Área Indígena Morro do Osso:

O direito a terra no meio urbano

01/08/2006
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Em 19 de julho, Tribunal Regional Federal da 4a. Região decidiu pela permanência dos Kaingang no Morro do Osso, em Porto Alegre e não aceitou o pedido de reintegração de posse requerido pela prefeitura, por unanimidade Em 09 de abril de 2004, numa Sexta-Feira Santa, um grupo de famílias Kaingang que morava em bairros da periferia de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, retomou o Parque Natural do Morro do Osso, que está situado numa área nobre da capital gaúcha. As famílias justificaram a ação com o argumento de que o referido parque foi criado sobre uma área de ocupação tradicional indígena e que a própria prefeitura de Porto Alegre, em seu site na internet, divulgava informações turísticas de que ali existem sítios arqueológicos e cemitério indígena, o que caracteriza a área como sendo, de fato, de ocupação indígena. Os Kaingang organizaram-se e decidiram fazer a retomada tendo em mãos as informações materiais oriundas de pesquisadores e disponibilizadas para a população pela prefeitura, bem como as informações espirituais da pajé da comunidade que recebia, em sonho e visões, as mensagens dos seus antepassados orientando sobre o local que deveria ser ocupado pelo grupo. A retomada gerou perplexidade entre as autoridades municipais, no meio acadêmico, entre ambientalistas e entre a população que vive no entorno do Morro do Osso, predominantemente de classe média alta. A região é de rara beleza porque está circundada pelo Rio Guaíba e ainda existe no local vegetação típica da Mata Atlântica. Uma área nobre onde vivem os "nobres" da capital gaúcha. A mídia local repercutiu intensivamente o que chamaram de "invasão de índios Kaingang ao Parque Natural Morro do Osso". E diziam que a área de preservação poderia sofrer conseqüências irreversíveis porque os índios certamente desmatariam o que restava de árvores e acabariam com os bichos, em especial o bugio ruivo. Em menos de uma semana da retomada ocorreu o despejo dos índios de dentro do parque. O despejo foi realizado sem decisão liminar, uma vez que prefeitura impetrou a ação na Justiça Federal que, na época, alegou não ter competência para decidir sobre o caso, por ser um conflito envolvendo interesses do município. A Justiça Federal encaminhou que a prefeitura deveria agir e fazer a remoção dos índios porque o parque era propriedade municipal, mas que ela mesma deveria arcar com as conseqüências de sua ação. Os Kaingang foram agredidos pela Guarda Municipal, que estava acompanhada da Polícia Militar. Foram centenas de policiais para retirar algumas famílias, que na hora do despejo se reduziam as poucas mulheres e crianças, porque os homens estavam em reunião com autoridades na Câmara de Vereadores. Depois do despejo, as famílias se fixaram em frente a um portão secundário do parque, do lado de fora dele, e dali não mais saíram. A prefeitura, através de seus agentes, levou os pertences dos indígenas em um caminhão para um depósito da Secretaria do Meio Ambiente do município. Os pertences eram roupas, colchões, utensílios de cozinha (panelas, copos, pratos, fogões) e os alimentos que tinham guardados. Nos primeiros dias da retomada, os Kaingang constataram que grande parte da área alegada como sendo de preservação ambiental estava sendo delimitada e loteada para a construção de um condomínio de luxo. Foram feitas imagens e fotografias dos marcos que delimitavam as ruas e o local da construção dos prédios e o fato foi denunciado ao Ministério Público. Caía por terra a argumentação de que os índios não poderiam ocupar o parque porque este se destinava a preservação ambiental. De acordo com as informações disponibilizadas pelos Kaingang e depois confirmadas por moradores, que eram contra a construção de novos condomínios na região, a administração municipal da época, através da Secretaria de Meio Ambiente, havia concedido a autorização para que o local se destinasse à especulação imobiliária. Desde então, foi desenvolvida pela prefeitura, por