A reforma tributária e o trabalho

06/05/2003
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Apresentada pelo governo em 30 de abril, mas ainda ofuscada pelas indigestas propostas de mudanças na Previdência Social, a reforma tributária também tem tudo para gerar intensa pressão na sociedade. Os 27 governadores lutam para evitar perdas de arrecadação de seus Estados. Já o empresariado, através de seus eficientes lobbies e do bombardeio da mídia, agita-se para manter seus privilégios. E os sindicatos, o que estão fazendo? Levando em conta sua trajetória recente, marcada pelo imediatismo, a maioria nem sequer ainda tratou do tema – o que é preocupante, já que tal reforma afeta diretamente a vida dos trabalhadores. Uma primeira leitura do projeto revela que o governo Lula optou por uma "reforma possível", segundo as próprias palavras do ministro José Dirceu. Há várias medidas progressistas no texto enviado ao Congresso Nacional, como a redução das alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para produtos da cesta básica, aumento da tributação de heranças, inclusão da alíquota de 35% no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), unificação do ICMS para evitar a destrutiva guerra fiscal e o fim da cobrança cumulativa e regressiva da Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Além disso, o projeto dá margem para futuras alterações em pontos inflamáveis. O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, inclusive já prometeu apresentar uma proposta de lei complementar elevando a alíquota da Cofins dos bancos de 3% para 4%. Outro compromisso é o de ampliar a tabela de desconto do Imposto de Renda, que está congelada há vários anos para martírio dos assalariados. Para o governo, esta "reforma possível" agilizará a cobrança de tributos, combaterá a sonegação e incentivará o crescimento econômico. Estes aspectos positivos, entretanto, não anulam a timidez da proposta. Segundo especialistas em Direito Tributário, ouvidos pelo Correio Braziliense, "há muito barulho para pouco resultado". Eles afirmam que, no essencial, o projeto objetiva aumentar a carga tributária, que hoje já equivale a 36,5% do PIB – uma das mais elevadas do mundo, só inferior às da Suécia e da Alemanha. Já para a deputada federal Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM), a proposta do governo "não é bem uma reforma tributária. É mais um conjunto de medidas pontuais. O grande debate será mesmo no Congresso, sem a ingerência do Poder Executivo". No fundo, a maior lacuna da proposta do governo é que ela não é encarada como um instrumento eficaz de redistribuição de renda. Como alfineta Amir Khair, um dos maiores especialistas nesta área e antigo colaborador do PT, o projeto "é pouco progressivo" e não corrige a histórica injustiça fiscal no país. Isto só comprovaria que "mexer em interesses de quem tem muita riqueza é difícil. É relevante colocar essa questão em pauta porque ela está omissa nessa discussão. Em relação aos outros países, o Brasil tributa muito pouco a renda e o patrimônio. Hoje quem ganha mais, paga proporcionalmente menos impostos". REGRESSÃO NEOLIBERAL O sistema tributário brasileiro é um retrato da tragédia social que dilacera o país. Em certo sentido, ajuda a entender porque o Brasil, a 12a maior economia produtora de riquezas do planeta, ocupa o quarto lugar no ranking mundial de concentração de renda – segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU ele só perde para Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia. Em decorrência do histórico desequilíbrio das forças políticas no país, a tributação sempre foi utilizada como um perverso instrumento de concentração de riqueza e renda, onerando os bolsos dos mais pobres e aliviando os dos mais ricos. Na fase mais recente, de regressão neoliberal, este quadro só piorou. No reinado de FHC, as alterações na legislação tributária criaram um ambiente ainda mais favorável ao capital especulativo e aos oligopólios, atendendo ao modelo de livre fluxo financeiro do FMI. No outro extremo, elas elevaram a tributação dos assalariados e das pequenas e médias empresas, que tiveram os seus rendimentos confiscados em nome do "ajuste fiscal" e da "estabilidade da moeda". Tamanha perversão só confirma a tese do tributarista Osíris Lopes Filho, para quem o "o Brasil é o inferno tributário do trabalhador e o paraíso fiscal do capital". Segundo minucioso estudo da Unafisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), entre outros crimes, FHC promoveu o desmonte da máquina fiscal; criou