Enigma Lula

06/08/2018
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
lula.jpg
-A +A

No meu livro "A nova toupeira – Os caminhos da esquerda latinomericana" -, havia um capitulo com o titulo de "O enigma Lula". Naquele em que eu estou escrevendo – "Lula e a esquerda do século XXI"-, eu desenvolvo essa questão.

 

Enigma porque sua compreensão nao é simples. Tanto assim que seja a direita, como a ultra esquerda, nao decifraram o enigma e foram devorados por ele.

 

Uma e outra subestimam o que Lula representa e, principalmente, não compreendem o significado da era neoliberal e como se deve lugar contra ela. O neoliberalismo tratou de impor a dicotomia Estado/sociedade civil, uma armadilha para a esquerda que respondeu a ela. Porque se trata de desarticular essa falsa dicotomia. Aceita-la é aceitar a polarização inflação/ajuste fiscal.

 

A era neoliberal representou uma novo período histórico, pelas profundas transformações que foram introduzidas nas ultimas décadas do século passado, sem cuja compreensão não se pode entender as novas formas de luta política. Se passou de um período marcado pela polarização entre duas superpotências a um período de hegemonia de uma única grande superpotência – transformação com profundas consequências. Se passou de um ciclo longo expansivo do capitalismo – que Hobsbawn caracterizou como a "era de ouro do capitalismo" – a um ciclo longo recessivo, ainda vigente e sem horizonte para terminar. E da hegemonia de um modelo de bem estar social, em que o Estado assumiu – em maior ou menor proporção - responsabilidades sobre os direitos das pessoas – a um modelo liberal de mercado, de luta de todos contra todos, diante de um Estado reduzido às suas mínimas proporções.

 

O conjunto dessas transformações de caráter regressivo teve na America Latina sua vitima principal, através de três fenômenos principais: a crise da divida, entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980 -, que fechou o período de maior desenvolvimento econômico da região; as ditaduras militares em alguns dos países politicamente mais importantes do continente: Brasil, Uruguai, Chile e Argentina, que afetaram profundamente a capacidade de luta dos movimentos populares; e a terceira, diretamente decorrente dela: os governos neoliberais, de que a America Latina foi a região que teve mais governos dessa natureza e nas suas modalidades mais radicais.

 

Foi assim também a America Latina a única região em que surgiram governos antineoliberais, implementados por forcas que souberam compreender a natureza do neoliberalismo e construir governos que avançaram na sua superação. Quem não entendeu a natureza do neoliberalismo acreditou que, como ele radicalizou o projeto capitalista de mercantilização da sociedade, só sairia dele pelo socialismo. Ou, pregando que a luta deveria se fazer contra o Estado, centrado na sociedade civil – como afirmavam intelectuais e ONGs.

 

O neoliberalismo chegou junto com o fim do campo socialista e a critica radical do papel do Estado e das suas regulações. Mudou completamente o quadro da esquerda no mundo: a social democracia aderiu ao neoliberalismo, os partidos comunistas praticamente desapareceram ou se tornaram intranscendentes, junto com as correntes trotskistas.

 

A esquerda do século XXI tornou-se a esquerda das forcas antineoliberais ou posneoliberais, cujos lideres passara a ser Hugo Chavez, Lula, Nestor e Cristina Kirchner, Pepe Mujica, Evo Morales e Rafael Correa, como lideres de governos antineoliberais.

 

Lula compreendeu perfeitamente a natureza do neoliberalismo, inclusive como ele havia conseguido se impor porque pela bandeira do combate à inflação. Lula soube incorporar esse fenômeno, entendendo como a inflação é um imposto aos salários dos trabalhadores, mas não mais como um objetivo central e um fim em si mesmo, mas como um instrumento para, colocando as finanças do Estado, deslocar a prioridade fundamental do governo para a implementação das políticas sociais e o combate às desigualdades.

 

Foram devoradas a direita, que acreditava que era impossível a compatibilização entre crescimento economico, distribuição de renda e controle da inflação. Assi como a ultra esquerda, que afirmava que o PT "havia traído" a classe trabalhadora e que o governo Lula ia fracassar. Nenhuma dessas previsões aconteceu.

