Rompendo o muro de silêncio

20/06/2002
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Relatório elaborado pelo governo do Rio Grande do Sul aponta que as economias estaduais e do país serão prejudicadas pela ALCA, defende o Mercosul como política estratégia e propõe a construção de um grande debate nacional sobre o tema No último dia 26 de março, o governo do Estado do Rio Grande do Sul instalou uma comissão especial sobre a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Diante do sigilo que vem caracterizando as negociações para a implantação da ALCA, o governo gaúcho decidiu reunir um grupo de especialistas e ouvir representantes da sociedade, com o objetivo de conhecer melhor o projeto, estender o debate para fora dos gabinetes e, principalmente, formular propostas concretas que se contraponham ao projeto de integração desejado pelo governo dos Estados Unidos. O primeiro resultado deste trabalho, divulgado esta semana pelo governador Olívio Dutra e pelo vice-governador Miguel Rossetto (que coordena a comissão), não é nada otimista quanto ao impacto da ALCA sobre as economias da América Latina. As suspeitas que cercam o projeto e a total falta de transparência na condução do mesmo, levaram o governo gaúcho a elaborar uma série de propostas no sentido de trabalhar pelo fortalecimento do Mercosul e pela ampliação da participação da sociedade no debate sobre a formação de qualquer projeto de integração no continente. Grandes ambições, nenhuma consulta à sociedade A proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) é um processo histórico de grande envergadura, que só encontra paralelo no processo de constituição dos estados nacionais, no início do século XIX. O projeto foi lançado durante a Cúpula das Américas, realizada em 1994, em Miami, e representa a criação de uma imensa federação que englobaria cerca de 800 milhões de habitantes de 34 países das Américas. Somente Cuba ficaria de fora, por exigência dos Estados Unidos. Com este contingente populacional e um Produto Interno Bruto (PIB) de mais de 13 trilhões de dólares, a ALCA, caso concretizada, será o mais ambicioso acordo econômico da história mundial. A importância estratégica do projeto é inversamente proporcional à participação das populações dos países envolvidos. Envoltas em sigilo absoluto, as negociações da ALCA ocorrem em gabinetes fechados e raras informações vazam para a sociedade. O símbolo maior deste processo é o muro de arame e concreto que cerca a zona central de Quebec, onde os chefes de Estado dos países do continente estarão reunidos, a partir do dia 20 de abril, para discutir a implantação da ALCA. O muro tem seis quilômetros e quatro metros de altura. Atrás dele, os chefes de Estado pretendem decidir o futuro de 800 milhões de americanos. Um convite a Samuel Pinheiro Guimarães A Comissão Especial sobre a ALCA vem fazendo, no Rio Grande do Sul, o que o governo federal deveria estar fazendo em todo o país: ouvir a sociedade sobre o projeto. Foram realizadas reuniões com entidades empresariais e sindicais, com representantes de universidades e partidos políticos. Todos manifestaram disposição em participar mais ativamente do processo de debates sobre a ALCA. Na tentativa de traduzir esta disposição numa proposta concreta, o governo gaúcho formalizou junto ao Ministério de Relações Exteriores uma solicitação para a criação de uma instância envolvendo todas as unidades da federação nas discussões que envolvem a ALCA, em razão das fortes repercussões que a área de livre comércio, caso concretizada, terá sobre as economias regionais. Além de trabalhar pela formação desta câmara federada, o governador Olívio Dutra propôs, durante encontro realizado no início de março em Buenos Aires, a criação da rede Mercoestados, uma instância federada reunindo representantes de unidades sub-nacionais (Estados, Províncias e Departamentos), com o objetivo de fortalecer o Mercosul e tratar dos impactos da proposta da ALCA sobre as economias regionais. A proposta foi aprovada e a reunião constitutiva desta rede está marcada para julho, em Porto Alegre. Diante do poderio econômico dos Estados Unidos e do caráter sigiloso das negociações sobre a ALCA, a estratégia escolhida pelo governo Olívio Dutra é fortalecer a articulação política entre os países do Mercosul e entre as sociedades destes países. Esta política de resistência pode receber um aliado de peso. O governo gaúcho entrou em contato com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, demitido do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais, do Itamaraty, por suas posições anti-ALCA, e sondou-o sobre a possibilidade de trabalhar na área de relações internacionais, no Rio Grande do Sul. Mercosul ameaçado EUA declaram que rechaçam o Mercosul Em 1997, durante depoimento a uma subcomissão do Senado norte- americano, a secretária do Comércio dos Estados Unidos, Charlene Barchefsky, declarou que "o interesse crescente que desperta o Mercosul, não só na América do Sul e no Caribe, mas também na Europa, no Japão e na China, é percebido como uma ameaça aos interesses comerciais e à própria liderança dos Estados Unidos no hemisfério". A afirmação não poderia ser mais clara quanto ao conceito que Washington tem do Mercosul. Reconhecendo este fato, o relatório da Comissão Especial do governo gaúcho afirma que uma virtual