amarras burocráticas ao trabalho de fiscalização; concedeu anistias fiscais às empresas; congelou a tabela de desconto do IRPF e diminuiu as deduções permitidas; elevou a alíquota do IRPF dos assalariados; aumentou a Cofins em 50%; criou a CPMF, hoje com uma taxa de 0,38%. Em decorrência deste violento aperto, entre 1990/98, a carga global média de tributação sobre os rendimentos foi de 27,5%, bem superior à média de 24,8% nos anos 80. INFERNO DO TRABALHADOR O trabalhador foi duplamente penalizado: com o aumento do desconto na fonte (imposto direto) e com a ação regressiva dos tributos sobre o consumo (indiretos). De 1995 a 2001, a taxação na fonte cresceu, em termos reais, em 27%. Já a Cofins e a CPMF subiram 66% e 5.546%. "Enquanto isso, impostos sobre os lucros das empresas e sobre o patrimônio rural, cobrados dos mais abastados, tiveram queda real", critica o livrete Justiça fiscal e social para reconstruir o Brasil, elaborado pelo Fórum Brasil Cidadão. Somando os impostos diretos e indiretos, a carga tributária sobre o trabalho beira os 40%, considerando o consumo, a renda e os salários. Para os funcionários públicos, alvo novamente da cólera das elites, ela chega a 58%. O crescimento real do imposto sobre o trabalho deu-se pelo aumento da alíquota e pelo congelamento da tabela, que confiscou mais de R$ 15 bilhões dos trabalhadores no período de 1996-2002. Já na tributação sobre consumo, trabalhador e empresário pagam o mesmo valor. Ao tomar o café-da-manhã, por exemplo, o desempregado paga 14,7% de imposto; o mesmo pago pelo banqueiro. Ao ir ao banheiro, o despossuído desembolsa 36,49% sobre o papel higiênico; o mesmo valor gasto pelo milionário. No computo geral, o brasileiro que ganha até dois salários mínimos gasta em torno de 27% do que ganha em tributos sobre o consumo. Já a pessoa que recebe acima de 30 salários mínimos gasta apenas 7,34%. No Brasil, aproximadamente dois terços dos tributos são cobrados sobre o que as pessoas consomem e apenas um terço sobre a renda e a propriedade. Esta tributação regressiva cria graves distorções, taxando mais fortemente os que ganham menos – bem diferente do modelo progressivo aplicado na Europa, que taxa mais a renda e menos o consumo. São vários os tributos indiretos no Brasil – ICMS, IPI, PIS, Cofins, CPMF e o ISS. Alguns deles, como a Cofins e o CPMF, são ainda mais injustos porque são cumulativos. Essa tributação excessiva, ao onerar demasiadamente o produto, restringe a demanda e inibe a produção, reduzindo a oferta de empregos e prejudicando o crescimento econômico. Ela reduz a capacidade de consumo das famílias de rendas médias e baixas, prejudicando o mercado interno e a produção nacional. Tamanha distorção deveria alertar um governo comprometido com a erradicação da miséria. Estudos do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas provam que os alimentos sofreram um aumento médio da carga fiscal de 15% para 17,25%, entre 1996/2002. O combate à tributação regressiva seria fundamental para o êxito do programa Fome Zero. A desoneração dos produtos alimentícios básicos ajudaria a reduzir a fome, além de gerar a distribuição da renda. Um mendigo, ao receber uma esmola e comprar um litro de leite e um pão para seu filho, gasta quase 15% em tributos, o que dificulta uma alimentação melhor. A isenção tributária sobre a cesta alimentar poderia retirar da miséria aproximadamente 800 mil brasileiros. PARAÍSO DOS CAPITALISTAS Enquanto os mais necessitados foram penalizados com o aumento da tributação, os capitalistas foram amplamente beneficiados nos últimos anos. Desde 1995, o governo alterou a legislação tributária através de leis ordinárias, decretos e medidas provisórias com o único objetivo de aumentar a arrecadação para atender os credores internacionais e de beneficiar as grandes corporações empresariais. Entre as várias medidas neste rumo, também citadas no documento da Unafisco, vale ressaltar algumas mais aberrantes: - Privilégio dos juros sobre o capital próprio. Através da lei 9.249, de dezembro de 1995, as empresas passaram a ter a possibilidade inédita de distribuir juros aos seus sócios ou acionistas, reduzindo sua carga tributária – uma aberração de FHC, que não existe em nenhum país do mundo. Com isso, reduziram seus lucros tributáveis através de uma despesa fictícia denominada de juros sobre capital próprio. Os sócios e os acionistas que recebem esse rendimento, geralmente de valores expressivos, pagam apenas 15% de IR. Os maiores beneficiários são as mega-corporações, já que a maioria das empresas