O Direito, a justiça e a guerra

29/04/2003
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Os nossos filhos reconhecerão que as nossas idéias e as nossas lutas por uma sociedade mais justa e solidária não têm a eficácia das bombas, mas são a única alternativa digna de seres humanos Issa Shivji é um famoso professor da Universidade de Dar es Salaam (Tanzânia). Convidado a participar de um congresso sobre justiça, ameaçou recusar: "Como poderei eu teorizar sobre o Direito e a justiça como campo de luta pela libertação dos oprimidos quando bombas americanas enterram crianças. Basta de esquizofrenia intelectual!" Issa Shivji é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Dar es Salaam (Tanzânia). Internacionalmente conhecido e um amigo meu de longa data, foi convidado há meses para participar num Colóquio Internacional sobre o Direito e a Justiça no Século XXI que o Centro de Estudos Sociais está a organizar e que se realizará na Universidade de Coimbra, de 29 a 31 de maio. Com este colóquio, em que participam conferencistas vindos da Europa, África, Américas e Ásia, pretendemos promover uma reflexão internacional sobre os desafios que o Direito e a administração da Justiça enfrentarão nas próximas décadas. Entusiasmado, Issa Shivji aceitou há meses o convite. Na semana passada escreveu-me a decliná-lo, com a justificação de não querer continuar a colaborar com os países ocidentais, depois da invasão ilegal do Iraque e da barbárie high-tech infligida aos iraquianos. Diz ele a certa altura: "Como poderei eu teorizar sobre o Direito e a justiça como campo de luta pela libertação dos oprimidos, tese que me é tão cara, quando bombas americanas pesando uma tonelada e rotuladas "libertação do Iraque" enterram crianças de 13 anos, como o meu filho, em profundas crateras... A hegemonia institucional das nossas universidades apenas nos permite partilhar a nossa indignação nos bares, ao final da tarde, depois de termos apresentado as nossas circunspectas comunicações sobre o Direito e a justiça. Basta de esquizofrenia intelectual!" Respondi-lhe, pedindo que reconsidere. Eis alguns trechos da minha mensagem: "A tua integridade moral e política, a tua lucidez crítica a respeito das concepções hegemônicas dos Direitos Humanos, a tua luta pela democracia participativa e por um conhecimento solidário estiveram na base do convite que te dirigi e, naturalmente, dói-me o coração que sejam essas mesmas razões as que te levam a declinar o nosso convite. Queria dizer-te que a ciência que procuramos realizar aqui tem muitas atinências com a que tens vindo a realizar de modo brilhante. Para nós a ciência, objetiva mas não neutral, é um exercício de cidadania e estamos certos de que não há justiça social global sem justiça cognitiva global... Ao contrário de Habermas, penso que o nazismo e Bush não são desvios ou aberrações da modernidade Ocidental. São constitutivos dela. Não tinham de acontecer necessariamente, mas tão pouco aconteceram por acaso. Como português, sinto-me envergonhado e revoltado com a posição do governo do meu país a favor da guerra, quando a grande maioria da população é contra. Tenho vindo a lutar contra essa posição por todos os meios democráticos ao meu alcance. Mas a luta tem de ser global e tem de nos mobilizar a todos. A ciência e os cientistas não podem dispensar-se de responder à questão: de que lado estou? Porque se o fizerem estão, de fato, a alinhar com a barbárie. Como sabes, tenho estado muito ativo nos trabalhos do Fórum Social Mundial e a idéia que nos norteia é que não podemos render-nos ao pensamento único e à arrogância tecnológica do capitalismo selvagem e belicista. Não podemos desistir. É isso o que os falcões instalados na Casa Branca desejam. Por isso, meu Caro Issa, peço-te que faças da visita a Coimbra um momento de denúncia e de luta. Não quero que faças uma comunicação com idéias diferentes das que constam da tua mensagem. Se não vieres, lutaremos sem ti, ainda que a pensar em ti. Será, pois, mais difícil. Daí o meu pedido para que reconsideres. Os nossos filhos reconhecerão que as nossas idéias e as nossas lutas por uma sociedade mais justa e solidária não têm a eficácia das bombas, mas são a única alternativa digna de seres humanos." * Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
https://www.alainet.org/es/node/107425
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