 

A direita teve que entender como o sucesso das políticas sociais do governo Lula conquistou amplo apoio popular, enquanto a ultra esquerda nao se resignou a confessar que o governo tinha atendido os interesses fundamentais da classe trabalhadores e gozava do mais amplo apoio popular, e de que o governo Lula era o de maior sucesso na historia do Brasil.

 

De alguma forma, hoje também ha quem não compreenda a estratégia do Lula. São os que não compreenderam que a hegemonia da esquerda foi lograda pelo programa antineoliberal – prioridade das políticas sociais, da integração regional e dos intercâmbios Sul-Sul, e pelo resgate do papel ativo do Estado – e pela construção de uma ampla frente nacional, que superou o isolamento da esquerda no plano politico. Sao os que – embora alguns deles tivessem apoiado o governo FHC – consideram que toda aliança política que vá mais além do campo da esquerda é "conciliação". Como se, em algum lugar houve um governo de esquerda que não tivesse organizado um marco de alianças mais amplas. Nunca houve um governo de "classe contra classe". Como parecem propor essas visões.

 

E' que eles tem uma visão pre-gramsciana, não compreendem que o fundamental não é fazer ou não fazer alianças. E quem detém a hegemonia nessas alianças. Lula, por exemplo, terminou seu mandato com 87% de apoio – apesar de 80% de referencias negativas na mídia -, expressando o auge da hegemonia da esquerda no pais. Quando isso se dá, os setores secundários no bloco de forcas no governo tem um peso secundário, enquanto a esquerda impõe seus objetivos fundamentais.

 

Hoje alguns setores se sentem confusos pela estratégia do Lula para derrotar o golpe e fazer triunfar de novo um governo antineoliberal. Não se dão conta que a esquerda sozinha seria mantida no isolamento e seria de novo derrotada. Pregam que não deve haver nenhuma aliança com setores que apoiaram o golpe, o que significa a esquerda congelar o momento em que ficou em minoria e o golpe se impôs justamente por isso.

 

Hoje a polarização fundamental se dá entre a retomada o projeto de desenvolvimento com distribuição de renda – representado pelo Lula – e a preservação do modelo neoliberal, objetivo fundamental do golpe. Para derrotar as forcas do golpe que, embora tenham ínfimo apoio social, dispõe do poder da mídia, do poder do Judiciário, e do Congresso, é necessário contar com muito mais forcas do que as do campo popular. Dai que Lula proponha uma frente política que conte com todos os que, de alguma forma, se opõe ao governo e se identificam com sua liderança. Propõe um governo do PT, como partido que representa esse modelo e que conta com sua liderança ou a de quem ele indicar – caso seja impossibilitado de se candidatar -, para derrotar as ainda poderosas forcas do golpe, triunfar nas eleições de outubro, conseguiu convocar um referendo revogatório e uma Assembleia Constituinte. Sao objetivos grandes, mas indispensáveis, para resgatar a democracia e as condições de governabilidade, para retomar o modelo vitorioso no governo Lula.

 

Há outras pré-candidaturas no campo popular, mas nenhuma delas demonstrou ter grande apoio popular, nem condições de organizar o amplo bloco político e, assim, derrotar o golpe e organizar um novo governo. Por isso que Lula luta, junto com a grande maioria da esquerda pelo direito de ser candidato, assim como ele não abre mão de dar condução à única via atual de derrotar o golpe, pela vitoria eleitoral do Lula e do projeto que ele representa.

 

Os que concentram toda a estratégia da esquerda na frente dos partidos, não se dão contra como essa frente, embora necessária, é muito estreita ainda, para construir a frente política indispensável. Que esses partidos, salvo o PT, têm pouca representatividade popular. Que só uma figura como a do Lula permite incorporar, por exemplo, à grande maioria da lideranças políticas do nordeste, região indispensável para a vitoria da esquerda.

 

Quem não decifra o enigma Lula, é devorado por ele.

 

- Emir Sader, colunista do 247, é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros

 

5 de Agosto de 2018

https://www.brasil247.com/pt/blog/emirsader/364181/Enigma-Lula.htm

 

https://www.alainet.org/es/node/194518
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS