As relações do Brasil com o FMI

07/10/2003
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1. Como dissemos na edição do mês anterior, teremos uma oportunidade de compreender melhor o "enigma" do governo Lula ao observar como serão remodeladas as relações do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O acordo em vigor, assinado durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, terminará em novembro. Raciocinando pelos extremos, poderemos não renegociar nada, pondo fim a um período de cinco anos de monitoramento contínuo da economia brasileira pelo Fundo, ou aceitar um novo acordo em bases semelhantes ao anterior. Entre essas duas possibilidades, porém, há um amplo leque de opções intermediárias que neste momento parecem ser mais prováveis. O FMI diz que o Brasil não necessita de novo acordo, mas acrescenta que ouvirá com boa vontade qualquer proposta do nosso governo. Nossas principais autoridades, por sua vez, inclusive Lula e Antônio Palocci, confirmam que as condições atuais são favoráveis ao Brasil, que, também segundo eles, não necessita mais do dinheiro do Fundo. Mesmo assim, completam, só em fins de outubro, de maneira pragmática e não ideológica, decidirão o que fazer. "Passei parte da minha vida gritando 'não ao FMI'", diz Lula. "Agora sei que não se trata de nenhum bicho-papão. Negociaremos um novo acordo se isso for do interesse do Brasil." Tentaremos, neste texto, compreender as raízes dessa aparente indefinição de ambas as partes. Trabalharemos em torno de quatro aspectos: (a) a mudança do papel do FMI nos últimos vinte anos; (b) o modelo-padrão dos acordos com o Fundo; (c) a nova fase das relações entre o Brasil e o Fundo; (d) as propostas já divulgadas para uma nova negociação. 2. A mudança do papel do Fundo. Nos parágrafos finais da análise do mês anterior, disponível nesta mesma página, situamos alguns aspectos dessa questão, que agora retomamos do ponto em que paramos. O FMI é uma criação da Conferência de Bretton Woods, realizada no fim da Segunda Guerra Mundial. O sistema monetário criado ali previa que o dólar seria a moeda de referência internacional, com o Estado norte-americano garantindo sua conversibilidade em ouro, a uma taxa fixa. Entre o dólar e as demais moedas nacionais haveria um sistema de taxas de câmbio também fixas (ajustáveis segundo certos critérios). Nesse contexto, caberia ao FMI abrir linhas de crédito de curto prazo para países que experimentassem desequilíbrios externos (comerciais e de serviços), de modo a possibilitar que ajustassem seus balanços de pagamentos com um mínimo de prejuízo para os fluxos internacionais de comércio. Esse arranjo implodiu no início da década de 1970, quando os Estados Unidos decidiram retirar-se do tratado, anunciando o fim da conversibilidade dólar-ouro (tal decisão representou uma moratória da reserva norte-americana de ouro). Constituiu-se desde então um novo padrão monetário internacional, hoje em pleno vigor, também centrado no dólar, mas com moedas sem lastro e taxas de câmbio permanentemente flutuantes. Nesse novo contexto, em tese, havendo desequilíbrios nas relações comerciais e de serviços de um país com os demais, a taxa de câmbio se valoriza ou se desvaloriza automaticamente, promovendo ajustes sem a intervenção do FMI. As funções originais, para as quais o Fundo foi criado, praticamente perderam o sentido. Depois de um período de incerteza sobre os destinos da instituição, iniciou-se uma redefinição do seu papel, sempre sob a direção dos Estados Unidos, que detêm a maioria das cotas. Nas décadas de 1980 e 1990, o Fundo passou a ser usado para promover as chamadas "reformas estruturais" nas economias periféricas, reformas associadas à construção da nova ordem neoliberal. Em fevereiro de 1998, Lawrence Summers, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, foi claro a esse respeito, quando caracterizou o FMI como "o mais importante veículo multilateral disponível para realizar reformas condicionadas nos países emergentes". 