Imagine

24/08/2017
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Foto: Wikimedia Commons e PR
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Imagine que você é os Estados Unidos: país formado por refugiados religiosos que, ao difundirem seu novo projeto, construíram sua lógica de país por meio de genocídios de indígenas, tráfico e escravidão de pessoas africanas.

 

A expansão sem limites e escrúpulos obedecia a um único princípio - o espírito capitalista acumulador e em nome de um Deus - que premiaria os que “trabalham” e são mais bem sucedidos dentro deste sistema.

 

Você divide sua sociedade entre winners e losers e baseia sua expansão sem limites em nome de um mito: a “democracia americana”, onde todos seriam iguais, desde que sejam winners, é claro. Os losers não merecem piedade.

 

O mito americano da “democracia”, assim como a língua inglesa (dos colonizadores) e o dólar se tornam os padrões mundiais, absorvidos pelos losers de todo o mundo. Os winners americanos baseiam sua vitória essencialmente em duas grandes indústrias: o petróleo e as armas.

 

Por isso, o país, baseado na expansão capitalista eterna e divina, sempre está em busca do poluente e escasso petróleo, e na multiplicação de armas, que para existir devem sempre ser descarregadas em alvos humanos, muito mais lucrativos.

 

Agora imagine que você é o Brasil. Imenso país, que como diria Darcy Ribeiro (um de seus melhores intérpretes) é uma “nova Roma lavada em sangue mestiço e assentada em uma das mais belas planícies da face da Terra”, que também foi formada pelo genocídio de milhares de civilizações indígenas que aqui viveram em harmonia com uma rica biodiversidade, em bases comunitárias e em cosmologias mágicas e cada vez mais perdidas.

 

Também ocupado por degredados de várias origens e comandado por oligarquias que tinham como objetivo devastar e explorar os recursos naturais finitos, mas abundantes, explorando a mão-de-obra indígena sobrevivente, e depois traficando e escravizando pessoas africanas que traziam consigo outras culturas e cosmologias.

 

Este Brasil também continuou baseando seu sistema neste “moinho de moer gente”, para escoar suas riquezas naturais para o estrangeiro, com pequenos agrados às suas oligarquias, que sonham em ser elites estrangeiras, apesar de terem que conviver com esses escravos que teimam em lhe chatear a vida. Mais ultimamente, sem mesmo atingir algum padrão republicano, adota de maneira artificial o modelo de desenvolvimento e de política estadunidense.

 

Sem mudar sua estrutura oligárquica, o Brasil adapta seu modelo de democracia americana, importando alguns de seus mitos de desenvolvimento, como a busca pelo petróleo (que na abundância de sua natureza, jorra de seus mares), e a indústria de armas, que abastece as suas polícias e seu crime organizado.

 

Sem projeto próprio do país, esse Brasil vaga pelo mundo oferecendo sua natureza cada vez mais escassa (transgênicos e petróleo), e para isso continua dizimando gente. De noite e de dia, nas favelas, avenidas, praças e periferias.

 

Agora imagine que você é a Venezuela, país nascido de um sonho de liberdade de nativos mestiços da opressão, que propunham um novo sistema político emancipatório que unisse as antigas terras e civilizações exploradas pela colonização e escravidão de indígenas e africanos de diferentes origens e culturas.

 

Após séculos do mesmo conhecido sistema de extração de recursos naturais e escravidão do povo, uma tentativa de nova república dos trópicos encontra em seu solo amazônico, riquíssimo em diversidade e banhado pelos mares caribenhos, o novo ouro negro, abundante e cada vez mais valorizado.

 

Nestes novos tempos de capitalismo e de democracia americana, suas elites, assim como as do resto do mundo, adotam esse modelo de desenvolvimento, baseando-se unicamente na exploração e exportação do petróleo como forma de sustentar seus luxos, e assim como no Brasil, se lixam para a massa da população mais pobre, que superlotam suas cadeias e tentam sobreviver em suas favelas e cidades caóticas.

