Jovens, armai-vos uns aos outros

17/09/2002
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Não é o filme "Cidade de Deus", aliás excelente (embora desprovido de esperança), que ora me preocupa. Cinema é ficção. É a realidade, que sempre extrapola a imaginação, que me deixa perplexo. Refiro-me à pesquisa de Miriam Abramovay, do Banco Mundial, e Maria das Graças Rua, da Unesco, realizada em 14 capitais do país, com 33.655 estudantes; 3.099 professores e diretores de escola; e 10.255 pais, vigias e policiais (Estadão 05/09/02). Constatou-se que de 9 a 18% dos alunos já tiveram ou têm contato com armas de fogo. Só em São Paulo, mais de 57 mil estudantes têm ou tiveram armas. O que leva um adolescente a portá-las? Primeiro, o pai que se gaba de possuir uma, como se isso fosse sinônimo de segurança. Não é, como demonstrou o trágico acidente ocorrido em Brasília, semana passada, onde uma criança de 3 anos, depois de ver a novela "O beijo do vampiro", apanhou a arma do pai em cima da geladeira e o matou. As estatísticas revelam que uma pessoa armada tem mais probabilidade de ser assassinada por bandidos do que uma desarmada. Ainda assim há pais que se vangloriam do arsenal que possuem e inoculam em seus filhos o medo ao diferente: mendigo é agressivo; negro é suspeito; pobre é ganancioso; criança de rua é ladrão precoce etc. As exceções forjam a regra e petrificam o preconceito. Inútil depois os pais chorarem no tribunal frente a filhos que puseram fogo num índio "pensando que era um mendigo", como declarou um dos rapazes responsáveis pelo cruel assassinato. A pesquisa constatou que um dos fatores que favorecem a violência na escola é a facilidade com que os alunos se embebedam nas proximidades. Onde está a polícia para autuar bares que servem bebidas alcoólicas a menores? Tomando lanche de graça para fazer vista grossa? Sou a favor do uso de uniforme escolar. Eles atenuariam a diferença social, evitando o exibicionismo consumista dos jovens bem aquinhoados e a vergonha de quem não pode usar tênis de grife. E impediriam que bares servissem álcool a quem estivesse uniformizado, além de facilitar o transporte gratuito ou mais barato nos ônibus. Poucas escolas têm policiamento. Em 51% das pesquisadas não há semáforos, passarelas, faixas de pedestre ou policial controlando o trânsito. Só 7% contam com guardas de trânsito na porta. Além de redutores de velocidade, toda escola deveria estar protegida do assédio do narcotráfico. Fosse a nossa polícia mais investigativa, e não só repressiva, bastaria que um suposto consumidor buscasse acesso às drogas nas imediações. E quem garante que o guarda que diz proteger a escola não foi corrompido pelo poder do narcotráfico? Jamais deveria haver policiais dentro das escolas. Manter a disciplina interna é responsabilidade de professores, funcionários e pais. Mas como isso é possível se os enlatados de TV incentivam à violência? Onde estão os exemplos altruístas de minha geração quando jovem? Nós, que tínhamos 20 anos na década de 1960, fomos salvos da desgraça por pessoas e fatos históricos que suscitavam indignação e solidariedade, como Gandhi, Luther King, Che Guevara, os Beatles, a revolução cubana, a vitória do pobre Vietnã sobre o poderoso EUA, num tempo em que tudo trazia o adjetivo de novo: o cinema era novo, a bossa era nova, também a literaturaŠ até que a ditadura dependerou nossos sonhos no pau-de-arara. Segundo pesquisa publicada também no Estadão (15/03/02), hoje só 10% dos jovens brasileiros se interessam por política (na Argentina, 27%; nos EUA, 23%; no Japão, 42%). Eles passam em média 4 horas diante da TV; 56% associam consumismo à felicidade; malham o corpo, mas não o espírito; espelham-se em exemplos egocêntricos, como o exterminador do passado, do futuro e do presente; o mauricinho que esbanja fortuna; o ator ou esportista que adquiriu fama sem a menor preocupação com ética, valores morais, vida intelectual ou espiritual. A pesquisa revelou ainda que os próprios alunos integram gangues arruaceiras. Aliás, 55% dos jovens pesquisados sabem onde , como e de quem comprar armas nas proximidades do colégio; 51% dos que já portaram arma de fogo admitem que pegaram de seus pais ou parentes; 67% confessaram que, em brigas na escola, essas armas sempre aparecem. Não me espanto, sabendo que o Brasil abriga 2,9% da população do mundo e 10% dos crimes por arma de fogo. Segundo o ministério da Justiça, há no país 1,5 milhão de armas legais e 20 milhões ilegais. Frente a esse dramático quadro, qual a solução? Primeiro, uma profunda reforma educacional, o que supõe um governo que não considere as prioridades sociais ­ alimentação, saúde e educação ­ um estorvo aos acordos mantidos com o FMI. Segundo, fazer a TV ser de fato o que é de direito: uma concessão pública que, portanto, deveria ser regida, em sua qualidade e conteúdo, pela sociedade civil. No dia em que os telespectadores exercerem o seu direito de cidadania, boicotando anunciantes de programas deseducativos, talvez haja melhora na grade de programação, na qual mulheres, negros, homossexuais e nordestinos, sobretudo em produções humorísticas, são ridicularizados. Terceiro, educação política, através de grêmios e diretórios estudantis, conexões com movimentos populares e atividades como a campanha "Jovem Voluntário, Escola Solidária", que arranca os adolescentes do comodismo, para empenhá-los em ações solidárias a populações carentes, e faz da escola um eixo de irradiação junto a comunidades empobrecidas, proporcionando-lhes alfabetização, cursos semiprofissionalizantes e atividades culturais e artísticas, como se vê no filme "Uma onda no ar", de Helvécio Ratton. Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto ­ autobiografia escolar", editora Ática.
https://www.alainet.org/es/node/106427
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