3. Este ponto precisa ser enfatizado: pelos seus estatutos, o FMI existe apenas para prover linhas de crédito de curto prazo a países com dificuldades momentâneas em suas contas externas, de modo a que eles possam superar esses desequilíbrios temporários. A partir da década de 1980, porém – agindo à revelia desses estatutos, que não foram alterados –, a instituição passou a ser o "veículo multilateral" usado pelo governo dos Estados Unidos para promover reformas neoliberais (ou "reformas condicionadas") nas instituições econômicas, sociais e políticas dos países periféricos (ou "emergentes"), no contexto de construção da nova ordem internacional. Em vez de lidar com problemas localizados de liquidez, o FMI começou a promover rearranjos internos, profundos e duradouros, nesses países. Passou a interferir pesadamente na reorganização das economias (abertura comercial e financeira, por exemplo) e das sociedades (reformas nos sistemas previdenciários e trabalhistas, por exemplo), exigindo medidas que escapam completamente de sua esfera de competência original. O processo foi concebido de modo a auto-alimentar-se: maiores graus de liberalização das economias periféricas, especialmente nos terrenos comercial e financeiro, tornam essas economias mais vulneráveis aos movimentos internacionais de capital. Com a abertura da conta de capital – uma das "reformas condicionadas" a que Lawrence Summers se referia –, o capital financeiro passa a ter um poder avassalador sobre os Estados nacionais, especialmente os da periferia, pois os movimentos desse capital, agora liberados, colocam a taxa de câmbio onde ele desejar, ameaçando assim desorganizar as economias locais. Estas se tornam crescentemente dependentes do FMI, não só pela possibilidade de ter acesso aos seus recursos (em troca das condicionalidades), mas também porque o aval do Fundo passa a ser a principal referência para orientar aqueles movimentos do capital financeiro. Assim, uma vez iniciadas, as reformas liberais exigem novas rodadas de reformas complementares, sempre na mesma direção, apresentadas agora como inevitáveis. A partir de certo ponto, "não há mais alternativas", como Margareth Tatcher gostava de dizer. Os países capturados por essa dinâmica, como o Brasil, terminam por encaixar-se perfeitamente, de forma subordinada, na nova ordem mundial desejada pelos Estados Unidos. 4. O modelo-padrão dos acordos. No terreno estritamente macroeconômico, a relação do FMI com os países periféricos inclui três pontos inegociáveis: (a) metas de superávit primário, mesmo às custas de contrair gastos sociais imprescindíveis, de modo a assegurar a transferência de recursos da sociedade (via recolhimento de impostos) para os credores (via pagamento do serviço das dívidas); (b) políticas monetárias contracionistas, voltadas para reduzir o consumo e o investimento internos (e, com eles, as importações) e forçar as empresas a realizar políticas exportadoras mais agressivas, de modo a gerar os dólares necessários à solvência externa; (c) plena liberdade de movimentação de capitais, para que a transferência desses recursos ao exterior não enfrente obstáculos. Estas políticas formam o "núcleo duro" das condicionalidades macroeconômicas impostas pelo FMI. Ele foi preservado inclusive no recente acordo com a Argentina. (O governo Kirchner conseguiu recusar o aumento do superávit primário e outras exigências repugnantes, que não fazem parte desse "núcleo duro", como indenizar bancos estrangeiros por prejuízos causados pela ruptura da paridade peso-dólar e aumentar os preços de serviços públicos prestados por empresas estrangeiras que participaram dos programas de privatização.) 5. A nova fase das relações entre o Brasil e o Fundo. Em relação à análise do mês anterior, as principais alterações relevantes para o nosso tema são uma revisão para cima na expectativa de saldo comercial (de US$ 17 bilhões para US$ 20 bilhões) e projeções mais otimistas do Banco Central sobre a nossa possibilidade de fechar sem maiores problemas o balanço de pagamentos em 2004. Assim, no que diz respeito ao acordo com o FMI, as perguntas são quase óbvias. Se está afastada a hipótese de uma crise que possa conduzir a uma moratória de pagamentos externos, por que ainda se discute a renovação do acordo? Por que esta questão não é simplesmente superada, com o Brasil retornando à situação normal, sem tutela? Por que, nesse debate, ambas as partes comportam-se com tanta ambigüidade? Embora menos óbvias, as respostas são claras. As relações entre o Brasil e o Fundo estão transitando para um novo estágio, ainda em via de consolidação. O que caracteriza esse novo estágio é o seguinte: as condicionalidades tradicionais, impostas pelo Fundo, já foram completamente internalizadas, expressando-se agora em leis brasileiras e coincidindo com opções internas de política econômica. Senão, vejamos: (a) o superávit primário, que era de 3,75% do PIB no governo de Fernando Henrique, foi aumentado por Lula para 4,25%, enquanto os gastos sociais, que correspondiam a 2,59% do PIB, foram reduzidos para 2,45%; essas decisões não dependem mais de negociações com o Fundo, pois