Um outro Napoleão para os nossos juízes

14/05/2018
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Constituição Federal de 1988
Foto: Reprodução
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Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

Preâmbulo da Constituição Federal de 1988

 

 

O ativismo do Poder Judiciário tem suscitado nos meios políticos e jurídicos mais esclarecidos de todo o espectro político uma discussão essencial, para nos levar a um caminho de compromisso democrático, visando contornar a crise institucional que nos assola e assim recuperar o espaço da política como espaço de interlocução, disputa e confronto, para redefinir os rumos do país. A discussão a que  me refiro versa sobre a “ideologia dos Juízes”, como se nós não apreciássemos esta questão, também, a partir da nossa ideologia, tomada esta como “visão de mundo”, conjunto de ideias e conceitos através das quais abordamos nosso cotidiano e definimos as nossas estratégias de vida. Refiro-me à questão da ideologia, portanto, não como “falsa consciência”, mas como consciência possível, pela qual instauramos as nossas definições sobre a existência, através da “práxis”, que é composta, tanto do senso comum, do bom senso, assim como dos elementos culturais e econômicos, que vão impregnando os nossos comportamentos.

 

No espaço da política, o exercício prático da ideologia – a ação política – é informado por esta “visão de mundo”, que deve se reportar aos valores perseguidos pela facção particular que o indivíduo integra. Ele pretende que a sua “visão” seja representativa dos interesses mais universais da sociedade, ou seja, é o “particular” querendo dizer à sociedade que o melhor para ela, é esta proposta “que tenho”, que será melhor para a “maioria”, que significa -no concreto- o universal pela aferição democrática. Os valores pelos quais, portanto, a sua ideologia se realiza, são buscados no seu programa de partido, nos conteúdos éticos e morais eleitos pela  facção, que estão informando o seu modo vida. A ideologia dos Juízes só pode partir de outros pressupostos, já que eles “presentam” (são) a neutralidade formal do estado, que deve estar acima das facções – não acima da Política –  só que o apoio para suas escolhas morais e políticas estão na Constituição e não nos programas partidários ou de facção.

 

O ilustre e culto ministro Barroso, no voto que proferiu sobre a manutenção, ou não, da prisão do Presidente Lula, alegou que estamos num processo de “mutação constitucional” e que, em função da  “luta contra a corrupção”, que abrange os interesses de toda a sociedade, devemos construir outros elementos para a interpretação constitucional, em função do clamor publico e das disparidades na aplicação da Lei Penal. Estes pressupostos do Ministro estão cobertos” de razão, pois assim se constrói a “prudência”, nas decisões mais importantes da Suprema Corte, que vão influir sobre o Direito de toda uma época.

 

O que ele erra, e o faz redondamente – o que é arbitrário e excepcional – é que ele busque os valores que vão informar a sua interpretação, na sua visão particular de mundo, na sua ideologia, que é elemento externo à Constituição, como se ele fosse “parte” no julgamento, não a “presentação” da neutralidade formal do Estado, que está abrigada no seu Preâmbulo da Constituição, onde está escrito, de maneira clara, um comando explícito, de caráter normativo e programático, para a interpretação de toda a Carta e, principalmente dos Direitos Fundamentais, que seguem e dão sentido ao próprio Preâmbulo.

 

O livro de Carlos Maria Cárcova, “A Opacidade do Direito”, (LTR, 1988, SP) recobra uma atualidade impressionante, para a compreensão do drama que atravessa o nosso Estado de Direito e as nossa instituições republicanas.  A importante contribuição deste jurista argentino, ao entendimento do funcionamento dos mecanismos de distribuição da Justiça – cujo exercício repousa na “cabeça” dos Magistrados ao aplicar a lei – está expressa na função que exerce o “desconhecimento” da legalidade -que contrasta com o comando de que  todos são iguais perante a lei (desconhecida de milhões), “tornando inescusáveis o erro e a ignorância”. Esta realidade fáctica torna o Direito “opaco”, na sua capacidade regulatória cotidiana. Nesta opacidade do funcionamento ordinário do sistema jurídico, porém, contraditoriamente, é que o Direito promove uma certa coerência para mediar as controvérsias, para por a sociedade em condições de funcionamento plausível e, assim, induzir a maioria a aceitar valores que lhes permitem viver em comunidade.

