Wojtyla e Dorothy

04/03/2005
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Há muito em comum entre o papa João Paulo II e a irmã Dorothy Stang, assassinada pelo latifúndio no Pará: católicos, consagrados a Deus, discípulos de Jesus. A diferença é que ele se depara com o espectro da morte, enquanto ela agora vive na esfera do amor divino. E ao contrário da missionária, Karol Wojtyla chegou à mais alta hierarquia de poder, não só na Igreja católica, mas também estatutariamente comparada às demais instâncias de governo na Europa: o papa é o único monarca absoluto do Velho Continente. Certa vez Fidel confessou nutrir o sonho de ver os comunistas seguirem o exemplo das religiosas que, em Havana, trabalham em hospitais. Diante da minha perplexidade, explicou que elas cuidam dos enfermos com dedicação, tratam a todos por igual, não se pautam pelo horário de serviço e nem se queixam diante das dificuldades. Fidel percebeu algo que Péguy já havia assinalado em 1914, ao afirmar que o futuro da política é a mística. Malraux faria eco a seu conterrâneo pouco antes de morrer, ao declarar que o século XXI seria místico ou estaria fadado à barbárie. O que significa isso? Devem os políticos ser religiosos? Longe de mim a confessionalização da política! Não se trata de religiosidade, mas de espiritualidade. Embora ateus, os budistas, por exemplo, são profundamente espiritualizados. É esse mergulho no Ser, nominado Deus por quem crê, que faz o místico. Nele o inconsciente transborda no consciente, como diagnosticou Jung. E as “coisas deste mundo” passam a ser relativizadas quando se vive a paixão pelo Transcendente. Irmã Dorothy desapegou-se das três tentações que direitizam militantes de esquerda: o poder, o ter e o prazer. Eis os ingredientes que, juntos, fazem um corrupto. O poder da freira de Anapu espelhava-se no de Jesus, explicitado no capitulo 22 de Lucas: servir aos mais pobres. Abriu mão do ter para ser, imbuída de valores éticos, subjetivos, normatizadores de sua prática solidária às vítimas da opressão. Seu prazer, a conquista da dignidade e da terra por agricultores excluídos da cidadania. Karol Wojtyla abriu mão do ter e do prazer, mas os caminhos de Deus o levaram ao poder. Agora, doente, afetado pelo mal de Parkinson, é vítima da papolatria vaticana. Por que não teria ele o direito de terminar seus dias em paz, livre do peso de governar uma instituição tão vasta e complexa como a Igreja católica? Por que não aplicar ao bispo de Roma a lei 401 do Código de Direito Canônico, que obriga todos os bispos a renunciarem ao completar 75 anos? Talvez convenha à Cúria Romana essa acefalia que lhe permite dirigir a Igreja sem intromissão papal. Queira Deus que não se repita com Wojtyla o que fizeram com o generalíssimo Franco, ditador da Espanha por 36 anos e, enfermo, submetido a uma seqüência de transplantes para que se lhe prolongasse a vida ao máximo. Ou com Tancredo Neves, rendido a cirurgias quase cotidianas, como se a vontade política pudesse vencer a inexorabilidade da morte. Em 1294, o papa Celestino V renunciou. Seu testemunho de desapego ao poder teve a recompensa da canonização, que o faz figurar entre os santos. Mas, quantos renunciam ao poder? Não falo de papas, e sim de políticos, diretores, gerentes, chefes, síndicos. Ou quantos fazem do poder serviço e não uma forma de ascensão sobre os demais mortais? Voltando à irmã Dorothy, a prisão de seus assassinos não deve ser motivo de comemoração, mas de preocupação. Porque os mandantes, acostumados à impunidade, nada temem. Depois dela, foram mortos dois trabalhadores rurais em Anapu e um sindicalista em Parauapebas. José Serafim Sales, o Barrerito, pistoleiro condenado a 25 anos por tirar a vida do sindicalista Expedito Ribeiro de Sousa, fugiu da penitenciária de Marabá, em 2000; Ubiratan Ubirajara, condenado a 50 pelo assassinato dos irmãos e sindicalistas Paulo e José Canuto, mortos em 1985, escapou da mesma penitenciária em 1995; Jerônimo Alves de Amorim, mandante do assassinato do sindicalista Expedito Ribeiro de Sousa, condenado a 19 anos, cumpriu dois em prisão domiciliar e estranhamente se beneficiou de indulto no início de 2004. Adilson Carvalho Laranjeira, ex-prefeito de Rio Maria, e o fazendeiro Vantuir Gonçalves de Paula, foram condenados em maio de 2003 pela Justiça de Belém a 19 anos e dez meses, como mandantes do assassinato de João Canuto. Recorreram da sentença perante o Tribunal de Justiça do Pará e estão em liberdade. Em setembro passado, o Tribunal de Justiça do Estado negou, por unanimidade, o Recurso de Apelação. Adilson Laranjeira e Vantuir de Paula interpuseram, em novembro, recursos no Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Até hoje a admissibilidade dos recursos não foi julgada, e os autos se encontram ainda no Tribunal de Justiça do Estado em Belém, quase dois anos depois da sentença condenatória. Há pouco Vantuir participou, a convite do novo prefeito de Rio Maria, da mesa apuradora na eleição do novo presidente da Câmara Municipal. É hora de o governo e a Justiça darem um basta na impunidade se não quiserem ver seus mandatos e suas togas borrifados de sangue inocente. E promoverem o que a nação exige há 150 anos, desde que o Império decidiu legalizar a posse da terra: a reforma agrária. * Frei Betto é escritor, autor de ³Treze Contos Diabólicos e um Angélico² (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/111508
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