foram incorporadas à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que está em vigor até 2006; (b) como mostraremos adiante, a adoção de políticas monetárias contracionistas é uma decorrência natural do regime de metas de inflação, considerado parte essencial do modelo macroeconômico adotado por nosso governo; (c) a plena mobilidade de capitais está assegurada pela autonomia de fato do Banco Central, chefiado por Henrique Meirelles, um homem de confiança do sistema financeiro internacional; o governo Lula tem anunciado que quer colocar em lei essa autonomia, de modo a torná-la permanente. Assim, não são mais necessárias pressões de fora para dentro. O programa de ajuste estrutural do FMI passou a ser coisa nossa. Por isso a relação adquire agora uma qualidade nova, que ambas as partes começam a construir, tateantes. Daí a ambigüidade que constatamos. O FMI diz que novas negociações não são necessárias, pelo menos nos termos tradicionais, mas aceita emprestar mais dinheiro para manter o modelo de pé. O governo brasileiro, por sua vez, faz o seguinte raciocínio: se a política de arrocho fiscal e monetário será mantida de qualquer forma, por que não contar com o aporte de recursos do Fundo, embora desnecessários, oferecendo-se assim maior margem de segurança aos credores externos? Ou seja, se pagaremos de qualquer forma os custos da política do FMI, pois já internalizamos essa decisão, por que não devemos buscar a benesse dos seus recursos? 6. Dos três itens acima apontados, apenas o segundo – a permanência de políticas monetárias contracionistas – exige algum comentário, pois os demais são auto-explicativos. Vamos a ele. No modelo atual de gestão macroeconômica, o Banco Central assume com o governo o compromisso de atingir determinada meta de inflação. Esta passa a ser sua atribuição única e exclusiva. Isso quer dizer que a inflação é considerada um fenômeno exclusivamente monetário, aspecto essencial da teoria econômica ortodoxa. Qualquer inflação – seja de demanda, inercial ou de custos – passa a ser tratada com doses cavalares de juros, praticamente o único instrumento disponível no arsenal de medidas do Banco Central, mesmo quando essas doses não obtêm quase nenhum efeito sobre a própria inflação (como no caso dos preços administrados) ou apresentam efeitos colaterais seriíssimos sobre a sociedade como um todo. Comprometido apenas com metas de inflação, o Banco Central se desobriga de levar em conta problemas de crescimento e emprego. Qualquer repique da inflação ou qualquer possibilidade de crise cambial produz novo aumento nas taxas de juros, o que, por sua vez, exige metas maiores de superávit primário. Garantindo-se, adicionalmente, elevado superávit comercial e câmbio flutuante, minimiza-se o risco de crise nas contas externas, ao custo de manter acionados os mecanismos que reproduzem recessão. A política monetária passa a ser manejada sem nenhuma consideração aos indicadores da economia real e da crise social. Adquire, por sua lógica interna, o forte viés contracionista que o FMI sempre recomendou, pois a taxa de crescimento do PIB passa a ser uma variável de ajuste. As demais instituições do Estado – responsáveis, por exemplo, por políticas industriais, científicas e tecnológicas, ou por políticas sociais fortemente multiplicadoras de renda e emprego, como habitação e saneamento – precisam adaptar-se a um ambiente macroeconômico inimigo do gasto público e do crescimento. Por isso, as previsões sempre se mostram otimistas, e o crescimento é sempre adiado para o ano que vem. O crescimento de 2003, por exemplo, deveria ser de 5%, segundo as previsões da LDO de 2001; de 4,5%, segundo a LDO de 2002; de 4%, segundo a LDO de 2003; de 3,5%, segundo a LDO de 2004, feita já durante o governo Lula. Hoje se espera uma taxa de 0,5%, considerada "muito boa" – pois acima de zero! – pelo impagável ministro Palocci. (Como a população do país cresce cerca de 1,5% ao ano, a sociedade empobrece sempre que a capacidade produtiva cresce abaixo desta taxa.) 7. Os riscos políticos dessa trajetória são evidentes, pois com o tempo a sociedade se cansa e passa a exigir maior atenção aos seus problemas sociais. Fernando Henrique Cardoso que o diga. Por isso Lula tornou-se insubstituível, ao conquistar a confiança do sistema financeiro internacional, aceitando sua agenda, e ao apresentar-se como o político mais capaz de evitar – ou, pelo menos, adiar – uma crise social interna de conseqüências imprevisíveis. Isso vem sendo crescentemente reconhecido pelos conservadores. "O Brasil continuará sendo usado pelo