A hegemonia digital dos EUA está com os dias contados?

22/06/2018
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Foto: Istockphoto
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Enquanto os Estados Unidos de Donald Trump se preparam para uma guerra comercial total com a China ressurgente, Washington parece ter esquecido os próprios mecanismos que garantiram seu predomínio na era Pós-Guerra Fria.

 

Esses mecanismos eram sustentados não só pelo poderio militar do Pentágono, mas também pela capacidade de minimizar as possibilidades de qualquer dissidência antissistêmica.

 

Os políticos estadunidenses sabiam perfeitamente que a marca da hegemonia efetiva é a invisibilidade de suas operações. Fazer outras pessoas se comportarem como desejado é mais fácil quando essas pessoas acreditam que fazê-lo é não só de seu interesse, como também o curso natural da história e do progresso.

 

Por que tentar apregoar algo tão difícil de engolir quanto o colonialismo, se pudermos fazer outros países se renderem a contos de fadas sobre os benefícios mútuos do livre-comércio?

 

De todos os mitos que solidificaram a hegemonia estadunidense nas últimas três décadas, o mito da tecnologia mostrou-se o mais poderoso. Ele projeta a tecnologia como uma força natural e neutra que poderia eliminar os desequilíbrios de poder entre os países. A tecnologia não era algo a ser manipulado ou redirecionado; só podíamos nos adaptar a ela – como nos adaptaríamos aos caprichos do mercado, mas com muito menos resistência.

 

Uma aldeia global estava sendo criada, por cortesia das redes e dos bits. “O fim da história” parecia tentador em todas as línguas, mas nenhum idioma o colocou de forma tão eloquente quanto o da tecnologia. Nunca havia existido um modo de ser tão entusiástico sobre o capitalismo sem sequer citá-lo pelo nome. O importante não era quem possuía a tecnologia, mas como a usávamos.

 

Tais formulações ajudaram a ocultar muitas verdades básicas sobre a verdadeira relação entre tecnologia e poder. Primeiro, a aldeia global só era global na medida em que seu patrão principal – os Estados Unidos – precisasse que o fosse. Segundo, não havia nada natural ou neutro nos critérios, redes e protocolos do universo digital: originários da Guerra Fria, a maioria deles visava ampliar a influência americana.

 

Terceiro, ingressar numa rede única e inviolável nunca foi um meio fácil para a libertação nacional. De armas cibernéticas a inteligência artificial e vigilância, a interconectividade e a digitalização, longe de eliminarem antigos desequilíbrios de poder, criaram muitos novos.

 

De todo modo, essa ideologia – a da internet – serviu aos interesses estadunidenses muito bem, produzindo muitas das maiores empresas tecnológicas do mundo. Em 2018, entretanto, ela começou a se esgarçar.

 

A aldeia global americana se desintegra. Vejam as plataformas digitais que, com sua capacidade de crescer em toda parte, deveriam ser o apogeu da tecno-hegemonia americana. O plano funcionou, mas só inicialmente. Então o Vale do Silício descobriu que os mais próximos aliados dos EUA financiavam com sucesso concorrentes locais à expansão global das gigantes tecnológicas americanas.

 

Veja a Uber: suas ambições globais foram contidas pela Ola na Índia, DiDi na China, 99 no Brasil, Grab no Sudeste Asiático e Yandex Taxi na Rússia. E, com exceção da Yandex, todos os concorrentes – incluindo a própria Uber – foram fundados pelo SoftBank do Japão e incluídos em seu Vision Fund.

 

Este reúne o dinheiro dos mais próximos aliados dos EUA, da Arábia Saudita aos Emirados Árabes Unidos. Quando a Uber se viu torrando dinheiro em níveis astronômicos, fez um acordo com o SoftBank.

 

A ascensão da China contestou muitos outros mitos além da tecno-hegemonia americana. Padrões tecnológicos antes neutros – como o 5G – foram subitamente submetidos a uma feroz contestação, com Pequim exigindo regras favoráveis a seus próprios campeões.

 

Além disso, as ambições globais da Huawei e da ZTE e o tremendo crescimento de outros atores chineses como Tencent, Baidu e Alibaba também obrigaram Washington a fazer o impensável: exercer o poder duro, tornando visível sua hegemonia.

 

Assim, vimos movimentos como o veto por Trump da fusão Qualcomm-Broadcom, a quase letal ruptura da ZTE e o controverso memorando da Casa Branca sobre nacionalizar a rede 5G dos EUA. Poderíamos, é claro, supor que tudo isso é apenas uma afirmação da superioridade de Washington. Talvez.

 

Privados dos mitos fundadores, os EUA não acharão fácil convencer outros países a deixar suas indústrias serem perturbadas pelas firmas tecnológicas americanas. Ou abandonar o desenvolvimento de suas próprias capacidades de IA. Ou aceitar os dispositivos, inseridos em tratados comerciais, que exigem o livre fluxo de dados de servidores locais para os dos EUA em nome de uma internet única e global.

 

Os limites da tecno-hegemonia americana ficaram evidentes para Barack Obama, que elevou a aposta sobre a mitologia da “liberdade da internet” estadunidense, enquanto tentava conter a expansão da China no âmbito do regime comercial global liderado pelos EUA.

 

Graças a Trump, essa mitologia deixou de existir. Ele também ameaça a supremacia tecnológica dos EUA de outras maneiras – corta verbas de pesquisa, restringe a imigração (muito necessária na indústria tecnológica) e até impede o desmonte imediato da ZTE chinesa na esperança de ganhar alavancagem nas negociações.

 

Os EUA pós-Trump não voltarão ao manual de Obama, porém; então será tarde demais para contestar a ascensão da China. A provável estratégia de Washington será continuar a desafiar a própria ordem global que veio a sabotar as ambições de expansão do Vale do Silício, enquanto abraça uma posição mais assertiva contra Pequim e pune seus aliados por contar com as gigantes tecnológicas chinesas.

 

Pelo menos, quando a Guerra Fria da tecnologia irromper para valer, não ficará tão claro quem representa os verdadeiros interesses do capitalismo global – e quem os de seus adversários. 

 

The Observer, 22/06/2018

https://www.cartacapital.com.br/revista/1008/hegemonia-digital-dos-EUA-esta-com-os-dias-contados

 

https://www.alainet.org/es/node/193670?language=es
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