moradores e pela mídia local uma massiva campanha contra os Kaingang. Mas estes se mantiveram coesos e firmes na decisão de permanecer lutando pela demarcação da área de ocupação tradicional. Abriu-se, depois da retomada das terras, uma discussão nova no indigenismo brasileiro: os índios têm direito a demarcação de terras mesmo que estas estejam situadas dentro de grandes cidades, como é o caso de Porto Alegre. E o Governo Federal deve atender esta população com políticas de assistência e proteção. No entanto, o Governo Federal, através da Funai, tem se recusado em reconhecer os direitos desta população. Em função disso, os índios que vivem no meio urbano são duplamente marginalizados: por parte da Funai, que não os reconhece, e por parte dos municípios e estados, que alegam que a responsabilidade pela assistência é da União. A população indígena que vive nos centros urbanos é bastante numerosa. De acordo com o censo do IBGE de 2000, ela é quase a metade da população indígena do Brasil, ou seja, mais de 350 mil pessoas. Para a Funai, os índios somente serão atendidos e assistidos se estiverem ocupando terras que estejam fora das cidades. A luta dos indígenas, de diferentes etnias, desencadeada nas cidades pelo direito à terra e por condições dignas de trabalho, respeito e assistência é, na atualidade, um dos desafios mais significativos e importantes para o indigenismo brasileiro. Muitos setores da sociedade têm se preocupado com esta questão, de modo especial o Ministério Público Federal, universidades, através dos departamentos de antropologia e educação, entidades de apoio como o Cimi, Comin, Cáritas, movimentos de Direitos Humanos, algumas autoridades municipais. Já os órgãos federais, especialmente a Funai e a Funasa, têm pecado pela omissão em relação aos indígenas que vivem nos meios urbanos: ou porque não os reconhecem enquanto povos indígenas, ou porque estes não estão situados em áreas reconhecidas como terras indígenas. Com estas alegações, os órgãos não prestam a assistência adequada e diferenciada determinada pela Constituição Federal. A situação no Morro do Osso ajuda a alimentar a reflexão acerca desta demanda indigenista e firma a necessidade de que seja construída uma política destinada à população indígena que habita o mundo urbano. Áreas terão de ser reservadas e demarcadas para que esta população possa residir e viver dignamente, possa exercitar e cultivar as suas formas próprias de organização política e vivenciar a cultura, os costumes, as crenças e tradições. A mais importante discussão que o Morro do Osso traz à tona é acerca da possibilidade de que terras, mesmo ocupadas por grandes cidades, possam ser identificadas pelos índios como sendo de ocupação tradicional e que, portanto, estas devem ser reconhecidas e demarcadas pelo poder público. A Constituição Federal, no seu Art. 231, não faz distinção entre uma terra tradicional na cidade ou aquelas tradicionalmente ocupadas distantes dos centros urbanos. A CF diz que as terras de ocupação tradicional devem ser demarcadas. O Morro do Osso remete também para a reflexão sobre o significado místico da ocupação tradicional e de como os povos indígenas a interpretam e a efetivam ao longo do tempo. Esta ocupação não se restringe à moradia, ao local de plantio, ao local de permanência. A ocupação se faz também através da relação com o sagrado, onde se desencadeia a comunicação com os ancestrais eternizados na história de luta e resistência dos povos e comunidades e acima de tudo porque estão presentes onde existem áreas, terras e territórios tradicionais. A tradicionalidade está para além do nosso tempo, pois se estrutura na ancestralidade, na cosmovisão dos líderes religiosos e porque está e sempre esteve nos locais do culto, do encontro e do contato com o mundo religioso, bem como nos locais onde foram enterrados os mortos, nos locais de visitações antigas, de coleta e de migração, mesmo que estes estejam sobrepostos, ou circundados por cidades, parques, rios e lagos próximos ou nos centros urbanos. Com a perspectiva de assegurar a terra tradicional no mundo