concretização da ALCA implicaria no fim do Mercosul, tal como ele se apresenta hoje, uma vez que anularia as vantagens que a Tarifa Externa Comum (TEC) assegura às empresas dos países integrantes do bloco. "Como a integração platina se dá unicamente entre países em desenvolvimento, com limitada competitividade, sua dissolução num bloco que incluísse o Canadá e os EUA implicaria no colapso de grande parte das cadeias produtivas, ao conceder a empresas de maior competitividade as mesmas vantagens das locais", afirma o primeiro relatório da comissão. Além disso, o desaparecimento da TEC anularia um dos principais fatores de atração de investimentos, que é a possibilidade de saltar barreiras regionais, instalando indústrias dentro de países relativamente protegidos. O relatório contesta a afirmação no sentido de que, caso o Brasil rompesse as negociações da ALCA, ficaria isolado: "Isso não é correto, na medida em que os países latino-americanos não são competidores do Brasil, tanto nos mercados latino como norte-americanos. Muitos destes países, inclusive, já gozam de privilégios comerciais nos EUA". O estudo vale-se também da análise feita pelo embaixador Samuel Guimarães sobre as supostas vantagens que a ALCA traria às economias latino- americanas. Em entrevista publicada no site Global 21, no final do ano passado, o diplomata defendeu que a menor diversificação industrial dos países da América do Sul e a dimensão de suas economias tornam muito limitada sua capacidade de competir com o Brasil no mercado hemisférico. Além disso, sua pauta de exportações para os EUA é distinta da brasileira, concentrando-se principalmente em produtos primários que não exportamos. Se, por um lado, reconhece que a ALCA certamente representará uma ampliação do comércio no continente, por outro, o relatório cita estudo de Alexandre Carvalho e Andréia Parente (Impactos Comerciais da Área de Livre Comércio das Américas, 1999), realizado no IPEA, que concluiu que esse aumento de comércio externo na economia brasileira implicará num aumento muito maior das importações, ampliando também nosso déficit comercial. Deste modo, o Brasil aprofundaria sua fragilidade externa e abandonaria completamente qualquer projeto de crescimento sustentável. O trabalho da Comissão Especial sobre a ALCA exemplifica o que poderia acontecer com a economia gaúcha: "os EUA são grandes produtores de grãos e subsidiam maciçamente sua produção e exportação agrícolas. Para economias como a gaúcha, as exportações agropecuárias americanas representariam uma ameaça concreta (especialmente soja, arroz, milho, trigo, agroindústria, pecuária e avicultura). Setores industriais como os de máquinas, correm o risco de desaparecer. Assim, economias regionais com este perfil dificilmente teriam ganhos setoriais com a ALCA. Cinco propostas para um debate nacional Em sua conclusão, o estudo afirma que o Mercosul, com todas as suas limitações, constitui uma iniciativa não apenas comercial, mas estratégica para o Brasil. Com a ALCA, defende, perderíamos a capacidade legal de utilizarmos mecanismos de política industrial, tecnológica e comercial para acelerar o desenvolvimento nacional. Diante deste cenário pouco animador e do sigilo que cerca as atuais negociações, o relatório do governo gaúcho propõe a construção de um grande debate nacional e latino-americano sobre o tema, demonstrando que a questão do prazo é secundária, sendo necessário discutir o próprio significado da proposta. Neste sentido, a comissão responsável pelo estudo formulou cinco propostas básicas: 1) Manter e ampliar o processo de escuta e discussões da Comissão com a sociedade gaúcha, envolvendo representações sociais e os Poderes Legislativo e Judiciário, com o objetivo de difundir a ALCA, cujo alcance e significado não é de domínio público e cujo âmbito de discussão fica reservado à diplomacia e à equipe econômica brasileiras; 2) Formalizar junto ao governo federal a necessidade de publicização prévia dos conteúdos das propostas oficiais apresentadas pelo governo do Brasil nas negociações sobre a ALCA; 3) Criar uma instância que reúna representações dos Governos Estaduais para o acompanhamento deste tema, nos moldes em que já se formalizou ao ministro das Relações Exteriores do Brasil; 4) Enquanto não for instituída esta instância, entende-se essencial a participação do Estado do Rio Grande do Sul nas atividades oficiais que se realizam com vistas às negociações da ALCA; 5) Formalização, no âmbito do Mercosul, de uma instância federada reunindo representantes de unidades sub- nacionais (Estados, Províncias e Departamentos) com o objetivo de enraizar e aprofundar a pauta de integração dos países do bloco especialmente em relação aos temas que tratem dos impactos às realidades regionais. A próxima etapa do trabalho da Comissão Especial sobre a ALCA será aprofundar este debate e incentivar iniciativas do mesmo gênero. O coordenador da comissão, vice-governador Miguel Rossetto, pretende aproveitar sua viagem ao Canadá, onde participará da Conferência dos Povos das Américas, para fortalecer esta articulação e romper a barreira de silêncio que marca o atual estágio de negociações para a criação de uma área de livre comércio nas Américas. *Marco Aurélio Weissheimer é correspondente da Agência Carta Maior em Porto Alegre

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