A marca do batom

Como o movimento feminista evoluiu no Brasil e no mundo

04/08/2001
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Tome-se uma mulher. A meu ver, nada mais belo em toda a natureza. E completo, pois é portadora de vida, enquanto o homem é apenas provedor. Matrimônio, vínculo que assegura a unidade familiar, promovido por Jesus a um dos sete sacramentos. Patrimônio, a posse dos bens que sustentam a família. Ninguém sofre uma opressão tão prolongada ao longo da história como a mulher. Mutiladas em países da África com a supressão do clitóris, censuradas em países islâmicos onde são proibidas de exibir o rosto, subjugadas como escravas e prostitutas em regiões da Ásia, deploradas como filha única por famílias chinesas, são as mulheres que carregam o maior peso da pobreza que atinge, hoje, 4 dos 6 bilhões de habitantes da Terra. Em muitos países, elas são obrigadas a suportar dupla jornada de trabalho, a doméstica e a profissional, arcando ainda com o cuidado e a educação das crianças. Na América Latina, entre a população pobre, 30% dos chefes de família são mulheres. Estupradas em sua dignidade, elas são despidas em outdoors e capas de revistas, reduzidas a iscas de consumo na propaganda televisiva, ridicularizadas em programas humorísticos, condenadas à anorexia e à beleza compulsória pela ditadura da moda. As belas e burras têm mais "valor de mercado" do que as feias e inteligentes. Feminismo O movimento feminista organizado surgiu nos EUA, na segunda metade dos anos 60. Logo, expandiu-se pelos países do Ocidente, propugnando a libertação da mulher, e não apenas a emancipação. Qual a diferença? Emancipar-se é equiparar-se ao homem em direitos jurídicos, políticos e econômicos. Corresponde à busca de igualdade. Libertar-se é querer ir mais adiante, marcar a diferença, realçar as condições que regem a alteridade nas relações de gênero, de modo a afirmar a mulher como indivíduo autônomo, independente, dotado de plenitude humana e tão sujeito frente ao homem quanto o homem frente à mulher. É este o objetivo numa sociedade que ainda mantém a mulher como uma pessoa oprimida, estrutural e superestruturalmente. Não se rompe esse cativeiro apenas com mudanças jurídicas na sociedade neoliberal. Nem com a isonomia econômica do socialismo, como queriam Marx, Engels, Bebel e Clara Zetkin. Bebel escreveu, em 1889, "O socialismo e a mulher", no qual concordava com a tese de Engels de que a sociedade retrocedera de um período mítico, matriarcal e feliz, para um período patriarcal, fundado na propriedade privada. Julgou, portanto, que a abolição da propriedade privada significaria a libertação da mulher ­ no que se equivocou. Não é por acaso que a maior organização de massa de Cuba é a Federação de Mulheres, com 3 milhões de filiadas, numa população de 11 milhões de habitantes. O socialismo no Leste europeu comprovou que não se liberta a mulher abolindo a propriedade privada e introduzindo-a no processo produtivo. É preciso mudar também a superestrutura cultural e psicológica da sociedade e, sobretudo, reinventar formas de produção e de exercício de poder que tenham as mulheres como sujeito. Enquanto o masculino for o paradigma do feminino, este ideal não será alcançado, a menos que as mulheres descubram que elas próprias são o paradigma de si mesmas. Reação histórica No Renascimento ouviam-se os ecos medievalistas que consideravam a mulher um ser inferior ao homem. Bispos e teólogos defenderam que a mulher é "naturalmente" inferior ao homem, destinada a obedecer-lhe. Por isso, não podia exercer funções de poder, como o sacerdócio. Questionado se o escravo liberto poderia ser sacerdote, são Tomás de Aquino, meu confrade, respondeu que sim, pois o escravo é "socialmente inferior", enquanto a mulher é "naturalmente inferior". O humanista Cornélio Agrippa reagiu em 1529, proclamando a superioridade da mulher na obra "De nobilitate et praecellentia foeminei sexus" (Da nobreza e excelência do sexo feminino). Na Itália do século 17, três intelectuais de Veneza despontaram como precursoras do feminismo: Lucrécia Marinelli, Moderata Fonte e Arcângela Tarabotti. A primeira escreveu, em 1601, "La nobilità e l¹eccelenza delle donne" (A nobreza e a excelência da mulher), onde defendeu a