urbano, os Kaingang do Morro do Osso enfrentam batalhas intermináveis junto aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Contra os indígenas foram impetradas ações de despejo, de denúncias de maus tratos às suas crianças, de serem destruidores do meio ambiente. Foram também desenvolvidas campanhas em que classificam os indígenas como sendo bêbados, violentos, traficantes e sujos, tudo para amedrontar a população branca e rica do bairro onde os Kaingang estão residindo e aguardando a demarcação de sua terra. Vitória jurídica A Funai, diante de tudo isso, é negligente e não aceita sequer discutir a questão indígena nos meios urbanos. No entanto, uma decisão da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4a. Região, na sessão do dia 19/7/2006, pode obrigar a Funai a uma mudança de atitude, uma vez que o referido Tribunal deu provimento ao recurso do Ministério Público Federal, mantendo os índios Kaingang no Morro do Osso e negando o pedido do Município de Porto Alegre, indeferindo o mandado de reintegração de posse requerido pela prefeitura. Por unanimidade, a Turma confirmou a decisão liminar proferida pelo relator do processo, o juiz federal Márcio Antônio Rocha, convocado para atuar como desembargador no TRF-4, que havia suspendido, em dezembro de 2005, a ordem de imissão na posse concedida ao município. Depois que os Kaingang ocuparam o Parque Natural Morro do Osso, o Município de Porto Alegre ajuizou, em junho de 2005, uma ação de reintegração de posse, alegando risco de dano ambiental. Segundo os procuradores do município, a área possui vegetação remanescente da Mata Atlântica, sendo um direito de todos desfrutar do local. À época, o juiz da Vara Ambiental, Agrária e Residual de Porto Alegre concedeu liminar para o município ordenando a desocupação do terreno e dando prazo para a retirada da comunidade indígena. A decisão de primeiro grau definiu que os índios deveriam ser transferidos para um terreno a ser cedido pela Prefeitura, de 10 hectares, no bairro Canta Galo, região metropolitana da capital gaúcha. A comunidade Kaingang também ajuizou ação requerendo a posse da área de mais de 300 hectares como de ocupação tradicional indígena, porque o local onde é hoje o Parque Natural do Morro do Osso já foi ocupado por seus antepassados. Alegam ainda, que se sustentam dos cipós existentes no local, com os quais confeccionam seu artesanato. Após analisar o recurso do MPF, o juiz Márcio Rocha proferiu em seu voto que "a remoção programada não leva em conta qualquer estudo antropológico, estudo de sustentabilidade de permanência, de adequação etc., ou qualquer aspecto de defesa dos interesses da comunidade kaingang, pois a relocação não é feita para uma área tradicionalmente ocupada pelos índios, sustentável e adequada, mas para qualquer área, desde que não seja o Morro do Osso". Para o juiz Rocha, "não são as comunidades indígenas que devem aguardar nossos processos de ocupação de suas terras, nós é que devemos aguardar os resultados de nossos próprios processos administrativos e judiciais para afirmar que as comunidades não apresentam os direitos que alegam". Quanto à alegação da Prefeitura de Porto Alegre de que estaria havendo danos irreversíveis ao meio ambiente, o magistrado rebateu: "em termos de política preservacionista, sabe-se, hodiernamente, quanto a comunidades potencialmente danosas, que a retirada pura e simples não é medida mais acertada, mas sim o comprometimento de todos com a causa ambiental". (ver Proc. nº 2005.04.01.052760-4/RS - com informações do TRF-4). Depois desata decisão da 4ª Turma do TRF da 4ª Região, que significa uma avanço magnânimo na luta da comunidade indígena do Morro do Osso, cabe ao Poder Executivo os encaminhamentos pertinentes para a constituição do GT de identificação da terra e implementar uma política de assistência e proteção à comunidade e acima de tudo reconhece-los como merecedores de direitos e aceitar a sua luta como legítima. Porto Alegre (RS), 02 de agosto de 2006. - CIMI Regional Sul - Equipe Porto Alegre (RS)
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