Neoliberalismo ou democracia
01/10/2000
- Opinión
Que nos deixem construir nosso próprio destino, da mesma forma que fomos
capazes de construir nossa identidade cultural
Com duas décadas de aplicação de programas de ajuste fiscal no figurino do FMI e
do Banco Mundial, a América Latina vive sua pior crise social desde os anos 30,
o que, por sua vez, corrói as bases do seu sistema político. Neoliberalismo e
democracia revelam à superfície sua contradição antagônica.
Privilegiando a estabilidade monetária como suposta condição de um crescimento
"saudável" e sustentado, as elites políticas e tecnocráticas provocaram o maior
processo de concentração de renda, de exclusão social -no sentido de exclusão de
direitos, a começar pelo direito a emprego formal-, de violência urbana e rural
e de debilitamento rápido de sistemas políticos democráticos -conquistados com
grande esforço nos países- do continente.
Foi imposta e consolidada a hegemonia do capital financeiro, mediante programas
de estabilização monetária não baseados no fortalecimento estrutural de nossas
economias -com crescimento industrial e agrícola, desenvolvimento tecnológico
próprio, fortalecimento da capacidade aquisitiva do mercado interno, projetos
nacionais de construção de sociedades democráticas e humanizadas-, mas na
atração de capital especulativo mediante taxas de juros astronômicas. Taxas que,
por sua vez, impõem estagnação prolongada da economia, endividamento
generalizado, elevação exponencial da dívida pública e empobrecimento maciço da
população.
Essa corrosão das bases sociais da democracia leva à degradação dos sistemas
políticos, ancorados em economias e Estados financeirizados, em máquinas de
exclusão social capitaneadas pelos ministérios econômicos e pelos bancos
centrais e em elites corruptas, que aceleram a privatização do Estado. Este se
torna o campo de uma luta feroz entre os interesses públicos e os privados,
contando estes com a promoção de grande parte dos governos. Nossos governos são
elogiados pelas autoridades monetárias internacionais e rejeitados pelas
opiniões públicas nacionais.
Essa corrosão do espírito público leva a um esgotamento da legitimidade dos
sistemas políticos, que, como peixes, começam a apodrecer pela cúpula do Estado,
pelas elites dominantes. "Autoridades" econômicas se revelam simples agentes de
instituições financeiras privadas. Governantes compram votos dos parlamentares.
Militares tutelam sistemas políticos que supostamente são civis e democráticos.
Fortunas são acumuladas à custa do patrimônio público, superando todos os
patamares de corrupção conhecidos na história de uma elite latino-americana
reconhecidamente patrimonialista.
A América Latina requer uma radical revolução democrática social, política e
moral. Requer a ruptura com as políticas do FMI e do Banco Mundial, com a
afirmação da soberania de nossos Estados, apoiados na integração continental do
México ao Uruguai e numa ampla política de alianças internacionais, que
privilegie o sul do mundo, a começar pela China, pela Índia e pela África do
Sul. Internamente isso requer políticas de distribuição de renda que façam da
capacidade reprimida de consumo popular a alavanca para a expansão produtiva da
economia industrial e agrícola, para a geração de mais empregos, para o
investimento tecnológico e para a reconstrução de sujeitos sociais e políticos
democráticos.
A América Latina está numa encruzilhada: ou avança no caminho da desagregação
social, da renúncia definitiva da sua soberania política e da consolidação de
economias novamente primário-exportadoras ou se afirma como um continente coeso,
com projeto próprio, com objetivos prioritariamente democráticos, sociais e
culturais, desenhando uma identidade própria e um caminho próprio também.
Vivemos um século extraordinário, em que afirmamos nossa capacidade de romper
com economias primário-exportadoras, de avançar no caminho da industrialização,
de construir Estados que garantiram direitos de setores até ali marginalizados e
de construir uma arte respeitada mundialmente na literatura, na pintura, na
escultura, no cinema, no teatro e na música.
Como disse Gabriel García Márquez, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura de
1982, que nos deixem construir nosso próprio destino, com objetivos definidos
por nós mesmos, da mesma forma que fomos capazes de construir nossa identidade
cultural. Não reivindicamos outros "cem anos de solidão", mas precisamos fazer
destes "tempos de cólera" uma alavanca para romper com a resignação de sermos
"mercados emergentes" e construir uma civilização latino-americana.
https://www.alainet.org/es/node/105213?language=es
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