igualdade fundamental dos dois sexos, ressaltando o papel da mulher na história da civilização. Moderata Fonte publicou, em 1600, "Merito delle donne" (Valor da mulher), em que retratou as donas-de-casa de sua época, que viviam "como animais encurralados entre paredes", dizia uma personagem desiludida com o casamento, onde a sonhada liberdade evaporara para dar lugar a "um odioso guardião". Desprovida de recursos e instrução, a mulher sujeitava-se ao poder masculino. Arcângela Tarabotti foi obrigada pelo pai, em 1620, aos dezesseis anos, a ingressar no mosteiro da Santa Ana, das beneditinas, onde morreu em 1652. Ao longo de trinta e dois anos, escreveu textos e cartas em seu "cárcere feminino", como qualificava o mosteiro, denunciando a inferioridade da mulher. Em suas obras "Antisatira" (Anti-sátira), "Difesa delle donne contro Horatio Plata" (Defesa da mulher contra Horácio Plata) e "La tirannia paterna", esta publicada em 1654, Arcângela Tarabotti denunciou os falsos moralismos masculinos, a falta de liberdade feminina e a violência que a obrigou a trocar a pena de escritora pela agulha de bordadeira. Iluminismo O projeto iluminista de melhorar o ser humano através da cultura favoreceu, no século 18, o acesso da mulher à escola. Em Pádua, na Itália, em 1723, discutia-se "se as mulheres devem ser admitidas no estudo das ciências e das artes nobres". Aos poucos, as portas da instrução se abriram a elas. A Revolução Francesa é considerada, por muitos, o berço do feminismo moderno. Em 1791, Olímpia de Gouges lançou a "Declaração dos direitos da mulher e da cidadã", onde proclamou que a mulher possui direitos naturais como o homem, e deve participar do poder legislativo. A obra incluía um "Contrato social" entre os sexos. De Gouges, entretanto, morreu guilhotinada em 1793 e, no mesmo ano, o parlamento rejeitou a proposta de igualdade política entre os sexos. Só no século 20 a francesa teve direito ao voto. Ao crepúsculo do século 19, o feminismo despontou na Inglaterra como movimento de emancipação, reivindicando igualdade jurídica, como direito ao voto, e acesso à instrução e às profissões liberais. A sociedade se vangloriava de ser liberal, mas sujeitava a mulher, privando-a dos direitos de cidadania. John Stuart Mill escreveu em 1869, na obra "Sobre a sujeição da mulher", que considerá-la um ser incapaz é marcá-la desde o nascimento com a autoridade da lei, decretando que jamais ela poderá aspirar alcançar determinadas posições. Mill concordava com Fourier que o melhor modo de avaliar o grau de civilização de um povo é analisando a situação da mulher. Defendia ainda o fim da desigualdade de direitos na família; a admissão de mulheres em todas as funções; participação nas eleições; e melhor instrução. A reforma eleitoral italiana de 1912 estendeu o direito ao voto aos analfabetos, mas excluiu as mulheres, os menores, os prisioneiros e os dementes. Só em 1945 as italianas tiveram direito ao voto, após duas guerras mundiais. O novo feminismo Simone de Beauvoir, ao publicar em 1949 "O segundo sexo", pôs a descoberto as profundas raízes da opressão feminina, analisando o desenvolvimento psicológico da mulher e as condições sociais que a tornam alienada e submissa ao homem. Em 1963, Betty Fridman lançou nos EUA "A mística feminina", onde retomou as idéias de Beauvoir, denunciando a opressão da mulher que, na sociedade industrial, sofre do "mal que não tem nome" - a angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa. A partir dessas novas idéias, o movimento feminista alastrou-se pelo mundo. Sutiãs foram queimados nas ruas; a libertação sexual tornou-se um fato político; as palavras de ordem se multiplicaram: "Nosso corpo nos pertence!" "Direito ao prazer!" "O privado também é político!" "Diferentes, mas não desiguais!" O modelo tradicional do ser mulher entrou em crise e um novo perfil feminino começou a se esboçar. Pressionada, a ONU declarou 1975 como Ano Internacional da Mulher, e a década que se seguiu, até 1985, como Década da Mulher em todo o mundo. Feminismo no Brasil Muitas mulheres brasileiras participaram ativamente da resistência à ditadura militar. Mas o primeiro grupo organizado de feministas pós- Simone de Beauvoir surgiu em São Paulo, em 1972, com Célia Sampaio, Walnice