está descapitalizada e não tem como se beneficiar deste incentivo. Essa renúncia fiscal é, hoje, superior a R$ 32 bilhões ao ano. - Isenção da distribuição de lucros e dividendos e da remessa de lucros ao exterior. Desde 1996, os rendimentos de pessoas físicas provenientes de lucros ou dividendos não pagam mais Imposto de Renda, independentemente de serem residentes no país ou no exterior. As remessas de lucros ao exterior estão hoje totalmente isentas. Essa renúncia fiscal é de, aproximadamente, R$ 6,4 bilhões ao ano. - Redução da progressividade do imposto de renda. No reinado de FHC foram extintas as alíquotas de 35% para rendas de pessoas físicas acima de R$ 14 mil e de 15% do adicional do imposto de renda de pessoas jurídicas (Lei 9.250/95). Além disso, foram reduzidas as alíquotas do IR das pessoas jurídicas de 25 para 15%. Os maiores beneficiados foram os bancos, que antes pagavam um adicional de IR de 18%. - Ganhos de capital, renda fixa e renda variável. Enquanto a tributação na fonte de rendimentos do capital é, em média, de 15%, a de rendimentos do trabalho atinge 27,5%. A incidência exclusiva na fonte significa que a pessoa paga o IR com alíquota fixa, não se aplicando a tabela progressiva nem fazendo o ajuste na declaração do imposto anual. Esse tratamento reduz o imposto do contribuinte com rendas elevadas e onera os de baixa renda. Essa renúncia fiscal é de, aproximadamente, R$ 5,9 bilhões ao ano. - Redução do Imposto Territorial Rural. Em 1996, foi alterada a lei do imposto sobre patrimônio rural, que tributava progressivamente em função do grau de uso da terra. Extinguiu- se o VTNm (Valor da Terra Nua Mínimo). Desta forma, o latifúndio improdutivo foi beneficiado, reduzindo ainda mais a arrecadação no campo. Hoje ela atinge cerca de R$ 300 milhões ao ano, quando seu potencial é de R$ 1,8 bilhão. - Imposto Sobre Serviços. Até hoje os bancos resistem em pagar o ISS, adiando a sua contribuição aos cofres municipais. Além disso, o sistema financeiro é o que menos contribui, proporcionalmente, para a Receita Federal. Durante a CPI dos Bancos, em depoimento no Congresso Nacional, o próprio Everardo Maciel, secretário da Receita Federal de FHC, afirmou que algumas instituições financeiras contribuem pouco com o Imposto de Renda e que "58% não pagaram nada, pois se utilizam de brechas legais". REFÚGIOS DE SONEGADORES Afora estas regressões legislativas, o governo ainda aliviou a vida das empresas que sonegam tributos. As multas por infrações fiscais foram reduzidas drasticamente, equiparando- se, em alguns casos, o sonegador ao inadimplente (Lei 9.430, de 1996). Antes, as multas eram de 300%, no caso de fraude, e de 150% para os demais casos; baixaram para 150% e 75%, respectivamente. Em caso do pagamento do débito no prazo da atuação, elas caem para 75% e 37,5%. O aspecto criminal da sonegação também foi atenuado. Basta o sonegador pagar sua dívida para o crime ser extinto. Bem diferente do rigor contra o ladrão de galinhas! Já a Secretaria da Receita Federal foi proibida de remeter ao Ministério Público os casos de crimes fiscais até a conclusão do processo de autuação na esfera administrativa, o que leva de cinco a seis anos e, muitas vezes, resulta na prescrição do delito. FHC ainda fragilizou o papel da Procuradoria da Fazenda Nacional, órgão responsável pela cobrança judicial de tributos não pagos na esfera administrativa. No final de 2001, o montante de impostos devido à União totalizava RS 150 bilhões. A redução do número de procuradores, a falta de quadros funcionais de apoio e a carência de modernas tecnologias tornaram inviável a cobrança. Os sonegadores ainda foram beneficiados com a concessão de anistias fiscais e com a vigência da Refis (Recuperação Fiscal de Contribuintes em Débito com a Fazenda Nacional), que refinancia o débito em até 80 anos e com taxa de juro favorecida. Estas e outras medidas tiveram como efeito colateral o aumento do contrabando no Brasil. Em 1988, o faturamento da traficância foi de US$ 20 bilhões, um terço do valor das importações brasileiras. Cerca de 1,5 milhão de empregos deixam de ser gerados na indústria devido à concorrência dos produtos contrabandeados e a perda de arrecadação anual é de cerca de US$ 9,6 bilhões. Durante os últimos anos, a libertinagem financeira patrocinada por FHC também transformou o Brasil em um atrativo refúgio para sonegadores do mundo inteiro. Apesar da legislação brasileira caracterizar como paraíso fiscal a nação "que não tributa a renda ou que tributa com alíquota inferior a 20%", a tributação