 

Seu exército, assim como todos, é baseado na ideia nacional de defesa de suas riquezas naturais (para que seu capitalismo a explore mais facilmente e sustente o país com base na falida combustão de materiais fósseis). Sua população, assim como a maioria do Sul, ainda sobrevive ignorante e manipulada por gregos e troianos.

 

A internet e os novos “poderes brandos” trazem à baila novas formas de manipulação e novos jogos de poder, mobilizando partes de sua população a favor e contra projetos fracassados, ambos baseando-se no monopólio do petróleo (e na sua venda principalmente para os norte-americanos) como saída para o seu bem viver.

 

Tanto o Brasil como a Venezuela, ainda explorados em seus bens materiais, continuam objetos de elites (que usam tanto os projetos moderadamente inclusivos ou os eminentemente excludentes) para continuar dizimando a maioria de suas populações: mestiças, indígenas e afrodescendentes. A escravidão e o equivocado modelo de desenvolvimento extrativista continua ao Sul do Continente. Seja quem for o oligarca ou militar de plantão.

 

Quanto aos Estados Unidos, país difusor e também vítima de seu modelo político e de desenvolvimento, segue em sua decadência interna, aumentando os muros de seus guetos internos e externos, deixando veteranos de guerra, doentes mentais e físicos em suas calçadas, indígenas alcoolizados e afrodescendentes fechados em seus mundos sem assistência social e médica.

 

Essa massa da população norte-americana, que sente o fracasso desse modelo em sua pele, como forma de protesto elege o pior de seus comandantes, que veio para implodir o sistema desde dentro. Ao radicalizar os erros do petróleo e das armas, além do discurso de winners e losers, Trump despede do mundo toda possibilidade de reforma e sobrevivência do modelo de democracia americana, que no fundo sempre foi elitista, racista e excludente.

 

Tanto os Estados Unidos, quanto o Brasil e a Venezuela são vítimas de modelos decadentes de conformações políticas, econômicas e sociais que não se sustentam. As saídas tradicionais de esquerda e de direita, baseadas no petróleo e no extrativismo agrícola em grande escala estão ultrapassadas. É urgente que esse modelo caia de vez de maduro, seja qual for o discurso que se baseie.

 

Novas formas de políticas já surgem no subterrâneo desse mundo carcomido. Somadas às crises ambientais e políticas que se espalham pelo antigo mundo “liberal” e “democrático”, ressurgem tipos de questões e vozes que nunca nem sequer apareceram nesse debate: as questões de gênero e de raça, que trazem consigo uma nova visão de mundo, revolucionam as formas masculinas que conformaram os modelos políticos, ambiental e de desenvolvimento até hoje. 

 

Agora imagine um mundo que não se baseie na indústria do petróleo e nem nas armas, que pense seu progresso a partir do estudo sério e detido de novas matrizes (limpas) de energia, na preservação e no conhecimento biotecnológico aplicado nos territórios mais ricos de biodiversidade do mundo, como as Amazônias de Brasil e de Venezuela.

 

Um mundo em que os saberes e as diferenças dos povos indígenas e das culturas africanas sejam valorizadas e colocadas em seu grau de importância. E onde militares e guerras tradicionais e/ou brandas sejam mutiladas para que a solidariedade internacional seja posta em prática, de maneira local, descentralizada e orquestrada harmonicamente.

 

Muito mais do que Mercosul (que Deus o tenha), projetos ambiciosos e inclusivos de América Latina, ou mesmo de União Pan-Americana, já foram sonhados por muitas gerações e podem ser reimaginados e reinventados. Pensar a história atual com a cabeça antiga não nos vai fazer sair dessa, seja aqui, nos Estados Unidos ou na Venezuela. Imagine.

 

- Fernando Santomauro é membro do GR-RI, é doutor em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e autor do livro “A atuação política da Agência de Informação dos Estados Unidos no Brasil (1953-1964)”, Prêmio Capes de Tese 2016, nas áreas de Ciência Política e Relações Internacionais.  

 

24/08/2017

https://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/imagine

 

https://www.alainet.org/es/node/187620
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