Nogueira Galvão, Betty Mindlin, Maria Malta Campos, Maria Odila Silva Dias e, mais tarde, Marta Suplicy. Aos poucos, o tema do feminino e do feminismo passou a ocupar fóruns nacionais de debate, como ocorreu na reunião anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), em Belo Horizonte, em 1975. No mesmo ano, um encontro na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio, deu origem ao Centro da Mulher Brasileira. Também no mesmo ano, em São Paulo, realizou-se o Encontro para o Diagnóstico da Mulher Paulista; surgiu o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbine; e foi lançado o jornal Brasil Mulher, que circulou de 1975 a março de 1980. A imprensa feminista ganhou fôlego. Nós Mulheres circulou entre 1976 e 1978, e o jornal Mulherio, lançado em março de 1981, tornou-se leitura obrigatória das feministas por mais de cinco anos. Entre 1970 e 1980, o movimento de mulheres centrou-se na luta pela redemocratização do país. Nas classes populares surgiram, incentivados pela Igreja católica, Clubes de Mães e Associações das Donas-de-Casa. Outros movimentos, sem vínculos confessionais ou partidários, brotaram pelo país afora, como a Rede Mulher, em defesa dos direitos da mulher e da ampliação da cidadania feminina. Aos poucos, delinearam-se agendas específicas, como negras, prostitutas, lésbicas, trabalhadoras rurais e urbanas, empresárias etc. Mais de três mil mulheres reuniram-se nos Congressos da Mulher Paulista, entre 1979 e 1981. No Rio, o 8 de março foi comemorado por encontros estaduais, de 1977 a meados da década de 1980. Em Fortaleza, em 1979, houve o I Encontro Nacional Feminista, que teve a sua 13ª versão ano passado, em João Pessoa. Feminismo sindical Na área sindical, desde 1963 as trabalhadoras brasileiras lutam por seus direitos, pois naquele ano 415 delegadas participaram do encontro organizado pelo Pacto de Unidade Intersindical. O golpe militar de 1964 abortou esse movimento, que só veio a ressurgir em meados dos anos 70. Em 1979, ocorreram dois encontros da Mulher Metalúrgica, um em São Bernardo do Campo e outro na capital paulista. Elas participaram ativamente das greves de 80, promovendo piquetes, angariando recursos para o Fundo de Greve e ocupando as ruas de São Bernardo do Campo, ostentando flores contra os fuzis da ditadura. Suas reivindicações específicas foram incorporadas às pautas de negociação. Bem como denunciados seus salários mais baixos e a falta de creches. As trabalhadoras queriam também jornada de 40 horas semanais e abono de faltas ou atrasos causados pela necessidade de levar os filhos ao médico. No I CONCLAT (Congresso das Classes Trabalhadoras), em 1981, a voz feminina se fez ouvir, sobretudo com as demandas das empregadas domésticas pelo reconhecimento da profissão e a extensão dos direitos trabalhistas à sua categoria. As trabalhadoras rurais despontaram a partir de 1979, após a greve dos 100 mil trabalhadores rurais na Zona da Mata de Pernambuco. Elas começaram a se organizar em movimentos de mulheres, sindicatos e associações, lutando contra a exploração da mão-de-obra no campo. O MST ajudou a impulsionar esta luta, combatendo, em sua organização e campanhas, todas as formas de discriminação à mulher. Em 1990, realizaram-se o Seminário Nacional das Trabalhadoras Rurais e o 1º Congresso do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT. Entre 1985 e 1990, as mulheres negras começam a dar visibilidade nacional à suas lutas. Em 1987, no VIII Encontro Nacional Feminista, em Garanhuns (PE), decidiu-se organizar, no ano seguinte, o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, realizado em Valença (RJ), onde se reuniram 440 mulheres de 19 estados. As mulheres lésbicas também começaram se organizar para reagir ao preconceito e à violência. Formaram grupos de auto-estima, denúncias e ação política. Em 1979, surgiu em São Paulo a associação SOMOS ­ Grupo de Afirmação Homossexual, da qual brotaram o Grupo Lésbico Feminista e o Grupo da Ação Lésbico Feminista. Em 1999, o Rio abrigou o V Encontro de Lésbicas Feministas da América Latina e do Caribe. Cada vez mais, ganhou espaço na mídia a violência contra as mulheres, sobretudo assassinatos cometido por seus companheiros. Repercutiram nacionalmente as mortes de Ângela Diniz (RJ), Maria Regina Rocha e Eloísa Balesteros (MG) e Eliane de Gramont (SP). "Quem ama não mata" ­ o refrão ressoou pelo Brasil inteiro, a ponto de inspirar uma minissérie da TV Globo. A 10 de outubro de 1980, foi criado em São Paulo o primeiro grupo de combate à violência contra a mulher, o SOS Mulher. Daí surgiram as delegacias de polícia especializadas. Inaugurou-se a primeira em São Paulo, 1985. Em 1990, já eram mais de 200 em todo o país. Participação política As eleições diretas para governadores, em 1982, mobilizaram as feministas em defesa da cidadania e pela implementação de políticas públicas para as mulheres. A vitória do PMDB, em 1983, em Minas e São Paulo, levou à criação dos primeiros Conselhos Estaduais da Condição Feminina. Pressionado pelos movimentos de mulheres, o presidente Sarney propôs ao Congresso a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), aprovado em 1985. Vinculado ao Ministério da Justiça, exerceu positiva atuação na Constituinte de 1988. Mas em 1989 o presidente Collor acabou com a autonomia financeira e administrativa do órgão, que hoje depende da boa vontade do Ministério da Justiça. Na ECO 92, no Rio, as mulheres participaram do Fórum das ONGs com o Planeta Fêmea, do qual saiu a Agenda 21 das Mulheres. Seguiram-se as conferências sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) e sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), que trataram de temas específicos da agenda feminista. Esse processo resultou na realização da IV Conferência Mundial da Mulher, em Pequim, em 1995. Hoje, vários países são governados por mulheres. Helen Clark é chefe de governo da Nova Zelândia desde 1999. Glória Arroyo preside as Filipinas desde janeiro deste ano. Chandrika Kumaratunga, que presidia o Sri-Lanka desde 1994, foi reeleita em 1999. Tarja Halonen elegeu-se, este ano, presidente da Finlândia. Mary McAleese preside a Irlanda desde 1997. Vaira Vike-Freiberga é primeira-ministra da Letônia desde 1999. Mireya Moscovo preside o Panamá desde 1999. Hasina Wajed é chefe de governo de Bangladesh desde 1996. E em julho, Megawati Sukarnoputri assumiu a presidência da Indonésia. Desafios atuais A partir de 1977, o movimento feminista fragmentou-se em diversas tendências, algumas mais voltadas para a discriminalização do aborto, outras centradas na isonomia profissional com os homens. Muitas mulheres, após conquistar postos de trabalho antes ocupados exclusivamente pelos homens, lograram também assumir funções políticas de mando. A crise da família faz com que muitas exerçam o papel de chefe da família, como ocorre, hoje, com 30% das mulheres latino-americanas, sobretudo as mais pobres. Há, contudo, um terreno diante do qual o feminismo parece calar-se: o do uso da mulher na publicidade e, em especial, no mundo da moda. A mulher é flagrantemente utilizada como isca de consumo, realçando-se seus atributos físicos de modo a reificá-la, ou seja, estabelecer uma relação direta entre o produto e a mulher, alvos do desejo libidinoso. Na esfera da moda ela é condenada à anorexia, favorecendo uma nova exclusão sócio-cultural: a das gordas e feias, idosas e maltratadas pela carência. Esta mulher-objeto, fruto da manipulação estética de academias de ginástica, produtos dietéticos e medicina especializada, é desprovida de sentimentos, idéias, valores e projetos. Vale unicamente pelo aspecto físico. Saber requebrar na dança é mais importante do que saber pensar, e a ausência de gorduras e celulites importa mais que as qualidades morais e intelectuais. Nos programas de TV, sobretudo humorísticos, o papel da mulher é quase sempre o de notória imbecil, reforçando o machismo e favorecendo a violência contra ela, seja a física, seja a moral, mais comum, do homem que se recusa ao diálogo, não admite críticas e sente-se no direito de ditar normas de comportamento. O que é espantoso é a cumplicidade de tantas mulheres com essa imagem que as deprecia e alarga a distância entre ética e estética, amor e sexualidade, subjetividade e glamourização dos atributos físicos. A marca do batom é vermelha, cor das bandeiras libertárias e, também, do sangue injustamente derramado pela opressão.
https://www.alainet.org/es/node/105262
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