sobre capital no país é inferior aos 20%. Baita ironia! Além disso, FHC afrouxou mecanismos, como as contas CC-5, que permitem a entrada e saída de recursos sem controle público. Além de beneficiar os sonegadores, tal medida atraiu as máfias que controlam o tráfico de drogas, armas, mulheres e crianças... O livro "Brasil: Inferno e paraíso fiscal" é rico em detalhes sobre estas operações ilícitas. Ele comprova que os paraísos fiscais são o "toque de classe da globalização financeira", envolvendo megacorporações. Estas fogem da taxação no país de origem transferindo ilegalmente os seus lucros para estes territórios da pirataria. Neles contam com várias facilidades, como garantia de anonimato sobre o montante depositado, impostos e taxas bancárias reduzidas e possibilidades de criar e extinguir firmas fantasmas rapidamente e a baixo custo. Não é para menos que estes paraísos se transformaram em centros de lavagem de dinheiro. Segundo Luis Francisco de Souza, renomado Procurador da República, na última década o país se tornou "um dos maiores paraísos fiscais do planeta". A mesma opinião é compartilhada pela economista francesa Marie Chrystine, responsável na ONU pelo programa de combate ao crime organizado, para quem "o Brasil é um dos países do Terceiro Mundo mais tentadores para lavagem de capitais do crime organizado no mundo". Entre 1992/98, dos R$ 124 bilhões que saíram do país através das contas CC-5, mais de 50% provinham da sonegação de impostos. Já o jornalista José Roberto Toledo revelou que das 90 pessoas que remeteram mais de R$ 20 milhões ao exterior por meio desta conta, apenas 20 pagaram o IRPF em 1998. A política tributária implementada por FHC desonerou o capital financeiro, permitindo seu livre trânsito. Daí a conclusão do livro de que "a criminalidade financeira, longe de ser um 'acidente de percurso' da economia, é parte de uma engrenagem coerente, intimamente ligada à expansão do capitalismo moderno. Considerando que business is business, a criminalidade financeira traduz-se em um próspero e estruturado negócio no qual a oferta e demanda se encontram no ponto ótimo... O conluio de interesses une governos, empresas transnacionais e máfias e permite o 'bom' funcionamento da economia capitalista". REVERSÃO DAS INJUSTIÇAS Diante desta lógica perversa, que onera o trabalho e privilegia o capital, que medidas poderiam reverter a injustiça tributária no país? Algumas propostas avançadas já são defendidas por entidades vinculadas ao setor, em especial pela Unafisco. Para ela, muitos destes absurdos poderiam ser superados por meio da legislação infraconstitucional, sem a necessidade de reformas na Constituição. Entre elas, destacam- se: 1- Extinguir a tributação em cascata;
2- Revogar a dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio;
3- Garantir que os rendimentos de capital sejam submetidos à tabela progressiva anual;
4- Revogar a isenção na distribuição de lucros e dividendos;
5- Tributar as remessas de lucros ao exterior;
6- Corrigir regularmente a tabela progressiva do imposto de renda;
7- Revisar e ampliar as deduções do imposto de renda da pessoa física;
8- Não tributar a renda mínima existencial;
9- Isentar os alimentos da cesta básica;
10- Recuperar a alíquota de 35% para rendas elevadas ou acentuar a progressividade;
11- Aumentar a tributação sobre o patrimônio rural;
12- Não conceder anistia fiscal para as empresas;
13- Fortalecer a fiscalização tributária;
14- Controlar o fluxo financeiro para os paraísos fiscais;
15- Criar força tarefa para combater a lavagem de dinheiro;
16- Combater efetivamente a sonegação. Para o Fórum Brasil Cidadão, "o sistema tributário deve ter como objetivos o crescimento econômico, a criação de empregos, a redução da dependência de capitais externos, a eliminação da pobreza, a justiça fiscal e social e o desenvolvimento sustentado". Na avaliação desta frente, que congrega várias entidades da sociedade civil, "a instituição de qualquer tributo deveria atender ao critério da distribuição de renda e riqueza, que será efetivada, entre outras formas, mediante a imunidade tributária da cesta básica, do mínimo existencial e da produção e circulação de remédios". As propostas avançadas destas entidades indicam que a "reforma possível" do governo Lula tem muito a beber nesta fonte! * Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor, com Marcio Pochmann, do livro "Era FHC: A regressão do trabalho" (Editora Anita Garibaldi).
https://www.alainet.org/es/node/107490
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