vantagens comerciais que se dariam a partir de tal projeto e das constantes declarações de interesse dos países envolvidos, tanto o Corredor Ferroviário Bioceânico de Integração, quanto a Ferrovia Transoceânica apresentam dificuldades na fase de construção de facto.

 

Outro projeto de grande magnitude inserido na Iniciativa One Belt One Road, é o Canal da Nicarágua, à guisa do Canal do Panamá. Apesar de Kwok Wai Pang, vice-presidente executivo da empresa privada concessionária do Canal, HKND Group, divulgar explicitamente que não se trata de canais concorrentes, é interesse estratégico de a China ter acesso aos oceanos Atlântico e Pacífico, sem estar à mercê da patrulha estadunidense, presente no Canal do Panamá. As duas maiores diferenças entre os canais são que o de Nicarágua será capaz de servir navios de contêineres de até 25 mil TEU (unidade correspondente a um contêiner comum de 20 pés) e atender navios graneleiros de até 400 mil toneladas, enquanto o Canal de Panamá expandido servirá de navios de até 13 mil TEU e atenderão navios graneleiros de até 199 mil toneladas.

 

A concessionária responsável pelo projeto é uma empresa privada internacional de desenvolvimento de infraestrutura com sede em Hong Kong e liderada pelo presidente e diretor executivo, Sr. Wang Jing. A empresa australiana, CSA Global, foi contratada para fazer uma supervisão aérea que cobrirá os 276 km do corredor do canal e uma circunferência de dois quilômetros de diâmetro sobre o Lago Nicarágua. Além disso, os estudos técnicos de viabilidade ficaram a cargo da China Railway Construction Corporation (CRCC); e a análise de dados provenientes dos estudos, da McKinsey & Company, de Washington DC. As consultorias legais são de responsabilidade da equipe jurídica internacional Kirkland, de Chicago. Além disso, a HKND convidou a empresa XCMG, a SBE da Bélgica e a MEC Mining da Austrália para ajudar no projeto. O orçamento do projeto é de US$ 50 bilhões e os fundos provirão do financiamento global. O Canal da Nicarágua também proverá uma rota marítima mais curta, especialmente para o comércio marítimo entre a Ásia e os Estados Unidos. Além disso, os projetos associados ao canal, como os portos, a zona de livre-comércio e o aeroporto, podem fazê-lo mais rentável.

 

O governo da Nicarágua foi fundamental em aprovar e promover a lei especial de concessão, a criação da Comissão da Autoridade do Canal e a revisão e a aprovação dos estudos ambientais. No entanto, a construção demandará a realocação de 27.000 pessoas de uma região que é fortemente contrária a sua execução.

 

Apesar do governo da Nicarágua ter concedido a licença ambiental em novembro de 2015, as obras ainda não tem projeção de início. Especula-se nas mídias ocidentais que o atraso seja devido à falência do presidente da empresa HKND nesse meio tempo.

 

Considerações Finais

 

Em suma, o estreitamento das relações sino-latinoamericanas, desde a divulgação do projeto OBOR, é estabelecido não apenas através do aumento das exportações de commodities com baixo valor agregado para o país asiático, mas também via intenso financiamento chinês em infraestrutura na região. A América Latina, a qual historicamente mantém relações estreitas com os Estados Unidos, vê-se diante da possibilidade de diversificar seus parceiros estratégicos e se beneficiar com isso economicamente.

 

A onda neoliberal, a que perpassa a região atualmente, preza mais pelas relações com os Estados Unidos, mas, mesmo assim, não tem deixado de encarar a China como uma parceria estratégica, restrita ao âmbito econômico, não ideológico. Dessa forma, a presença chinesa na região é estabelecida mais frequentemente através de acordos bilaterais, devido à dificuldade em obter consenso entre os governos latino-americanos, o que acaba por prejudicar o poder de barganha da região, a qual adota uma política mais imediatista de transferência de recursos estratégicos, como é o caso das rodadas de campos de pré-sal no Brasil. Já a estagnação dos projetos chineses de grande magnitude na região, tais quais o CFBI, a Ferrovia Transoceânica e o Grande Canal de Nicarágua, levantam suspeitas de possíveis entraves nos processos de financiamento dos projetos e da falta de estabilidade regional, que dificultaria a atração de investimentos.

 

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