 

É que, para ser funcional, o Direito precisa ser “opaco”. Não é mero erro do Constituinte, portanto, este véu de encobrimento, mais ou menos suave, que promove a sua falta de clareza sistêmica, mas um recurso para a flexibilização da razão, que também tem os seus limites na estrutura da própria Carta, ou seja, no seu Preâmbulo. Como compatibilizar – por exemplo – o princípio da igualdade formal com o desconhecimento que as pessoas tem dos seus direitos ou das suas obrigações?  Ou como compatibilizar o direito de acesso à Justiça, igual para todos, com as brutais diferenças reais de acesso, originárias da condição social de cada cidadão?

 

A opacidade – gêmea da interpretação – é que salva o sistema, mas o faz com as mesmas limitações humanas e a falta (ou a presença) da coerência, com que vivemos as nossas vidas. Finalmente, como fazer o Sistema de Justiça funcionar, com um mínimo de coerência e sem manipulações graves, considerando as diferentes ideologias dos Magistrados, que refletem as diferentes visões de mundo que perpassam a sociedade?

 

Lembra Cárcova que Destutt De Tracy, um dos prováveis criadores do termo “ideologia”,  intelectual originário da nobreza, preso durante o Terror (defendia que Robespierre “representava uma ameaça à herança iluminista”), depois de libertado em 1794 -com o fim do Terror- passa a ocupar posição de destaque na nova situação política da Revolução. Com a criação do Instituto Nacional da França, cujo curso de “Ciências Morais e Políticas”  fica sob sua direção, desenvolve a “Ciência das Ideias e das Ideologias”, que seus expoentes concebem como “ciência primeira”.

 

De Tracy e seus liderados, da sua posição de poder na nova ordem, publicam, então, os seus “Éléments d’Idéologie”, em quatro volumes, a partir do qual são acusados de “ideólogos!”, invectiva pejorativa que Napoleão promove contra o grupo, sinonímia de “confusos”, sem substância, fugazes do mundo real,  perigosos subversivos, consequentemente, de acordo a visão de mundo (a ideologia!) do Primeiro Cônsul.

 

Assim Napoleão, já Imperador, se torna o Juiz do Juízes e a partir da sua ideologia – mais tarde configurada politicamente como mãe do republicanismo francês – constrói a futura arquitetura social e jurídica legada pela Revolução e unifica o sentido da República, através do Código Civil, que vai orientar a ideologia dos integrantes do seu Poder Judiciário. Na verdade, a “opacidade” do direito moderno – a partir daí – só desaparece em momentos de crise, com a utilização superlativa de mecanismos de exceção-, nos quais a norma é interpretada pelo mais forte, politicamente, seja pelas ideias que lhe motivam (mais adequadas ao momento histórico), seja porque quem detém o poder, o faz através de mecanismos externos à razão (como “clamor” público), seja este produzido de forma  manipulatória – como faz a mídia oligopólica –  seja pelo simples espírito de turba, produzido por um certo tipo de agitação política.

 

O Terror, ao mesmo tempo que desnudou a Revolução pela barbárie e também criou a República como virtude, igualmente mostrou que a essência dos novos processos de dominação, que se aproximavam, necessitavam de um sofisticado sistema de mediações – jurídicas e políticas – para unificar a sociedade em torno da ideia de um tipo de nação e de um certo tipo de democracia. A nação permaneceu imperial e colonial, mas exportou a sua essência mais violenta para as colônias e a democracia política – internamente –  gerou o Estado Socialdemocrata, que vem sendo dissolvido, paulatinamente.

 

A referência dos Juízes, os grandes e os minúsculos, que suportaram todo este processo em França,  foi o repto ideológico devidamente disfarçado de Napoleão, para impor a sua ideologia racional e o seu sentido de nação. A referência dos nossos Juízes – como não temos nem queremos um Napoleão retardatário em nosso país – não pode ser a sua consciência imediata, tingida pela sua visão ideológica pessoal. Como eles são a neutralidade formal do Estado, para não serem facciosos no sentido mais extremo da política vulgar, só podem buscar os novos elementos para interpretar as mutações em curso, no Preâmbulo da nossa Constituição. É o que nos resta de melhor, do legado da Revolução Francesa: uma espécie de Napoleão por escrito, pactuado no processo Constituinte, que abriu, com a clareza de um sol nada opaco, a luz da nossa Carta de 88.

 

- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

Maio 13, 2018

https://www.sul21.com.br/colunas/tarso-genro/2018/05/um-outro-napoleao-para-os-nossos-juizes/

 

https://www.alainet.org/es/node/192851
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