O rosto feminino da AIDS

30/11/2004
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Impressionante relatório das Nações Unidas nos revela que o vírus HIV e a AIDS por ele gerada tem hoje um rosto tristemente majoritário: o da mulher jovem. Antes identificado preferencialmente com outros grupos de risco, como os hemofílicos e os homossexuais, o vírus HIV afeta hoje mulheres na plenitude da vida, da atividade sexual, da fecundidade e da possibilidade de procriar em quantidades assustadoras. Dos mais de 37 milhões de adultos infectados pelo HIV, elas são quase metade, passando a ser mais do que metade em regiões extremamente pobres do planeta, como a África Subsaariana. A feminização da pobreza, dado que há mais ou menos uma década vem ocupando a atenção dos estudos de gênero e mostra que a pobreza no mundo tem rosto feminino, é agora acrescida pelo terrível dado da saúde. Vivemos não apenas a feminização da pobreza, mas também a feminização da terrível doença infecto-contagiosa que ataca a imunidade dos seres humanos e vem fazendo milhares de vítimas em todos os cantos do mundo. A diretora executiva do UNAIDS, programa conjunto das Nações Unidas para HIV/AIDS, chama a atenção para o fato de que as regiões mais afetadas por esse fenômeno são também as mais carentes em termos das fundamentais necessidades humanas, como saúde, educação, qualidade de vida. Nestas regiões, especialmente na África, impressiona a baixa faixa etária das mulheres contaminadas, que têm entre 15 e 24 anos. O que leva mulheres tão jovens, na melhor fase de suas vidas, a se exporem à ameaçadora e letal doença que se tornou o fantasma das gerações de hoje? Parece ser o fato de que neste triste quadro a condição sócioeconômica e o gênero andam juntas. Nas regiões que apresentam números altos e impressionantes como os que comentamos acima, a pobreza levanta para a mulher uma barreira intransponível no acesso à educação e ao emprego. Sem oportunidade de sequer alfabetizar-se, sem acesso à educação superior e mesmo secundária ou primária, só resta à mulher o espaço doméstico, onde será praticamente refém do marido, do qual dependerá totalmente para sobreviver. Essas mesmas mulheres jovens e cheias de sonhos românticos como todas as suas parceiras de gênero e condição terão muitas vezes que sofrer e enfrentar caladas um casamento não mais desejado, marcado por brutalidades, violências e dominações de toda espécie. Por não poder sair de casa para não correr o risco de morrer de fome, a mulher tem que suportar o sexo não mais querido ou desejado, sem força para exigir que o parceiro ou marido use preservativos, já que dele depende para tudo. É assim que o homem que chega em casa alcoolizado ou trazendo a marca de muitas aventuras extraconjugais encontrará uma parceira temerosa e passiva, com quem continuará mantendo relações sexuais, as quais acabarão por contaminá-la de forma grave e irreversível. Ao lado desse quadro desolador, ergue-se outro ainda mais terrível. O relatório aponta para o fato de que mulheres em muito tenra idade, não casadas, estão contraindo o vírus HIV e adoecendo de AIDS transmitido por homens cada vez mais velhos. Delineia-se aí um panorama onde a prostituição, o tráfico de meninas, o turismo sexual, tão comum hoje em dia, não só na África, mas bem perto de nós, vai matando toda uma geração que é obrigada a vender o jovem corpo, feito para o amor e a maternidade para poder sobreviver. Os homens mais velhos, que pagam os favores das jovens meninas, vêm de uma vida dissoluta e deixam sua marca indelével naquele corpo usado para satisfazer o desejo efêmero em uma relação frustrante e violenta, que torna essas jovens mulheres mais vulneráveis ainda à infecção. Esse quadro triste e desalentador nos delineia uma humanidade cuja metade feminina, feita para amar, gerar, dar à luz, nutrir, alimentar e cuidar da vida está morrendo assolada pela doença que as forças da morte teimam em semear em seu corpo. Corpo criado por Deus aberto e hospedeiro do amor e da vida, sede da fecundidade e da fertilidade que garantem a continuidade da espécie. Corpo que agora nos aparece atacado e agredido ainda em tenra idade, impedido de florescer e desabrochar. Com esses recentes dados das Nações Unidas, o corpo feminino aparece com clareza como a maior das vítimas da injustiça aliada à violência, esses dois cavaleiros apocalípticos cujas foices afiadas ceifam vidas com apavorante eficiência. Assim como sem a mulher não há vida nova, crescimento da população, reposição generacional ou força de trabalho, assim também a vitimização da mulher pela injustiça, pela violência, pelas doenças letais pode comprometer seriamente o futuro do mundo e o sonho de Deus para este mesmo mundo. Que todas essas mulheres jovens que se vêem acometidas por situação tão deprimente possam voltar-se para Esse que é a única e verdadeira Fonte da Vida. Que o possam invocar com confiança e fé. Pois só n¹Ele encontrarão forças que lhes permitam enfrentar a situação em que se encontram aprisionadas, levantar a cabeça e encontrar uma saída: a saída para uma vida digna, que supere a pobreza, a violência, a doença. Só n¹Ele encontrarão a inspiração para construir um novo rosto feminino onde brilhe a vida, a esperança e o amor desabrochado em vida nova, fresca e sadia, que, como diz o grande poeta João Cabral de Melo Neto, infecciona a miséria. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
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