FMI como o seu melhor modelo atual de sucesso e, se for necessário, a entidade não deixará de aportar recursos para manter essa situação", dizia o editorial do jornal Valor Econômico em 15 de setembro. No mesmo dia, O Estado de S. Paulo escrevia: "Não faz diferença alguma colocar 'metas sociais' no novo acordo. Por que, então, o governo Lula pensa em incluí-las e o FMI, em aceitá-las? Marketing dos dois lados. O governo Lula poderia apresentar o programa como um 'acordo do PT'. E o FMI, sempre acusado de deixar seus clientes na miséria, poderia exibir ao mundo sua nova face social. (...) É capaz de o FMI mandar colocar uma estátua de Lula no imenso saguão central de sua sede, em Washington." É importante entendermos por que a imprensa conservadora tem toda a razão, a ponto de exprimir-se com tanta desfaçatez e crueza. Vamos por partes, analisando em separado as medidas inovadoras que o governo vem anunciando como mais prováveis em um eventual novo acordo com o FMI. 8. As propostas já divulgadas. A primeira delas é um tratamento mais flexível aos investimentos das empresas estatais, hoje considerados como gastos (com exceção da Petrobras) e, como tal, sujeitos ao contingenciamento geral. Na absurda regra atual, se a Eletrobras tem lucro de R$ 1 bilhão e o reinveste, modernizando e expandindo o setor elétrico, isso é considerado fonte de déficit; se recolhe esses recursos ao Tesouro e os esteriliza, deixando o sistema elétrico sem investimentos novos, ajuda a atingir a meta de superávit primário, necessário para pagar os juros da dívida interna. Nossas autoridades acenam com uma renegociação desse aspecto. Porém, como vimos, o governo Lula, por sua própria iniciativa, sem que o FMI o exigisse, aumentou a meta de superávit primário para 4,25% do PIB e inscreveu essa meta na Lei de Diretrizes Orçamentárias em vigor até 2006. Se o FMI aceitar retirar a contribuição das empresas estatais para a formação desse superávit, restará ao governo dois caminhos: elevar impostos (o que parece politicamente inviável) ou retirar mais recursos de outras áreas para cobrir a diferença. O resultado líquido, do ponto de vista dos gastos públicos, será nulo. Um segundo ponto que tem sido sugerido é o fim da proibição – também absurda – de que o BNDES e a Caixa Econômica financiem o setor público. Mas, independentemente de qualquer acordo com o FMI, os limites a esse financiamento já foram internalizados na legislação brasileira, mais especificamente na Lei de Responsabilidade Fiscal, de modo que também neste caso o Fundo pode arrefecer a pressão de fora para dentro, sem que sua política venha a ser substancialmente alterada. A terceira idéia do governo Lula é escandalosa: inserir "metas sociais" no novo acordo. Passaríamos a estar constrangidos, de fora para dentro, por "condicionalidades positivas" em torno de temas completamente estranhos aos estatutos do Fundo e que dizem respeito, única e exclusivamente, à política interna do nosso país. Nem Fernando Henrique imaginou tamanha demonstração de vassalagem: uma agência controlada pelo governo dos Estados Unidos e sempre preocupada com as condições de pagamento aos credores internacionais passaria a orientar e monitorar nossa política social. Das duas, uma: ou o FMI apenas referendaria as metas sociais do governo Lula (e, neste caso, a negociação seria uma pantomima) ou definiria outras metas. Como, havendo novo acordo, caberá ao Fundo estabelecer as metas que afetam as questões externas, ele terá assumido plenamente o governo do Brasil! Com o mesmo agravante da hipótese anterior: qualquer meta social adotada sem que se altere o superávit primário implicará cortes de outras despesas – que só poderão ser despesas sociais, as únicas que permitem esse manejo. Assim, o governo anunciará, com pompa e circunstância, novas metas sociais que serão financiadas... com o corte de outras despesas sociais! 9. Estamos oscilando, como se vê, entre a tragédia e a farsa. Dando seqüência às suas recorrentes tentativas de desmoralizar a esquerda, Lula agora diz que sempre gritou "Não ao FMI!" como um jargão ideológico vazio e irracional. Isso é problema dele. Da nossa parte, continuamos dizendo o mesmo "não", sabendo porém exatamente o que dizemos. Como sempre soubemos. * César Benjamin, integrante da coordenação nacional do Movimento Consulta Popular (Brasil).
* Rómulo Tavares Ribeiro, economista.
Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira Página na internet: http://www.outrobrasil.net
https://www.alainet.org/es/node/108518
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